quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

A curta vida sagrada das kumaris, as peculiares meninas deusas do Nepal

[O Nepal é um país asiático extremamente interessante e de cenários inesquecíveis. Ali estive uma vez, em missão oficial pela Eletrobras, onde -- entre outras situações agradavelmente inusitadas -- nossa delegação recebeu a deferência honrosa de assistir pessoalmente a uma sessão do parlamento nepalês. Uma experiência memorável, por todos os seus significados. Ali tive também a oportunidade de ver a kumari, a menina deusa nepalesa que em horas fixas do dia chega à varanda de seu palácio, para ser vista e venerada por seus súditos e admirada pelos turistas. 

O Nepal é famoso internacionalmente por abrigar o Monte Everest, o pico mais elevado do planeta, e por ser a terra dos gurkhas, os lendários e temidos soldados nepaleses. Catmandu, a capital do Nepal, é uma cidade pequena e agradável de se visitar. Concentra em muito menor espaço e menos agressão aos olhos todos os contrastes da gigantesca Nova Delhi, por exemplo. O povo nepalês é extremamente acolhedor e simpático, e tem um interesse e carinho especiais pelo Brasil, graças especialmente ao futebol. Lembro-me bem de, a caminho de um templo dedicado a macacos como parte do roteiro cultural da visita, ter passado no meio do mato por uma casa em ruínas que tinha pintada na parede externa a camisa da nossa seleção!

Traduzo a seguir reportagem do site BBC Mundo sobre as kumaris. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]


Uma kumari, menina deusa  do Nepal. Sua testa ostenta 0 agni chakchhu -- o olho do fogo -- através do qual ela vê outras dimensões, o que lhe é permitido por sua condição de ser divino - (Foto: BBC Mundo)


Em muitas tradições religiosas, as deusas existem apenas no reino espiritual e são representadas por estátuas e ícones.

Mas, no Nepal elas vivem e respiram, e tomam a forma de meninas, que são conhecidas como kumaris (meninas virgens). Durante séculos, os hindus e os budistas de todo o vale de Catmandu têm adorado essas jovens, que creem ser possuídas pela deusa Taleju.

"Para que uma menina se converta em deusa, ela precisa ser perfeita e ter o coração e a alma puros" -- Chanira Bajracharya, ex-Kumari [de Patan]

A perfeição e a pureza da alma e do coração são alguns dos requisitos fundamentais  para converter-se em uma divindade viva, explicou à BBC Chanira Bajracharya, que foi nomeada kumari aos 5 anos e assim permaneceu até completar 15 anos.

"A Kumari tem que seguir umas regras, como por exemplo não sair de casa. Durante os festivais é carregada nos  braços e deve vestir uma  túnica vermelha". -- Chanira Bajracharya, ex-Kumari [de Patan]



Por ser selecionada em uma idade muito tenra, ser uma kumira não é uma tarefa fácil. Não lhe é permitido ir à escola, podem comunicar-se apenas com algumas poucas pessoas escolhidas, e tampouco pode caminhar em um espaço fora do palácio de adoração onde reside. Espera-se igualmente que permaneça quieta durante longas horas, enquanto dá suas bênção a milhares de visitantes durante os festivais [na foto acima, de Narendra Shrestha/EFE, uma kumari é adorada por um devoto durante o festival de Matya Patan em 2012].



Durante os festivais, os fiéis se aproximam da deusa para serem abençoados - (Foto: BBC Mundo)

Requisitos

A deusa kumari é escolhida entre as meninas pré-adolescentes da comunidade Newari, predominante no vale de Catmandu [segundo a Wikipédiaexistem tradicionalmente  três Kumaris simultaneamente no Nepal, radicadas nas cidades de PatanBhaktapur e Catmandu (a de Catmandu é a mais importante), selecionadas no clã Shakya, portanto supostamente uma parente distante do Buda Shakyamuni, e pertencente à comunidade Nepalesa de Newari;  a Kumari é venerada e idolatrada por alguns hinduístas do país e por budistas nepaleses, mas não por budistas tibetanos]. Por ser uma crença de origem budista e hindu, sacerdotes de ambas as religiões e um astrólogo certificam que a virgem escolhida tem os 32 lachhins -- atributos físicos e psicológicos -- como Buda.   

Muitos desses atributos têm que ver com traços de animal, como pernas de cervo ou voz clara como a de um pato. Além disso, a kumari eleita tem que ter dentes perfeitos, um histórico médico imaculado e cabelos e olhos bem negros.

A kumari real de Catmandu, diferentemente das outras duas [de Patan e Bhaktapur], deve ser do signo do zodíaco igual ao do presidente da República, para garantir a boa ventura do país. Ela tem também que superar provas que comprovem sua valentia, como a de velar cabeças de gado morto durante uma noite.

Reinado breve

O dever de uma kumari é o de proteger a cidade. Acredita-se que essa tradição começou por volta do século XII. Mas seu reinado é curto, dura poucos anos, termina quando ela tem sua primeira menstruação. Segundo a crença popular, nesse momento a deusa Taleju deixa seu corpo e começa a busca por outra menina virgem.


O reinado de uma kumari termina com sua primeira menstruação - (Foto: BBC Mundo)


Assim, portanto, a "ferida" a dessacraliza, pois se acredita que a deusa sai através dela. Chega então a parte mais difícil: a transição de deusa para uma adolescente normal. Para muitas kumaris, a mudança de divindade para um ser normal pode tornar-se traumatizante. Depois de anos praticamente isolada, tem que aprender a fazer amigos, andar pelas ruas e ir à escola.

"Um dia você é adorada como deusa, no dia seguinte você não é ninguém" - (frase de uma ex-kumari)


Chanira Bajracharya foi entronizada como kumari de Patan em 1954, quando tinha apenas dois anos de idade - (Foto: Google)


Ainda assim, a maioria das ex-kumaris defende que essa tradição ancestral deve continuar, pela identidade espiritual e cultural do Nepal.


Denúncia de grupos defensores de direitos humanos

As kumaris vivem confinadas em templos, nos quais membros de sua família se encarregam de seus cuidados. Seu confinamento durante toda a infância fez com que organizações de defesa de direitos humanos denunciassem sua situação.







Detalhes do palácio no qual reside a kumari de Catmandu, no centro da cidade - (Fotos: Google)


Subin Mulmi, advogado e humanista nepalês, disse à BBC que a rigorosa norma de pureza e isolamento aplicada à kumari é um atentado contra a liberdade e a educação das meninas. Em 2008, a Corte Suprema do país ordenou uma investigação sobre as condições de vida das kumaris. Concluída a investigação, a alta corte determinou que as jovens deviam ter mais liberdades, e que se lhes desse mais condições para a sua educação. Mas, apesar disso, a vida das kumaris hoje continua praticamente a mesma. 

Ainda assim, aos olhos de muitos nepaleses que vivem na pobreza, é melhor crescer na pele de uma deusa do que nas ruas, mesmo vivendo praticamente enclausurado.

Ver também, em espanhol:









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