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quarta-feira, 11 de maio de 2016

O fantástico Museu do Cais Branly, em Paris (I): Oceania


O Musée du Quai Branly (Museu do Cais Branly) é mais um fantástico museu da incrível Paris. Para esta postagem utilizei o catálogo do museu, a Wikipédia e o Google.

Segundo Jacques Chirac, presidente da França quando o museu foi criado (inaugurado em 20 de junho de 2006):

"A criação do Museu do Cais Branly, instituição original, inteiramente dedicada às artes e às civilizações da África, da Ásia, da Oceania e das Américas, nasceu de uma vontade política: fazer justiça às culturas extraeuropeias. Trata-se de reconhecer o lugar que ocupam suas expressões artísticas na nossa herança cultural. De reconhecer também nossa dívida com relação às sociedades que as produziram, assim como em referência aos seus países de origem com os quais a França mantém, com numerosos deles, laços particulares. 

Trata-se, ao romper com uma longa história de desdém, de dar o justo lugar a artes e civilizações por muito longo tempo ignoradas ou desconhecidas, de devolver toda sua dignidade a povos frequentemente humilhados, oprimidos, às vezes aniquilados pela arrogância, pela ignorância, pela tolice e pela cegueira.

Instituição cultural e científica de um tipo novo, ao mesmo tempo museu, centro cultural, lugar de pesquisas e de ensino, o Museu do Cais Branly proclama a recusa a qualquer hierarquia das artes, assim como a qualquer hierarquia de povos. Ele celebra a universalidade do gênio humano através da deslumbrante diversidade de suas expressões culturais".  (...)

O diretor do museu, Stéphane Martin, informa que cerca de 3.500 obras, das 300.000 que compõem o acervo do Branly, desenham para o visitante os contornos da identidade do museu. Organizado segundo quatro áreas geográficas -- África, Ásia, Oceania e Américas -- ligadas por "zonas de contato" tais como as Pequenas Antilhas ou a Insulíndia, esse percurso permanente se articula igualmente em função de grandes temas comuns. Cada continente é apresentado ao início por um "espaço de chamada", que reagrupa algumas obras particularmente emblemáticas e espetaculares. Esse vasto território propõe portanto uma lógica de visita ao público, que mantém no entanto uma total liberdade de escolha.

As grandes obras-primas selecionadas para a exposição permanente o foram por sua beleza, sua raridade e sua força de expressão, por seu interesse etnológico e técnico, ou pelo que nos dizem do espírito e da genialidade dos povos. Graças a diferentes níveis de comentários, cartazes, painéis ou programas multimídia. o visitante é convidado a situar na história e na geografia as obras que lhe são apresentadas e a se informar sobre seu contexto e seu uso nas sociedades que as produziram.

 O Museu do Cais Branly, visto do 3˚ andar da Torre Eiffel - (Foto: Wikipédia)



Fotos externas do Museu do Cais Branly - (Fotos: Google)



Logo na entrada ao interior do museu,  há uma corrente de palavras em movimento chamada "O Rio", que desce pela rampa sinuosa que leva da entrada do museu às suas principais galerias - (Foto: Wikipédia/Vídeo: meu) 


"O Rio" (um projeto do artista visual escocês Charles Sandison, radicado na Finlândia) contém 15.597 palavras de todos os povos e locais geográficos das coleções do museu, que vêm assim ao encontro do fluxo de visitantes do museu. Ao subir a rampa, instintivamente, o visitante tenta andar sobre essas palavras, palavras brancas, negras ou vermelhas. Algumas palavras são fixas, outras varrem o solo e, avançando, se espalham. Alguns visitantes dizem que esse "rio" os faz sonhar e mergulhar no imaginário de todos esses países e sítios.

As galerias principais e o mezanino do museu, ligados por uma rampa sinuosa - (Foto: Wikipédia)


Peça do Museu do Cais Branly - (Foto: minha)

Oceania

A Oceania e a Insulíndia se compõem de conjuntos de arquipélagos, que se estendem depois do sul da Malásia até os confins do Pacífico Sul. Essa área histórica e cultural é interligada pela história de seu povoamento. Ela agrupa a Insulíndia -- Malásia oriental, Indonésia e Filipinas -- a Melanésia, a Polinésia, a Micronésia e a Austrália. Esse corte geográfico foi herdado dos trabalhos do navegador francês J-S. Dumont d'Urville, publicados em 1834. Ele serve de trama para a visita das coleções da Oceania, à exceção da Micronésia, pouco representada. Ao longo desse percurso geográfico são declinadas temáticas culturais e sociais tais como a conquista do prestígio, os intercâmbios, a iniciação, os funerais, a relação com os ancestrais e as divindades, as metamorfoses do corpo, ou ainda a modernidade.





Partes do pavilhão da Oceania - (Fotos: minhas)

Algumas máscaras da Oceania - (Foto: Google)

Máscara para coleta de dinheiro/Papua Nova-Guiné - (Foto: minha)

Tambores com fendas verticais/Ilha de Ambrym, Vanuatu, Melanésia - (Foto: Google)

Detalhe do conjunto acima - (Foto: Google)

Totens da Oceania - (Foto: minha)

Parte do pavilhão da Oceania - (Foto: Google)



Detalhe de escultura com aparência humana (ver foto acima desta), pertencente à sociedade secreta iniet dos Tolai, povo indígena da Península Gazelle e das Ilhas de Duque de York da Nova Bretanha do Leste, Ilhas Nova Guiné, Papua Nova-Guiné - (Fotos: Google)

Escultura do pavilhão da Oceania - (Foto: Google)

Máscara de fachada/Chambri, Papua Nova-Guiné, meio Sepik, meados do século XX - (Foto: Google)

Peças da Papua Nova-Guiné - (Foto: Google)

Máscara/Austrália, Queensland, estreito de Torres, século XIX - casco de tartaruga, fibras vegetais, penas de casuar (pássaro australiano) - (Foto: Google)

Um crânio de parente decorado/Papua Nova-Guiné, fim do século XIX - (Foto: Google)

Máscara/Papua Nova-Guiné, Ilhas Salomão, ilha Bougainville, início do século XX - casca de árvore batida, madeira, bambu e pigmentos - (Foto: Google)

Máscara de inhame (?) (detalhe)/Abelam, Papua Nova-Guiné - (Foto: Google)

Figura feminina esculpida na base de um tronco, do  qual duas raízes serviram para fazer as pernas separadas. Repousava sobre uma travessa localizada no interior da casa dos homens, logo atrás da fachada, não sendo visível do exterior. Representa uma ancestral feminina associada ao som das flautas - (Foto: Google)

Crânio de ancestral usado em cerimônias de iniciação/Asmat, Indonésia, séc. XX - (Foto: Google)

Manequim funerário rambaramp/Pequenas Nambas, Vanuatu, sul da ilha de Malekula - osso, madeira, pasta vegetal, pigmentos, teia de aranha, dentes de porco,plumas, fibras vegetais, 178 x 44 cm - (Foto: Google)

Máscara coberta, de passagem de grau/patente - Vanuatu, ilha de Malekula - (Foto: Google)

Máscara/Papua Nova-Guiné, ilhas Salomão, ilha de Nissan, início do século XX - madeira, rotim (uma palmeira), cortiça batida, pecíolo de palmeira, resina, pigmentos, 55,5 x 40,2 cm


Máscara-elmo/Kapriman, Papua Nova-Guiné, meio Sepik,início do séc. XX - vime, bambu, pigmentos - (Foto: Google) - O rio Sepik é um rio do nordeste da Nova Guiné com cerca de 1.120 km. Praticamente todo o seu percurso está na Papua-Nova Guiné.

Canguru fêmea/Austrália, terra de Arnhem ocidental, ilha Croker, meados do século XX - pintura sobre casca de eucalipto, 73 x 70 cm - Artista: Billy Yirawala - (Foto: Google)

Namarwon, deus do trovão/Austrália, terra de Arnhem ocidental, ilha Croker, meados do séc. XX, pintura em casca de árvore  - 77 x 50 cm - Artista: Jimmy Midjaw-Midjaw - (Foto: Google)

Uma tapa (casca de árvore, tecido vegetal batido, cortiça batida e decorada pelas mulheres, muito presente na Oceania) com motivos geométricos/Samoa, Polinésia - (Foto: Google)

Sonho de dois homens/Paddy Jupurrurla Nelson, Yuendumu, Oceania  etnia Warlpiri - pintura acrílica sobre tela, 1991 - (Foto: Google) 


Buraco com água no grande deserto de areia/Austrália Ocidental, Balgo, pintura acrílica sobre tela, 1996, 81 x 121 cm - Artista: Helicopter Joe Tjungurrayi



Helicopter Joe Tjungurrayi (1947-) - Austrália Ocidental - (Foto: Google)


Cerimônia funerária/Austrália, terra de Arnhem central, Millingbi, meados do séc. XX, 73,5 x 48 cm - Artista: David Malangi - (Foto: Google)


David Malangi (Austrália, 1927-1998) - (Foto: Google)



Tapa/Austrália, terra de Arnhem, comunidade Yirrkala - trabalho com casca de eucalipto, 1996 - (Foto: Google)


Jóia Mamuli em ouro/Indonésia, ilha Sumba, sécs. 19 - 20 - (Foto: Google)


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(tema da próxima postagem: Ásia)






  






segunda-feira, 1 de junho de 2015

Caixa preta: Governo repassa bilhões ao BNDES e o país não sabe como ele financia certos projetos no exterior

[Em postagem anterior abordei o uso politiqueiro do BNDES pelos governos petistas, e em outra enfoquei a exposição exagerada imposta pelo governo Dilma NPS (Nosso Pinóquio de Saia) a esse banco estatal em seu envolvimento financeiro com o grupo empresarial de Eike Batista, grupo esse que praticamente desapareceu -- outro banco estatal excessivamente atrelado às empresas de Eike é a Caixa Econômica Federal.

Não bastasse isso, financiamentos vultosos do BNDES para projetos em Cuba e Angola por empresas envolvidas na Operação Lava-Jato são blindados por cláusulas contratuais sigilosas -- contra isto e também para abrir a "caixa preta" do banco, criou-se na Câmara dos Deputados uma CPI do BNDES (que só milagrosamente poderá resultar em algo produtivo). Agora, surge denúncia do MP (Ministério Público) de que o governo repassou irregularmente R$ 500 bilhões para o BNDES. A reportagem da revista Época, de autoria de Thiago Bronzatto e Filipe Coutinho, é reproduzida a seguir. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade. Certamente, não é por razões defensáveis que o governo petista de Dilma NPS (Nosso Pinóquio de Saia) evita a todo custo que se abra a caixa preta do BNDES.]




SUBTERFÚGIO
O presidente do BNDES, Luciano Coutinho, e a representação do Ministério Público. A representação fala em “fatos graves” e “irregularidades” (Foto: Daryan Dornelles/Ed. Globo)

No dia 14 de abril, o economista Luciano Coutinho, presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, esteve no Senado para explicar os empréstimos do maior guichê do capitalismo de Estado brasileiro. Citou o apoio a 91 dos 100 maiores grupos nacionais, o financiamento à metade de todos os investimentos em infraestrutura no país e o estoque de empréstimo da ordem de R$ 263 bilhões, correspondente a 11% do PIB. Foi chamado 44 vezes de presidente. Chamou meia dúzia de senadores de Vossa Excelência. Talvez para mostrar quem está acima de quem no poder político brasileiro.

A próxima visita de Coutinho ao Senado será provavelmente diferente. Duas semanas após a tranquila exposição do economista, a oposição conseguiu as assinaturas suficientes para criar uma CPI destinada a investigar os bilionários empréstimos secretos do BNDES. Suspeita-se que algumas das operações tenham sido excessivamente camaradas – e algumas empresas especialmente privilegiadas. Ademais, a oposição quer investigar os indícios de que o ex-presidente Lula, conforme revelou ÉPOCA em sua última edição, tenha feito tráfico de influência junto ao BNDES, de modo a favorecer a Odebrecht, uma das empresas que mais obtiveram dinheiro do banco. O núcleo de combate à corrupção da Procuradoria da República em Brasília abriu investigação para descobrir se Lula atuou em favor da Odebrecht não apenas no BNDES, mas também junto a governos amigos do PT, os quais contrataram a empreiteira com dinheiro do banco brasileiro – algumas vezes após visitas do petista, bancadas pela Odebrecht, aos presidentes desses países. Lula, o BNDES e a Odebrecht negam qualquer irregularidade.

Os senadores também aprovaram o fim do sigilo nos empréstimos do banco. A presidente Dilma Rousseff pode vetar a medida – e o Congresso, cada vez mais hostil à petista, ainda pode derrubar um possível veto. Na Câmara, uma CPI com o mesmo objetivo estará na praça no segundo semestre, após o fim da comissão que investiga o petrolão. A Procuradoria da República no Rio de Janeiro, sede do BNDES, também investiga os empréstimos. A cada dia, crescem as suspeitas sobre as operações do banco.

Hoje, boa parte da economia brasileira roda com dinheiro das empresas que enchem o tanque no posto do BNDES. É gasolina batizada, segundo o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União. Numa representação inédita obtida por ÉPOCA, o MP afirma que o BNDES recebeu de maneira irregular do Tesouro Nacional cerca de R$ 500 bilhões, que incharam o banco nos últimos seis anos. A representação contém uma avaliação prévia do MP, que solicita investigação por parte do TCU. Segundo o MP, o dinheiro público pode ter ido parar nas contas das empresas que receberam os empréstimos no Brasil e no exterior. “A operação foi desenhada como um subterfúgio para lançar mão de recursos que, por lei, não poderiam ser destinados a empréstimos ao BNDES (...) Configura verdadeira fraude à administração financeira e orçamentária da União”, diz o documento do MP, que aponta os fatos como “graves”. 

Os repasses considerados irregulares pelo MP começaram em 2008, no segundo mandato de Lula, e prosseguiram até o ano passado, no primeiro mandato de Dilma. Naquele ano, o governo passou a usar dinheiro da conta única do Tesouro – uma espécie de cofrinho de emergência do país – para financiar as operações do BNDES. A conta única é abastecida com dinheiro de operações feitas pelo Banco Central. Quando, por exemplo, o BC tem lucro com a compra ou a venda de moedas, esse dinheiro vai para a conta única. O cofrinho só pode ser quebrado, segundo o MP, para que o governo pague suas dívidas. Para quebrá-lo, o governo fez uma malandragem: passou a emitir títulos de dívida ao banco estatal. Com eles, o BNDES conseguia pegar o dinheiro e emprestá-lo às empresas.

Assim, segundo o MP, o BNDES virou credor; e o Tesouro, devedor, o que é proibido, de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal. O certo, ainda de acordo com o MP, seria o Tesouro captar recursos no mercado ou arrecadar impostos com os contribuintes e repassar esse dinheiro para o BNDES, contabilizando em seu orçamento. Mas não foi o que ocorreu. “O governo federal criou desse modo uma operação insólita”, diz a representação, assinada pelo procurador Júlio Marcelo de Oliveira no dia 6 de maio.

No documento, ele pede ao ministro Raimundo Carreiro que autorize os auditores do TCU a seguir o rastro do dinheiro que abasteceu o BNDES. O procurador também quer que os técnicos do Tribunal identifiquem o fluxo financeiro entre o banco estatal e o Tesouro. As diligências deverão ter sete principais frentes de atuação. Entre elas, está a apuração dos responsáveis pela arquitetura da transação. Será avaliado se a administração atual do BNDES foi conivente com esse tipo de operação, que, segundo o MP, foi “esdrúxula”.



AMIZADE LUCRATIVA
Lula e Chávez em Caracas. O MP pediu ao BNDES dados sobre empréstimo à Venezuela (Foto: Jorge Silva/Reuters e Reprodução)

Coutinho tem outras explicações a dar. No dia 7 de maio, quinta-feira da semana passada, o núcleo de combate à corrupção da Procuradoria da República em Brasília – a mesma turma que investiga Lula em outro processo – enviou um ofício a Coutinho. No documento, o procurador Cláudio Drewes José de Siqueira pede explicações sobre o empréstimo concedido pelo banco, no valor deUS$ 747 milhões, para a construção de duas linhas do metrô de Caracas e Los Teques, na Venezuela, obra tocada pela construtora Odebrecht. Após a publicação de reportagem de ÉPOCA sobre o caso, no mês passado, em que se revelou que o financiamento do metrô venezuelano era alvo de questionamentos de auditores do TCU num processo sigiloso, o MPF resolveu iniciar uma investigação própria. No jargão do MPF, ela começou a partir de um procedimento conhecido como “notícia de fato criminoso”, em que se apurarão as suspeitas de irregularidades em torno da operação de crédito do banco estatal. Coutinho terá de informar quais foram as taxas de juros cobradas nesse financiamento e as garantias apresentadas para a liberação do dinheiro dos cofres do BNDES para o governo venezuelano. Além de Coutinho, também serão notificados o TCU e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, o MDIC – o banco é oficialmente subordinado à Pasta. Todos deverão apresentar nas próximas semanas documentos, inclusive os sigilosos, referentes ao empréstimo concedido para a construção das linhas do metrô venezuelano.

Uma das linhas desse metrô foi financiada pelo BNDES ainda no governo do tucano Fernando Henrique Cardoso [então o MPF tem que se pronunciar também sobre esse empréstimo]. O empréstimo de US$ 747 milhões sob investigação foi negociado em maio de 2009, quando o então presidente Lula se encontrou em Salvador, na Bahia, com o líder venezuelano Hugo Chávez, morto em 2013. Naquela ocasião, Chávez, que passava um sufoco financeiro devido à queda do preço do petróleo internacional, pediu ajuda do Brasil para expandir as obras do metrô de seu país. Mesmo diante do risco da operação, o BNDES liberou o dinheiro em parcela adiantada, segundo documentos de diligências feitas pelo TCU, obtidos por ÉPOCA. Dois anos depois, em junho de 2011, já fora do governo, Lula viajou para a Venezuela, num voo bancado pela Odebrecht. O petista, na condição de palestrante contratado pela construtora brasileira, reuniu-se com empresários e também com Chávez, que estava em dívida com a Odebrecht. Após o encontro entre os dois colegas, a conta foi acertada.

Em 2014, auditores do TCU observaram que o BNDES antecipou em 2010 cerca de US$ 201 milhões “sem justificativa na regular evolução da obra” da linha Los Teques. De janeiro a abril de 2010, a Odebrecht só havia gastado 8,15% do valor total da obra. Mesmo assim, recebeu adiantados os recursos do BNDES. Atualmente, o banco estatal é credor da Venezuela em US$ 1 bilhão. Esse valor será pago ao longo dos próximos dez anos. Em 2010, no último ano do governo Lula e quando a Venezuela recebeu o dinheiro para a construção do metrô de Caracas e Los Teques, o volume total de repasses do banco de fomento a Hugo Chávez aumentou seis vezes, para US$ 315 milhões, o segundo maior destino internacional dos financiamentos do BNDES, atrás apenas da Argentina.

Procurado, o Instituto Lula afirmou que o encontro de maio de 2009 entre Lula e Chávez fez parte de uma série de reuniões trimestrais entre os dois líderes, para tratar de temas bilaterais e regionais. “O ex-presidente Lula não é parte citada em qualquer procedimento investigatório de que tenha conhecimento, por parte do Ministério Público ou do Tribunal de Contas da União”, diz a nota. “Quanto aos procedimentos do TCU relativos ao financiamento de exportações de serviços brasileiros, já noticiados pela revista ÉPOCA em 6 de abril, informamos que o ex-presidente Lula não considera esta revista uma fonte de informação digna de crédito”, completou. A nota foi divulgada no site do Instituto, acompanhada das perguntas de ÉPOCA, ainda na tarde desta sexta-feira, dia 8.

A Odebrecht diz que o financiamento do BNDES foi destinado à Venezuela. Além disso, a construtora afirma que as liberações dos recursos financeiros ocorreram dentro do  previsto e estão de acordo com as normas brasileiras. O Ministério da Fazenda diz que o Tesouro não dispõe de informações para comentar. A assessoria do BNDES afirma que não foi notificada a respeito de investigação do MPF e defende a legalidade do empréstimo para o metrô de Caracas. “Os financiamentos para as exportações de bens e serviços brasileiros utilizados na obra do metrô de Caracas foram concedidos após um processo de análise que envolveu dezenas de técnicos do BNDES e órgãos colegiados, sem qualquer excepcionalidade e com sólidas garantias. A Venezuela é um cliente tradicional do banco, e os financiamentos ao metrô na capital venezuelana começaram em 2001, no governo FHC.” [Então, o governo FHC tem que ser incluído na investigação do MPF]. O banco diz também que os pagamentos estão em dia. O BNDES nega qualquer irregularidade nos repasses de R$ 500 bilhões do Tesouro. “O BNDES não realizou a operação mencionada. Os títulos recebidos do Tesouro foram integralmente alocados em operações de crédito. A monetização dos títulos foi feita por meio de venda direta, por operações compromissadas com agentes de mercado e também com a manutenção dos papéis até a data de vencimento, no caso de títulos curtos. Desta forma, os procedimentos adotados pelo banco foram absolutamente regulares".

Para o BNDES, portanto, a gasolina do capitalismo de Estado brasileiro é limpinha. [Esta frase final da reportagem soa um tanto ou quanto ridícula.]

[Em 30 de maio p.p. o jornal O Estado de S. Paulo (Estadão) denunciou que o BNDES usa verbas do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) para subsidiar empreiteiras no exterior.  Desde 2007, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) reforça o apoio ao que se chama de “exportações de serviços”, especialmente nos financiamentos para que grandes empreiteiras brasileiras pudessem fazer obras no exterior. O ‘Estado’ teve acesso ao primeiro de um desses contratos de crédito. Segundo avaliação de profissionais do mercado financeiro, nessa operação o banco só não teve prejuízo porque usou, em condições muito especiais, o dinheiro barato do Fundo de Amparo ao Trabalhador, o FAT, que banca benefícios sociais como o seguro-desemprego. Vemos assim um governo do PT - Partido dos Trabalhadores -- digo eu e não o jornal -- desviando recursos de um fundo de amparo a esses trabalhadores, e ninguém se mexe: nem o próprio PT, nem as normalmente barulhentas centrais sindicais, supostamente defensoras desses trabalhadores. Durma-se com um barulho desse!

O BNDES nunca divulgou quanto emprestou para as empreiteiras fazer obras lá fora, nem em que condições ou a que taxas. O sigilo é questionado e gera polêmica. Por ironia, um contrato se tornou público ao ser divulgado no site do governo da República Dominicana. O BNDES se comprometeu a emprestar US$ 249,6 milhões (R$ 786 milhões, pela cotação atual) para o governo daquele país tocar as obras do Projeto Múltiplo Monte Grande, que conta com uma barragem para abastecimento de água e fornecimento de energia. A construtora é a Andrade Gutierrez.

Subsídio. Segundo análises de profissionais do mercado financeiro, feitas a pedido do Estado, o empréstimo à República Dominicana tem três detalhes que chamam a atenção. Primeiro: o BNDES deu subsídio, pois a taxa de juros cobrada foi inferior àquela que a República Dominicana conseguia no mercado (veja box). Segundo: a taxa concedida ao país foi bem menor do que a oferecida no próprio Brasil. O financiamento mais barato dado pelo BNDES aos brasileiros na área de infraestrutura foi para o Programa de Investimento em Logística (PIL): 7% (2% de spread, mais a Taxa de Juros de Longo Prazo, a TJLP, que na época estava a 5%. Hoje está em 6%). Terceira conclusão: se tivesse usado o seu próprio fôlego financeiro e feito o empréstimo com dinheiro de suas emissões, o BNDES teria prejuízo. ]









 









domingo, 21 de dezembro de 2014

Empresas americanas vão deitar e rolar com o porto de Mariel em Cuba, construído com financiamento sigiloso do Brasil

A notícia pegou todo mundo de surpresa: EUA e Cuba anunciaram o reatamento de suas relações diplomáticas. Por essa ninguém esperava. As implicações disso são enormes, política e economicamente falando, e as perspectivas para o Brasil não são cor-de-rosa.

Um ponto fundamental na análise dessa mudança de atitudes é o prazo em que se desenrolaram as negociações: americanos e cubanos negociaram durante 18 meses a normalização de suas relações. Ou seja, os dois lados conversam sobre isso desde junho do ano passado.

A partir de agora, Cuba deixa de ser território proibido para as empresas americanas e paraíso exclusivo para empresas espanholas, chinesas, brasileiras, etc. O estado americano da Flórida está a apenas cerca de 160 km de Cuba. Com um PIB de cerca de US$ 800 bilhões -- mais de um terço do PIB brasileiro -- a Flórida é uma potência econômica, maior que países como Turquia, Holanda, Arábia Saudita, Suécia, Irã e outros. Em 2014, o PIB da Flórida cresceu mais que o PIB americano

Cuba é para a Flórida um mercado mais próximo que a grossa maioria dos demais estados americanos. Os benefícios do moderníssimo porto de Mariel para os EUA em geral, e para a Flórida em particular, são incomensuráveis. Orçado em US$ 957 milhões, dos quais US$ 682 milhões (71%) financiados em termos sigilosos pelo BNDES, Mariel vem sendo construído pela Oderbrecht desde 2010 e teve sua primeira fase inaugurada em janeiro deste ano de 2014. Os americanos ficarão superagradecidos ao Brasil. As empresas americanas certamente serão imbatíveis em preços para o mercado cubano, e o porto de Mariel será importantíssimo para isso. Só no arroz por exemplo, cuja qualidade é semelhante à do nosso, o frete médio dos EUA para Cuba é 60% inferior ao do Brasil para a ilha.

Vejamos agora a cronologia dos fatos. Seis meses antes da inauguração da primeira fase do porto de Mariel os cubanos iniciaram sua negociações de reatamento com os americanos, sabendo portanto desde então do aumento enorme da importância estratégica do porto de Mariel nesse contexto. Como praticamente todo mundo, o Brasil foi deixado à margem desses entendimentos. 

A publicação Carta Capital, de Mino Carta,  divulga uma leitura peculiar do financiamento do porto de Mariel pelo Brasil feita pela FGV (Fundação Getulio Vargas). Diz ela que "O polêmico projeto do Porto de Mariel, em Cuba, indica que o Brasil estava prevendo o fim do isolamento imposto pelos Estados Unidos à ilha comunista e o relaxamento do embargo econômico, afirmaram especialistas ouvidos pela DW Brasil no início deste ano". (...) "O Porto de Mariel é visto como uma maneira de se antecipar aos investidores americanos", disse Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da FGV, na ocasião da inauguração do porto, em janeiro. O megaprojeto contou com financiamento do BNDES, e a presidente brasileira, Dilma Rousseff, foi à Cuba para a abertura da primeira parte do empreendimento".

Como as condições do financiamento do BNDES tornaram-se secretas, por determinação de Dilma NPS (Nosso Pinóquio de Saia), ninguém fora dos governos cubano e brasileiro sabe em que condições isso foi feito e quais são efetivamente os compromissos assumidos pelo governo cubano e os direitos do lado brasileiro. O sigilo imposto ao contrato impede também que se saiba, fora dos círculos restritos citados, se Cuba estará honrando ou não tais compromissos.  

Ninguém tem, portanto, a mínima condição de afirmar que o financiamento e a construção de Mariel foram ou são vantajosos para o Brasil. Isso de "antecipar-se aos investimentos americanos" não vale nada, a menos que se divulguem abertamente as eventuais vantagens que o Brasil terá no uso do porto por tê-lo financiado com dinheiro público em nível tão elevado. O fato inconteste é que nossos concorrentes americanos, comprovadamente muitíssimo mais eficientes que nós, terão um porto moderníssimo "made by Brazil" à sua disposição, a 160 km de sua costa, para desovar tudo de bom de que os cubanos mais necessitam. Com a enorme presença cubana em solo americano, nem toda ela de inimigos do regime cubano, tudo conspira para que os americanos façam uma enorme "American Pie" no fogão verde-amarelo de Mariel. Se o Brasil conseguir algumas migalhas, poderá ser um milagre.

Vejam um quadro resumo do comércio Brasil - Cuba feito pelo jornal gaúcho Zero Hora [daí a inclusão do Rio Grande do Sul (RS) nas estatísticas] - clique na imagem se quiser ampliá-la. Vê-se que, mesmo com o embargo americano, a importação cubana dos EUA vale quase 81% da correspondente do Brasil. Observa-se também a grande importância da China e da Espanha para Cuba hoje. O fato de um país europeu em dificuldades como a Espanha exportar para Cuba 66% mais que o Brasil demonstra nossa incompetência também no mercado cubano. Em 50 anos de embargo americano não soubemos conquistar um mercado cativo em Cuba, e a nossa pauta de exportações para os cubanos resume-se a commodities.



Obama enfrentará sérias dificuldades em 2015 para ter esse reatamento de relações plenamente aprovado pelo Congresso americano, que terá as duas Casas amplamente dominada pelos republicanos. Mas, creio que prevalecerá o pragmatismo dos americanos. O reatamento, além dos enormes dividendos políticos na região, trará inequívocos benefícios econômicos para a indústria e a agricultura americanas.

O The New York Times, o respeitável e respeitado formador de opinião nos EUA, já em outubro passado (11/10) defendia em editorial o fim do embargo sobre Cuba e afirmava que, pela primeira vez em 50 anos mudanças políticas nos EUA e mudanças de atitudes em Cuba, se tornava politicamente viável restabelecer relações diplomáticas formais entre os dois países e o término do embargo desprovido de sentido. Após a histórica decisão de Obama, o mesmo jornal em 17 de dezembro voltou a defender enfaticamente a decisão democrata.

Ainda é cedo para se ter uma ideia da real dimensão e extensão do impacto do reatamento EUA-Cuba na América Latina, em termos geopolíticos e econômicos, mas seria prudente o Brasil pensar seriamente sobre isso porque nada será mais como antes em Cuba.





sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

O naufrágio do Estado mexicano

[O texto abaixo, de Rafael Barajas e Pedro Miguel, foi publicado em 17/12 na edição brasileira do Le Monde Diplomatique. A violência reinante no México preocupa e revolta por si mesma, mas tem que ser observada de perto pelos países latino-americanos, pois representa uma escalada sem precedentes no domínio do tráfico sobre o país. O artigo abaixo nos traz ainda revelações não muito usuais sobre os bastidores da política mexicana e seu relacionamento com o tráfico. ]

O naufrágio do Estado mexicano

Rafael Barajas e Pedro Miguel (*) -- Le Monde Diplomatique Brasil, 17/12/2014

Tráfico de drogas, assassinatos, extorsão e, cada vez mais, administração pública. A participação de organizações criminosas no Estado mexicano parece não ter limites. O massacre de 43 estudantes em setembro catalisou a cólera da população.



Ilustração: Lollo

Quando, num país, um grupo de policiais detém 43 estudantes, desaparece com eles e os envia a um grupo criminoso organizado ligado às drogas para que este, à guisa de “lição”, os assassine, uma constatação se impõe: o Estado se transformou em narco-Estado, um sistema em que o crime organizado e o poder político são a partir de agora indissociáveis.

Quando essas mesmas forças da ordem metralham estudantes, matando seis e ferindo gravemente outros seis; quando elas se apoderam de um desses jovens, lhe arrancam a pele do rosto, tiram os olhos e o deixam estendido na rua para que seus colegas o vejam, outra evidência aparece: esse narco-Estado pratica uma forma de terrorismo.

Tudo isso aconteceu no sul do México, em Iguala, terceira cidade do estado de Guerrero. Ali, a polícia agrediu brutalmente um grupo de estudantes da Escola Normal Rural de Ayotzinapa e, a se acreditar nos testemunhos atualmente disponíveis, os conduziu para a morte. José Luis Abarca, prefeito de Iguala, e sua mulher, María de Los Ángeles (ligados a um cartel da região), suspeitos de serem os instigadores da operação, foram presos na terça-feira, 4 de novembro.

As escolas normais rurais, fundadas há oito décadas, têm por objetivo difundir um ensino de qualidade no campo oferecendo a jovens educadores, oriundos do meio camponês, a possibilidade de melhorar suas condições de vida. Esse duplo objetivo, herdado da Revolução Mexicana (1910-1917), enfrenta com força total o modelo econômico neoliberal, introduzido no país nos anos 1980. Segundo a lógica a ele subjacente, a educação pública freia o desenvolvimento do mercado do ensino, enquanto o campo abriga intoleráveis maus odores do passado (comunidades indígenas ou pequenos agricultores que entravam a expansão da agroindústria da exportação). Eis o motivo pelo qual as escolas normais rurais que sobrevivem no México, quinze ao todo, estão constantemente expostas à hostilidade, o que pode ser medido ao mesmo tempo pelos cortes orçamentários que sofrem e pela maneira como são mostradas pelos meios de comunicação e pelos dirigentes políticos: “viveiros de guerrilheiros”, segundo a ex-secretária-geral do Partido Revolucionário Institucional (PRI) Elba Esther Gordillo;1 refúgios “de gente delinquente e que não serve para nada”, em um debate na rede Televisa (1o dez. 2012); e, nos últimos tempos, “tocas do crime organizado”, para o jornalista Ricardo Alemán (El Universal, 7 out. 2014).

Tal como seus colegas das outras escolas normais rurais, os estudantes de Ayotzinapa lutam para assegurar a sobrevivência de sua instituição. Eles completam os magros subsídios do Estado – o equivalente a R$ 91 milhões anuais para cobrir os custos ligados a formação, alojamento e cobertura médica de pouco mais de quinhentos estudantes, quarenta formadores e seis empregados da administração – por meio de coletas de fundos. Em 28 de setembro de 2014, os estudantes de Ayotzinapa tinham ido a Iguala precisamente para realizar uma dessas coletas, quando foram sequestrados.

Eles teriam sido atacados com a fúria que os cartéis utilizam em relação a seus inimigos. Uma testemunha ocular – um policial – revelou que, apesar de feridos, os 43 estudantes teriam efetuado longos trajetos a pé, para, no final das contas, serem espancados, humilhados, regados com diesel e queimados vivos. Os corpos teriam se consumido durante 14 horas, até que só restassem cinzas, pequenas pontas de ossos e dentes.

Ainda que nós, mexicanos, estejamos habituados a informações chocantes (decapitações, execuções, torturas etc.), a indignação despertada por essa história não diminui. A certeza de que ela revela uma forma de terrorismo que emana de um poder no qual se misturam cartéis e líderes políticos coloca questões angustiantes: qual é a extensão do narco-Estado no México? Qual é a verdadeira amplitude da repressão política que ele coloca em ação?

O narco-Estado levanta um problema estrutural: o dinheiro da droga irriga a economia mexicana. Um estudo norte-americano e mexicano sobre os bens ilícitos, publicado em 2010, estima que a cada ano os cartéis transfiram entre US$ 19 bilhões e US$ 29 bilhões dos Estados Unidos para o México.2 Segundo a agência de segurança Kroll, essa cifra oscilaria entre US$ 25 bilhões e US$ 40 bilhões.3 O narcotráfico constituiria então a principal fonte de divisas do país, à frente das exportações de petróleo (US$ 25 bilhões) e das remessas de dinheiro de residentes no estrangeiro (também US$ 25 bilhões). Esse maná alimenta diretamente o sistema financeiro, coluna vertebral do modelo neoliberal. Secar a fonte conduziria ao colapso econômico do país. Em outras palavras, o México repousa sobre uma narcoeconomia, a qual não pode se manter sem a pilotagem adaptada de um narco-Estado.

Traficantes em campanha

Essa aliança entre o mundo político e o da droga se estende por todo o território. Em regiões inteiras – os estados de Sinaloa, Chihuahua, Michoacán (leia a reportagem na pág. 17), Guerrero, Tamaulipas, Veracruz e Oaxaca –, os cartéis fazem a lei. Eles impõem funcionários públicos, chefes de polícia, negociam com governadores. Pouco importa a filiação política dos representantes do Estado, a autoridade permanece nas mãos do crime organizado. Há algumas semanas, um vídeo divulgado pelo cartel dos Cavalheiros Templários mostrava Ricardo Vallejo Mora, filho do ex-governador de Michoacán, conversando tranquilamente com Servando Gómez Martínez, conhecido como “La Tuta”, o chefão da organização criminosa que grassa naquele estado.4 Nessas regiões, o crime reclama suas cotas, extorque, sequestra, estupra e mata em total impunidade. Os cidadãos vivem um inferno em comparação com o qual as alucinações de Hieronymus Bosch se parecem com desenhos para crianças. Em certos estados, surgiram milícias cidadãs de autodefesa.

Hoje existe uma grande quantidade de indicadores que demonstra que o narco-Estado gangrena as altas esferas da classe política. Nenhum partido nem região escapam a ele, sobretudo os mais importantes: o PRI, no poder, o Partido de Ação Nacionalista (PAN) e o Partido da Revolução Democrática (PRD). Os narcotraficantes não podem agir sem a cooperação dos homens políticos e dos funcionários públicos de todos os níveis. Durante as eleições, o dinheiro desempenha o papel de grande eleitor, além de as campanhas oferecerem um meio eficaz de lavar capital.

O caso do presidente Enrique Peña Nieto, do PRI (no poder desde 2012), preocupa particularmente. Nenhuma prova direta permite estabelecer seus laços com o crime organizado. No entanto, durante sua campanha, uma das mais onerosas da história mexicana, uma parte da imprensa revelou operações financeiras nebulosas, que se elevavam a milhões de dólares.5 O escândalo fez grande barulho no México, mas a “comunidade internacional” manteve o silêncio. Não se dispõe de instrumentos que permitam medir a totalidade dos custos gerados por Peña Nieto para ganhar a presidência em 2012. Em 5 de novembro de 2014, porém, uma comissão legislativa estabeleceu que o PRI tinha gasto mais de 4,5 bilhões de pesos (cerca de R$ 850 milhões, treze vezes o teto fixado por lei).6 A comissão não pôde investigar um bom número de operações ocultas, com as quais a soma com certeza teria sido superior. Oficialmente, ninguém sabe de onde provém esse dinheiro, o que preocupa num país gangrenado pelo narcotráfico. Especialmente porque, nos diversos territórios dominados pelo crime organizado, os cartéis locais apoiaram ativamente o PRI.7

Durante sua campanha, Peña Nieto prometeu lutar contra o narcotráfico, assegurando que os primeiros resultados se fariam sentir ao final de um ano. Isso foi há três anos. Muitos, entre os eleitores, esperavam que a política do PRI fosse mais eficaz que a de seu predecessor, mas o plano de segurança de Peña Nieto quase não difere do de Felipe Calderón: é Washington que impõe sua própria doutrina em termos de segurança. E os assassinatos continuam. Órgão do governo federal, o Sistema Nacional de Saúde Pública (SNSP) registrou, ao longo dos vinte primeiros meses do governo de Peña Nieto, 57.899 inquéritos preliminares sobre homicídio doloso.8

A violência perpetrada pelo crime organizado tende a relegar a segundo plano aquela exercida pelo Estado, que não é negligenciável. O governo afirma que Ayotzinapa é um caso isolado. Os mexicanos têm boas razões para pensar que não é, de forma alguma.

Quando era governador do estado do México, Peña Nieto ordenou, em 2006, a repressão dos habitantes de San Salvador Atenco, que havia anos se opunham à desapropriação de suas terras para a construção de um aeroporto. Durante essa operação, as forças da ordem cometeram inúmeras violações dos direitos humanos ainda impunes, notadamente múltiplas agressões sexuais contra as detentas.

Desde que Peña Nieto assumiu o poder, as prisões estão repletas de pessoas cujo único delito foi ter lutado por seus direitos, suas terras, seu patrimônio, e defendido sua família contra as agressões do crime organizado. Em agosto de 2014, o comitê Nestora Libre, uma associação de defesa de presos políticos, assinalou que desde dezembro de 2014 ao menos 350 pessoas tinham sido presas por motivos políticos.9 Em Michoacán, foi preso o doutor José Manuel Mireles, fundador de uma milícia de autodefesa contra o crime organizado, e 328 membros de seu grupo. No estado de Guerrero, a líder indigenista Nestora Salgado, treze policiais comunitários e quatro líderes populares que se opuseram à construção da barragem de La Parota foram colocados atrás das grades. Em Puebla, 33 pessoas apodrecem na prisão por terem feito oposição à construção de uma central termelétrica excessivamente poluidora. Na Cidade do México, em Quintana Roo, em Chiapas e em muitos outros estados, não se contam mais os prisioneiros políticos. No estado de Sonora e em Chiapas, cidadãos que se opunham à privatização da água foram encarcerados, tal como aqueles que pediam fertilizantes.

Um caso isolado?

Desde o início do mandato de Peña Nieto, as forças da ordem recorreram a práticas típicas da “guerra suja”, a repressão política na América Latina dos anos 1960 a 1980. Nepomuceno Moreno, membro do Movimento pela Paz com Justiça e Dignidade, foi torturado e assassinado no estado de Sonora quando participava de uma caravana pela paz. Em Chihuahua, sicários assassinaram Ismael Solorio e Manuelita Solis, que defendiam os recursos hidráulicos de sua região atormentada pelo apetite das companhias mineiras canadenses. No estado de Sinaloa, assassinaram Atilano Román, dirigente de um movimento de pessoas deslocadas pela construção da barragem Picachos. A lista é interminável...

As atrocidades cometidas em Iguala estimularam a cólera social. Esta se manifesta agora no seio de setores da população tradicionalmente apáticos e ameaça de maneira inédita a sobrevivência do regime. Nenhuma das armas tradicionais do arsenal do PRI –cooptação, midiatização, infiltração, provocação, difamação – conseguiu contê-la. Ao contrário, as tentativas de comprar o silêncio das famílias, os esboços de repressão, as incitações a atos de violência,10 a campanha realizada contra Andrés Manuel López Obrador, principal dirigente da oposição de esquerda, com o objetivo de lhe atribuir a responsabilidade pelas violências perpetradas contra os estudantes, e o coro dos meios de comunicação dominantes insistindo em defender a figura do presidente estimularam a cólera da população e exacerbaram seu desejo de mudança. 

Em 10 de novembro, o movimento criado em torno dos estudantes e de suas famílias levou a uma ação sem precedentes: o bloqueio, durante mais de três horas, do aeroporto internacional de Acapulco (no estado de Guerrero), destino turístico tradicional do país. Tudo leva a pensar que outras ações vão se suceder a essa, tendo como alvo outros aeroportos ou as autoestradas mais importantes da região.


O poder insiste em afirmar que Ayotzinapa é “um caso isolado”. O procurador-geral da República, Jesús Murillo Karam, repetiu isso no dia 7 de novembro, por ocasião de uma coletiva de imprensa, quando lhe perguntaram se ele considerava que os fatos significavam um crime de Estado. “Iguala não é o Estado”, respondeu. De fato, Iguala não é o Estado. Mas o que aconteceu na cidade de Guerrero revela aquilo que ele se tornou.

(*) Rafael Barajas e Pedro Miguel, jornalistas, são, respectivamente, caricaturista e escritor.

1  La Jornada, México, 6 ago. 2010.

2  John T. Morton, “Binational study of illicit goods” [Estudo binacional de mercadorias ilícitas], Departamento Americano de Segurança dos Sem-Teto, Washington, 3 jun. 2010.

3  Citado por Roberto González Amador em “Mueve el narco 40 mil mdd en México” [O narcotráfico movimenta US$ 40 bilhões no México], La Jornada, 1o out. 2009.

4  “La cumbre Vallejo-La Tuta” [A cúpula Vallejo-La Tuta]. Disponível em: www.youtube.com.

5  Roberto González Amador e Gustavo Castillo García, “Indicios de lavado de dinero con las tarjetas de Monex” [Indícios de lavagem de dinheiro com os cartões da Monex], La Jornada, 12 jul. 2012.

6  “Caso Monex: PRI gastó más de 4 mil 500 millones de pesos en campaña de 2012”, [Caso Monex: o PRI gastou mais de 4,5 milhões de pesos na campanha de 2012], Aristegui Noticias, México, 12 mar. 2012.

7  Cf., entre outros, “Denuncian amenazas del narco en Chihuahua para votar por el PRI” [Denúncias de ameaças do narcotráfico em Chihuahua para votar pelo PRI], Proceso, México, 4 jul. 2012.

8  “Los muertos con Peña llegan a 57 mil 899 en 20 meses; son 14 mil 205 más que en el mismo periodo de Calderón” [Os mortos com Peña chegam a 57.899 em vinte meses; são 14.205 a mais que no mesmo período de Calderón], 25 ago. 2014. Disponível em: www.sinembargo.mx.

9  Verónica Macías, “Denuncian más de 300 presos políticos en gobierno de Peña” [Denúncia sobre mais de trezentos presos políticos no governo Peña], El Economista, México, 20 ago. 2014.

10    Sábado, 8 de novembro, um grupo de supostos “manifestantes”, visivelmente protegidos pela polícia, tentou colocar fogo no Palácio Nacional, sede do poder executivo federal no México.