Obras atrasadas, sedes escolhidas por motivos políticos e incertezas até o último momento. Essa poderia ser a história da Copa de 2014. Mas, na
realidade, são acontecimentos que marcaram a outra Copa do Mundo que
ocorreu no Brasil, a de 1950, símbolo do esforço de um país para se
projetar pela primeira vez internacionalmente. Um levantamento realizado
por quatro pesquisadores e jornalistas - Beatriz Ferrugia, Diego
Salgado, Gustavo Zucchi e Murilo Ximenes - revela como o Mundial de 1950
foi preparado, suas intrigas políticas e desafios. O futebol era outro.
O Brasil certamente também era outro e a própria Fifa não é a
megapotência que hoje controla o maior esporte do planeta.
Há 60 anos, o Mundial contou com 13 seleções, após muitas delas
desistirem ou esnobarem o Brasil. A Argentina, provavelmente a melhor
seleção do mundo na década de 40, optou por não jogar. Segundo a
pesquisa, a Copa custou ao País menos de R$ 500 milhões, transformando
para valores atuais. A conta do Mundial de 2014 ficará por US$ 29,2
bilhões. Portanto, comparar o evento semiamador de 1950 e o
ultraprofissional de 2014 não seria adequado. Marcada pela dramática
derrota do Brasil na final contra o Uruguai, a parte inicial do Mundial e
sua própria preparação foram sendo esquecidas da memória coletiva. Mas o
fato é que, mesmo com seis décadas de diferença, a pesquisa revela como
os acontecimentos em 50 guardam inesperadas semelhanças com os desafios
atuais.
Assim como ocorreu para a Copa de 2014, em 1950 o Brasil praticamente
não teve concorrente na disputa por sediar o Mundial. O País foi
escolhido para ser o anfitrião da quarta Copa do Mundo em 1946, um ano
depois da Segunda Guerra Mundial que havia deixado um continente inteiro
de joelhos. A Fifa, assim como várias outras organizações esportivas,
voltava a ter suas atividades regulares e buscava formas de retomar seus
torneios. A última Copa havia ocorrido em 1938. A opção dos cartolas foi a de levar o Mundial para a América do Sul,
longe dos conflitos. Nenhum país europeu tinha condições financeiras e
nem emocionais para sediar o evento. Mesmo em 1950, várias seleções
europeias desistiram de participar, seja por falta de recursos, por não
ter retomado o futebol ou por terem se aliado ao Nazismo. A própria Copa
teria um ano de atraso. Em 1946, quando a Fifa anunciou que a Copa
ocorreria no Brasil, a previsão era de que ela fosse em 1949. Mas, em
setembro de 47, a Fifa decidiu adiar o projeto para 50.
Sedes. Mas nem o adiamento serviu de alívio para o
Brasil. Se poucos eram os países que tinham condições de realizar um
Mundial, dentro do Brasil a disputa foi acirrada entre as cidades para
que fossem escolhidas como sede. Não havia um número predeterminado de
cidades e, para chamar a atenção da Fifa e de autoridades no Rio de
Janeiro, políticos por todo o País começaram a promover jogos de
futebol. Mesmo tendo quatro anos para se preparar, o Brasil só começaria a
definir as sedes um ano antes da Copa e em praticamente todas as cidades
os atrasos nas obras marcaram a preparação.
Numa vistoria ao Pacaembu, os delegados da Fifa indicaram 23 dias antes
do início do Mundial de 1950 que o estádio paulista não estava
totalmente dentro dos padrões internacionais. O então inspetor da
entidade, o italiano Ottorino Barassi, pediu uma ampliação do gramado e a
criação de um local para a imprensa.
Mesmo a escolha das sedes se transformaria em uma novela que chegaria às
vésperas do evento. Ao final de inúmeros debates, a decisão foi a de
realizar o Mundial no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo e
Curitiba. Outras duas - Porto Alegre e Recife - acabariam sendo
incluídas na programação faltando semanas para o evento. No caso da capital gaúcha, interesses pessoais de alguns políticos
garantiram a inclusão de último momento na agenda da Fifa. O presidente
da CBD na época, Rivadávia Meyer, fazia há meses uma forte pressão sobre
políticos gaúchos para conseguir dinheiro público para colocar um dos
estádios de Porto Alegre em condições para receber o evento. Mas, para
sediar jogos do Mundial, o Estádio dos Eucaliptos precisaria ter 35 mil
lugares - 15 mil a mais que a capacidade naquele momento. Também
precisaria de uma dimensão mínima de 106 m x 89 m para o campo, além da
construção de túneis para vestiários e novos alambrados.
Mas já era janeiro de 1950 e o governo do estado se recusava a abrir os
cofres. Foi então quando o prefeito da cidade, Ildo Meneghetti, um
torcedor fanático do Inter e com interesses de garantir a seu time um
estádio melhor, liberou 500 mil cruzeiros - o equivalente a R$ 715 mil
hoje - para a obra. Em um decreto, alegou que ampliar o estádio era "uma
das necessidades mais clamorosas" de Porto Alegre. Outro argumento: a
Copa iria projetar a cidade internacionalmente. O estádio seria
inaugurado oito dias antes da Copa começar. Mas a passagem do Mundial
pela cidade não seria nada do que o político havia prometido e os 15 mil
lugares extras jamais foram usados, já que os jogos não conseguiram
atrair grande público.
O acordo com a CBD era de que, com a reforma, Porto Alegre receberia
três jogos da Copa. Antes mesmo de começar o evento, um dos jogos seria
cancelado. A França se recusou a viajar ao Brasil, alegando que a tabela
era inaceitável. Pela programação, o time de Paris jogaria em Porto
Alegre e, quatro dias depois, no Recife contra a Bolívia. Assim, Porto
Alegre ficou com apenas dois jogos, um dos 3,5 mil pagantes - 10% do
estádio - e outro com 11 mil.
Uma frustração similar seria registrada em Curitiba. A arena havia sido
construída aos poucos e pelos próprios funcionários de uma empresa
ferroviária. Durante anos, os trabalhadores, loucos pelo esporte,
paravam os trens que passavam pela região e pediam sobras do material
que carregavam. Essas madeiras, metais e pedras acabariam sendo usados
para erguer o estádio. Com a decisão de ter a Copa no Brasil, o governo do Paraná deu 300 mil
cruzeiros (R$ 430 mil atuais) para permitir que o estádio do Ferroviário
fosse ampliado para 30 mil pessoas, uma exigência da Fifa mesmo numa
cidade que na época tinha uma população de 180 mil pessoas. Segundo a
pesquisa, os dois jogos do Mundial disputados na capital paranaense
foram um fracasso de público. Na partida Espanha 3 x 1 EUA, apenas 9 mil pessoas acompanharam o jogo.
No segundo - Suécia x Paraguai -, não havia sequer 8 mil pessoas na
arquibancada.
Trena. Uma das disputas mais acirradas ocorreu no
Nordeste. Faltando 39 dias para a abertura do Mundial, o Brasil ainda
não sabia qual seria a sede dos jogos na região. Fortaleza, Recife e
Salvador disputavam a vaga. Num espelho perfeito do que era o processo
de seleção dos organizadores da Copa, um dos enviados mediu o campo da
Ilha do Retiro com sua própria trena. Dias depois, indicou que Recife
seria a vencedora para sediar os jogos.
Mas os desafios estavam apenas começando. Para estar pronto para o
Mundial, 20 dias depois de ser confirmado, os sócios do time do Sport se
mobilizaram para reformar o estádio. Superada essa dificuldade, veio a
ducha de água fria. A seleção da Suíça se recusou a jogar no calor
nordestino, Portugal abandonou a ideia da Copa e a França se negou a
viajar ao Brasil. A capital pernambucana ficaria com apenas um jogo, entre Chile e Estados
Unidos, partida assistida por Jules Rimet. Mas o jogo ainda seria
marcado pela queda de energia do estádio, o que impediu que a partida
fosse transmitida pelas rádios ao restante do Brasil e do mundo.
Maracanã. A partir de fotos da época, documentos e
relatos, a pesquisa ainda revela como uma disputa política particular
seria travada nas obras do Maracanã, a maior da Copa e que se
transformou em uma síntese do que foi o Mundial de 50. Carlos Lacerda,
líder da oposição, e o prefeito do Rio, Mendes de Morais, travaram uma
batalha na determinação do local, cada qual lutando para ser o pai da
obra.
A história do Maracanã começa em 1941. Um certo Oscar Niemeyer chegou a
apresentar dois projetos para o estádio, ambos recusados. Naquele
momento, brigas políticas enterraram a ideia de um estádio para a
capital. Foi só mesmo em 1946, quando o Brasil foi escolhido para sediar
a Copa, que o projeto se transformaria realidade. O prefeito insistia
em erguer o estádio ao lado do rio Maracanã, enquanto Lacerda o queria
em Jacarepaguá. Para justificar, Morais usou até mesmo o argumento de
que a urbanização da região ajudaria a evitar as inundações do rio.
Depois de uma disputa intensa na Câmara de Vereadores, o prefeito acabou
prevalecendo. O Maracanã seria oficialmente chamado de "Estádio Mendes
de Morais".
Mas a briga teve seu preço e as obras sofreram importantes atrasos. O
Maracanã não seria entregue nem no prazo e nem no orçamento estimados
originalmente. Apesar de a construção ter sido iniciada em 1948, a
pesquisa encontrou fotos do jogo de inauguração ocorrido apenas uma
semana antes da Copa e que mostravam a presença ainda de andaimes nas
arquibancadas no dia 16 de junho de 1950, entre a Seleção Paulista e a
Seleção Carioca. A concretagem não tinha sido concluída. Na realidade,
até a inauguração havia sido adiada. A ideia era de que a partida de
abertura ocorreria no dia 28 de maio.
Oito dias depois, a Copa seria aberta no mesmo estádio, o maior da
história até então. Para aquele jogo entre Brasil e México, as
estruturas de apoio já haviam sido retiradas e o Exército foi convocado
para ajudar a limpar a área. Mas, ao chegarem ao estádio, os torcedores
se depararam com barro, lama e material de construção espalhado pelo
local.
Pilar de um projeto de autoafirmação da capacidade de um país em
desenvolvimento sediar um evento internacional, o Maracanã custou o
equivalente hoje a R$ 215 milhões. Após a dramática derrota do Brasil na
final, o busto de Mendes de Morais que havia sido colocado na entrada
do estádio foi destruído pelos torcedores. O estádio deixou de levar o
nome do prefeito. Nos seis meses que se seguiram, o coronel Herculano Gomes, engenheiro
principal das obras, seria cobrado por auditores a explicar os atrasos e
inflação no orçamento, colocando praticamente um fim à sua carreira.
A seleção só entraria em campo dois anos depois do drama de 1950 e sua
camisa jamais seria a mesma. Nem a história do futebol brasileiro.
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