[O jeito peculiar de João Ubaldo Ribeiro de abordar o affair amoroso do NPA -- o Nosso Pinóquio Acrobata, Lula -- exposto pela imprensa no Rosegate.]
A base aliada na ilha
João Ubaldo Ribeiro - O Globo, 09/12/2012
Da mesma forma que o Bar de Espanha, o Mercado Municipal Santa Luzia, em
Itaparica, sempre foi palco de debates sobre todos os assuntos, de
biológicos a políticos. Entre suas paredes, ainda ecoam discursos de
Piroca Vieira, que denunciava tudo, todos e todas, conferências de Sete
Ratos, que testemunhou várias vezes jararacas cruzando com caramurus,
narrativas autobiográficas de Gueba, onde ele sempre provava que todo
mundo é avariado da ideia, e um sem-número de lembranças de afamados
tribunos conterrâneos que já se foram.
Os saudosistas se queixam que, depois do desaparecimento de vultos dessa
estatura, o Mercado nunca mais foi o ágora de antigamente. Comparado ao
dos velhos tempos, hoje seria até uma pasmaceira completa.
Exagero de velhotes inconformados com a marcha do tempo. Pois, ao
caminhar o visitante ali por trás da Matriz, bem antes de chegar ao
Mercado, não poderá deixar de descortinar ao longe as silhuetas dos
debatedores, uns dando passadas dramáticas para lá e para cá, outros
exibindo uma quironomia arrebatadora, outros ainda falando de rosto para
cima como quem clama aos céus.
À chegada, vê-se que os principais oradores são Ary de Maninha e Jacob
Branco, quer dizer, jogo duro para qualquer um. É cada anástrofe de
entontecer, cada aliteração de repenicar nos ouvidos, cada metáfora de
cair o queixo, cada citação de Castro Alves de arrepiar, cada perífrase
que mais parece uma serpentina — coisa que só se presenciando para
acreditar.
A palavra está com Jacob, que, além de orador, é grande estudioso da rica história da ilha. "A verdade histórica é que a instituição da rapariga" — disse ele —, "faz
parte indissolúvel de nossa mais nobre tradição! O feminismo e outros
movimentos deletérios, todos capitaneados por uns merdíocres
colonizados, aqui almejando implantar costumes exóticos, querem destruir
essa venerável tradição. Sabem os senhores que nossos ancestrais sempre
tiveram raparigas e muitos de nós, cala-te boca, somos descendentes de
grandes homens com grandes raparigas. Agora estão fazendo essa onda toda
com ele, inclusive gente que não tem moral para abrir a boca nesse
caso, como se o caso dele fosse alguma novidade. Vamos fazer oposição,
mas não oposição desleal! Aqui alguém tem coragem de me dizer que é
contra a rapariga?".
Antes que Ary, que já estava com aquela cara de águia de Haia que ele
faz antes de exibir seus dotes de orador, pudesse iniciar sua
intervenção, instalou-se intensa curiosidade e mesmo perplexidade, entre
os presentes. Quem era esse de quem Jacob falava?
Que história era aquela, de que rapariga se tratava, que grande novidade
se apresentava, alguém estava estranhando o alguém por ter uma rapariga
fora de casa, tudo dentro da normalidade? Anormal e pobre é que não têm
e, assim mesmo, muitos pobres se viram direitinho, não envergonham os
amigos. "— Pois é", disse Jacob, a voz ainda fremindo um pouco. "Eu sei que
ninguém aqui vai acreditar, mas é a pura verdade, saiu em todos os
jornais. Está todo mundo esculhambando Lula, porque dizem que
descobriram que ele tem uma amante".
"Uma amante só?" — interrompeu Alma Roxa, que até então estivera
concentrado num mocotó. "Deixe de ser besta, uma só não é nem pra
vereador! Você acha que um homem desses vira presidente e não vai papar
as mulheres, isso não existe! Triste seria, se ele não aproveitasse, era
caso de desconfiar! Ele está no papel dele! O sujeito se elege e vai
deixar passar essa oportunidade? Só doido, ali é de artista de cinema
pra cima, dá para ele fazer um grande catado no mulherio. Queria eu
estar no lugar dele, você ia ver, não ia sobrar uma, era elas chegando,
era eu traçando. Não, mentira sua, deve ser outra coisa, rapariga não".
"Rapariga, rapariga".
"Rapariga sustentada mesmo?"
"Aí é que está o problema", interveio finalmente Ary, que estivera se
coçando o tempo todo para falar. "É porque ela é sustentada por um
salário de funcionária pública, não sai nada do bolso dele".
"Mas taí, taí, e era pra sair? Eu pergunto novamente: o sujeito sobe na
política, chega até a ser presidente da República duas vezes e não pode
conseguir uma simples colocação para o pessoal dele? O indivíduo vai
trabalhar pra quê, se não for pra procurar suas melhoras e dos seus? Por
que é que ele vai gastar o dinheiro dele sem necessidade? É cada uma!"
"Mas não está certo, ele devia sustentar, é o correto. Todos os jornalistas que eu li concordam, ele…"
"É a voz dos invejosos e maledicentes, isso tudo é olho grande e
despeito, esses jornalistas são todos uns pés-rapados sem ter onde cair
morto e, quando pensam que o homem, além de estar por cima da carne-seca
e com puxa-saco por todo lado, ainda pega aquelas mulheres do Sul do
país, aí eles se lascam de inveja e ficam procurando difamar. Agora
fazem essas caras de santos do pau oco e cometem essa injustiça com o
rapaz".
O dia já estava alto, aí pelas nove horas, quando Alma Roxa encerrou
seus comentários. Mas, anunciou ele, agora ia recolher umas assinaturas
para o telegrama de solidariedade que resolvera enviar ao ex-presidente: "Cidadãos conscientes da Ilha de Itaparica prestam integral solidariedade Vossência caso rapariga pt Conte conosco".
"E eu vou oferecer a ele umas instalações aqui — concluiu Alma Roxa. — De
repente ele aceita, o mulherio vem todo atrás dele e a gente pega as
rebarbas. Eu posso não ser ele, mas sempre fui um homem de visão".
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