[Reproduzo a seguir o contundente artigo do sociólogo Demétrio Magnoli sobre o acesso de Luiz Fux ao STF, publicado ontem no Globo e no Estadão. Ver postagem anterior sobre o assunto.]
Quando o réu é padrinho
Demétrio Magnoli - O Globo e Estado de S. Paulo - 06/12/2012
Luiz Fux é o centro do mundo de Luiz Fux. Na momentosa entrevista que
concedeu a Mônica Bergamo (Folha de S.Paulo, 2/12), o ministro do
Supremo Tribunal Federal (STF) revela suas peripécias rumo à meta
obsessiva de ocupar uma das 11 cadeiras da mais alta Corte. Fux procurou
fidalgos da nossa pobre República, como Delfim Netto, um signatário do
AI-5, Antônio Palocci, o ministro que violou o sigilo bancário de uma
testemunha, e João Pedro Stédile, líder de um movimento social pendurado
no cabide do poder, além de "empresários" que prezam tanto o acesso aos
palácios quanto o conforto do anonimato. O juiz não diz, apenas, que
fez política, como sempre fazem os candidatos ao Supremo. Confessa - é
essa a palavra! - que procurou padrinhos entre os poderosos réus do caso
mais importante que julgaria, caso sua empreitada fosse bem-sucedida.
José Dirceu e João Paulo Cunha apadrinharam a candidatura de Fux - o
magistrado que, no ano seguinte, ajudaria a condená-los a penas de
prisão em regime fechado.
Não é uma confissão espontânea, longe disso. "Querem me sacanear", disse
Fux a uma repórter na cerimônia de posse de Joaquim Barbosa. Dias
depois procurou o jornal para conceder a entrevista. A iniciativa é uma
reação à ofensiva da quadrilha incrustada no PT que, desde a proclamação
de seus votos sobre o núcleo político do mensalão, começou a vazar uma
mistura de informações e lendas sobre a heterodoxa campanha do juiz pela
indicação presidencial. "O pau vai cantar!", avisou Fux à repórter,
ajustando sua linguagem aos costumes do meio político em que
habitualmente circula.
No mundo de Fux, jornais devem ser instrumentos a serviço dos interesses
de Fux. Ele sabe escolher. A imprensa independente serve-lhe, hoje,
para apresentar sua versão das conversas perigosas que manteve com os
réus. A imprensa chapa-branca serviu-lhe, anteontem, para cristalizar
relações com os padrinhos, que já eram réus. O jornal Brasil Econômico
pertence à Ejesa/Ongoing, que tem Evanise Santos, namorada de José
Dirceu, como diretora de marketing institucional. Em 2010, o juiz em
campanha combinou com Evanise uma entrevista "de cinco páginas" à
publicação. Comenta-se no mercado de mídia que a entrada do grupo
português Ongoing no Brasil teria sido intermediada por Dirceu e
obedeceria à estratégia de montagem de uma rede de veículos de
comunicação alinhados ao governo.
O enigma de Capitu pertence ao domínio da grande arte; o de Fux, ao da
baixa política. Mas, assim como nunca saberemos se Capitu traiu
Bentinho, em Dom Casmurro, não se esclarecerá jamais se o magistrado
traiu os padrinhos quando proferiu suas sentenças no caso do mensalão.
Naturalmente, Fux nega ter discutido o processo nas conversas de
apadrinhamento, mas admite a hipótese do intercâmbio de frases de duplo
sentido num encontro com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo.
Sobre o fato incontroverso de que se reuniu com o réu José Dirceu para
solicitar apoio, suas explicações oscilam, contraditoriamente, entre os
excessos da implausibilidade ("naquele momento, eu não me lembrei" da
situação jurídica do interlocutor) e os da candura ("a pessoa, até ser
julgada, é inocente").
Durante o julgamento do mensalão, o Planalto e a cúpula petista fizeram
chegar à imprensa os sinais de sua fúria com os votos de ministros que,
na tóxica visão do governo, seriam devedores do favor da indicação. No
caso de Joaquim Barbosa, insinuou-se que haveria favor associado à cor
da pele, uma sugestão asquerosa que emana da natureza das políticas de
preferências raciais consagradas pelo mesmo Barbosa. No caso de Fux, que
o juiz-candidato assumira um compromisso informal de "matar no peito" o
espectro da condenação do núcleo político da quadrilha. Agora, pela
boca de Cândido Vaccarezza, ex-líder do governo na Câmara, interlocutor
do juiz e de João Paulo, segundo suas palavras, numa "reunião que me
parecia fechada", a insinuação contra Fux roça a fronteira da acusação.
Combinam-se, na operação difamatória, o impulso cego da vingança e um
cálculo político racional. A quadrilha e sua esfera de influência
pretendem manchar a reputação do juiz, mas também contestar a
legitimidade do Supremo na arena da opinião pública. Os condenados e
seus porta-bandeiras estão seguros de que o vício é idêntico à virtude.
Por isso não se preocupam com os estilhaços lógicos desprendidos por seu
bombardeio: segundo a versão que semeiam, o governo Dilma Rousseff
trocou a indicação de Fux pela promessa de um voto favorável a réus do
alto círculo do lulopetismo, algo que configuraria crime de
responsabilidade.
No Antropologia, Immanuel Kant define a virtude como "a força moral da
determinação de um ser humano no cumprimento de seu dever" e o vício,
como transgressão dos princípios da lei moral. A trajetória de Fux, das
reuniões com os padrinhos que eram réus às sessões de julgamento do
mensalão, esclarece os dois conceitos kantianos. Na campanha promíscua
de candidato ao Supremo, o juiz pode até não ter violado nenhuma lei,
mas transgrediu a "lei moral" que manda separar os interesses privados
do poder associado a uma posição pública ocupada ou almejada. Nos votos
sobre o núcleo político da quadrilha, os melhores proferidos no STF, o
magistrado não se limitou a aplicar a lei com competência e
brilhantismo: ele revelou, juntamente com a maioria de seus pares, a
"força moral" incomum de cumprir o dever fundamental dos juízes, que é o
de submeter os poderosos à ordem jurídica geral.
A ofensiva difamatória da quadrilha é uma nova, repetitiva, descarga do
lixo produzido por figuras deploráveis que, sem corar, se exibem como
arautos de sacrossantas causas políticas e sociais. A reação de Fux tem
suas utilidades. Serve como vacina contra a crença ingênua nos discursos
líricos do próprio Fux e como exposição involuntária do arcaísmo do
Brasil oficial, que ainda não sabe o significado de "coisa pública".
Apavorante estória. É de se tirar algumas conclusões práticas, desse aparente itinerário de sucesso:
ResponderExcluir1) A ambição sem escrúlulos e a vaidade desmedida não são privilégios dos idiotas.
2) Não se pode inferir que seja um caso isolado no STF.
3) Em foros jurídicos hierarquicamente inferiores, a situação deve ser pior.
4) Resumo da ópera: estamos perdidos e mal pagos, mas pagando bem a advocacia na busca de justiça. Qual justiça mesmo?