O manuscrito encontrado -- e cedido pelo Arquivo Nacional da Dinamarca para esta tradução, feita diretamente do idioma original -- não saiu, porém, da pena do escritor. Trata-se de uma cópia feita por um parente da viúva Bunkeflod --figura fundamental na formação de Andersen, que a ela dedica o texto-- e entregue à família Plum, cuja genealogia Brage estudava ao fazer o achado.
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Ilustração de Felipe Cohen para o conto "A Vela de Sebo", do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen
Para a senhora Bunkeflod
com a dedicação de seu
H. C. Andersen
Aquilo chiava e fervia enquanto o fogo dançava debaixo do caldeirão; era o berço da vela de sebo --e do interior do berço cálido surgiu a vela perfeita, elegante, brilhando branca e esguia. A julgar por seu aspecto, todos os que a contemplavam se convenciam de que ali estava a promessa de um futuro feliz e radioso -- uma promessa que, como todos viam muito bem, ela não deixaria de cumprir.
A ovelha --uma linda ovelhinha-- era a mãe da vela, enquanto o caldeirão onde se derretia o sebo era seu pai. Da mãe ela herdara o admirável corpo branco e uma certa noção da vida; mas do pai recebera o desejo de ter uma chama ardente, capaz de penetrar medula e ossos -- e de "brilhar" vida afora.
Sim, essa era sua feição, assim ela se formara: entregara-se à vida impregnada das melhores e mais luminosas esperanças. E nela encontrara um número incrivelmente vasto de outras estranhas criaturas às quais se misturara, desejosa de aprender a conhecer a vida e, quem sabe, dessa maneira encontrar o lugar que melhor lhe correspondia.
Contudo, acreditava demais no mundo; e o mundo só se interessa por si mesmo, não quer saber de velas de sebo... Porque, incapaz de entender qual era a finalidade da vela, o mundo tratou de usá-la em proveito próprio e manuseou-a de forma errada, sem cuidado; seus dedos sujos foram manchando cada vez mais a cor imaculada da inocência, que acabou desaparecendo por completo, coberta pela imundície do mundo inteiro, com o qual a vela mantivera um contato próximo demais, ela que nunca soubera a diferença entre o sujo e o limpo... mas que mesmo assim, por dentro, continuava inocente e pura.
Os falsos amigos perceberam que eram incapazes de atingir o que havia por dentro da vela e, furiosos, descartaram-na como uma coisa inútil. Mas a superfície externa, negra de sujeira, não deixou que os bons entrassem --os bons ficaram com medo de se contaminar com aquele pretume, não quiseram ficar manchados-- e por isso guardaram distância.
E a pobre vela de sebo ficou sozinha e abandonada, sem saber o que fazer. Sentia-se desprezada pelos bons; agora entendia que não passara de um instrumento para que os maus fossem mais fundo em sua maldade; sentiu-se, com isso, tremendamente infeliz, vendo que não dedicara a vida a nada de útil, talvez até tivesse conspurcado o que havia de melhor ao seu redor --era incapaz de compreender para que ou para onde afinal se dirigia, ou por que razão vivia neste mundo-- e estragado a si mesma e aos outros.
Cada vez mais e com maior profundidade ela refletia, mas quanto mais pensava, maior era seu abatimento, pois era incapaz de encontrar alguma coisa boa, algum sentido autêntico para sua existência -- ou de divisar a meta que lhe fora destinada ao nascer. -- Era como se aquela camada negra também tivesse coberto seus olhos.
Foi então que ela encontrou uma chamazinha, um pavio; ele conhecia a vela de sebo melhor do que ela própria; aquele pavio percebia as coisas com enorme clareza --inclusive através da camada externa -- e, lá dentro, encontrou uma grande bondade; sendo assim, aproximou-se dela; luminosas esperanças despertaram na vela; que se acendeu -- e o coração, dentro dela, derreteu-se.
A chama explodiu, como uma tocha de júbilo num matrimônio abençoado, e tudo ao redor se iluminou e ficou claro; desvendando os caminhos para os que a levavam, seus amigos de verdade -- que agora também buscavam a verdade guiados pelo clarão da vela. Contudo, o vigor do corpo também era suficiente para nutrir e carregar a chama ardente. -- Gotas e mais gotas, como sementes de uma nova vida, escorreram ao longo da vela e recobriram com sua substância -- a sujeira passada. Elas não eram apenas a matéria daquele matrimônio mas também seu enlace espiritual.
Agora a vela de sebo encontrara o lugar que lhe cabia na vida --mostrando que era uma vela de verdade, que brilhou durante muito tempo para sua própria alegria e a das outras criaturas...
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O manuscrito do primeiro conto de Hans Christian Andersen, "A Vela de Sebo" - (Fotos: Martin Bubandt).
Hans Christian Andersen em 1867 - (Foto: Wikipedia).
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