[O texto abaixo é da autoria de Daniela Chiaretti e foi publicado hoje no jornal Valor Econômico. Um exemplo a ser seguido pelo Brasil, país tropical em que ainda se veem (no Rio, por exemplo) prédios "modernos" com fachadas de vidro fumê do teto ao chão. A jornalista viajou à Alemanha a convite do governo alemão.]
O prédio da Daimler é o de cor amarelada e a textura do revestimento não
revela que aquilo é cerâmica. No interior do edifício, o pé direito
altíssimo termina em teto transparente. Cada feixe de luz natural é
bem-vindo, o clima é agradável e não se vê sinal de ar-condicionado. No
subsolo, 19 materiais diferentes são reciclados rotineiramente e, da
cobertura, 20 andares acima, a visão dos arredores é de jardins
suspensos: há verde em cada teto de edifício, um sistema natural de
coletores de água da chuva. Os prédios dessa praça são ícones de
sustentabilidade exibidos com orgulho pelos alemães - trata-se da
lendária Potsdamer Platz.
Em "Asas do Desejo", o clássico de Wim Wenders sobre a Berlim de 24 anos
atrás, com Muro e dividida, Potsdamer Platz é um pedaço de terra
arrasada no meio do nada. O retrato da desolação da Alemanha dividida
tornou-se o maior canteiro de obras da Europa logo depois da unificação.
No final dos anos 90, era símbolo da modernidade. Depois de passar pela prancheta de um grupo estelar de arquitetos
coordenados pelo italiano Renzo Piano - dez anos de construção e
centenas de investidores -, a Potsdamer Platz na versão moderna virou um
complexo de 19 prédios, 10 ruas, mais de 130 lojas, dois hotéis,
cinemas, três teatros, cassino e shopping. Tem uns 30 restaurantes,
bares e cafés. Vivem ali pelo menos dez mil pessoas. Foi inaugurada há
12 anos e é modelo de eficiência energética, reúso de água, materiais
sustentáveis e reciclagem de lixo tocada como um negócio lucrativo.
No subsolo, por exemplo, há um labirinto de cinco quilômetros por onde
chegam os artigos das lojas, os mantimentos dos restaurantes, os
equipamentos dos escritórios. São 160 a 180 vans todos os dias deixando
materiais em 90 rampas. É lá também onde todos depositam restos de
comida, pilhas, papéis, vidros. São 19 tipos de lixo diferentes
administrados pela empresa Alba. Só de papéis, são seis tipos diversos.
Os contêineres têm balanças automáticas - recebem e pesam,
automaticamente, todo o lixo depositado ali. Os clientes não pagam por
aquilo que pode ser reciclado, como vidros, plásticos e papéis, mas têm
que desembolsar quando deixam material orgânico ou baterias.
A fachada de cerâmica do prédio da Daimler não é apenas um capricho
arquitetônico, mas um recurso que garante umidade e boa temperatura
ambiente. Lamelas espalhadas por todo o interior do edifício funcionam
como escamas que refletem a luz natural e a levam aos escritórios. "É
por recursos assim que a construção consome a metade da energia de um
edifício convencional nessas dimensões", explica o geólogo Felix
Eisenhardt, do OrganisationsBureau Berlin, que faz visitas guiadas a
grupos de turistas interessados em conhecer exemplos de construções
eficientes na cidade. "Sustentabilidade também é uma solução de
arquitetura", diz ele.
A tinta das paredes que foi utilizada no prédio não podia ter poluentes
que comprometessem a qualidade do ar. Uma usina a 300 metros dali produz
calor e eletricidade a partir de gás natural e aquece ou resfria as
lojas e os escritórios do complexo. Grandes janelas garantem que a
atmosfera de fora se reproduza no interior dos escritórios. Um sistema
elétrico inteligente indica quando é preciso acender a luz. A ventilação
é natural e totalmente regulada por computadores.
A sustentabilidade obtida em Potsdamer Platz é um modelo que os alemães
estão tentando espalhar pelo país. A previsão é que, nas próximas duas
décadas, metade das moradias alemãs irá passar por uma reforma com o
objetivo de conseguir uma grande melhora na eficiência energética. O
estoque atual de casas a serem repaginadas é estimada em 38 milhões de
unidades - o que significa uma média de 950 mil casas reformadas ao ano.
O governo oferece uma linha de crédito subsidiada - um fundo total
estimado em € 1,5 bilhão gerido pelo banco de desenvolvimento alemão, o
KfW- para a reforma. Mais de 5.000 casas já usaram o benefício. Os
resultados são uma redução no consumo de energia de cerca de 85%.
As reformas das moradias compreendem melhorar o isolamento térmico das
paredes, dos telhados, dos sótãos e porões, substituir velhas janelas
por opções modernas com vidros duplos que isolam o ambiente, ter
sistemas de aquecimento conectados a algum tipo de energia renovável,
promover o máximo de ventilação natural.
Uma publicação da Agência de Energia Alemã (Dena, na sigla em alemão),
informa que a energia que se gasta para aquecer casas e esquentar a água
representa 40% do total de energia consumida no país, mas só uma parte
disso é realmente necessária. O estudo diz que ¾ das moradias alemãs
foram construídas antes das primeiras legislações sobre o assunto, e que
essas habitações consomem, em média, 245 kWh/m
2 ao ano. Os
novos prédios gastam a metade disso. As casas modernizadas de acordo com
a cartilha da eficiência energética conseguem resultados duas vezes
melhores do que os registrados pelos prédios novos.
O governo alemão tem várias metas de eficiência energética para as
próximas décadas. As construções existentes têm que reduzir sua atual
demanda por aquecimento em 20% em 2020, além de diminuir a demanda em
80%, em energia primária, em 2050. A taxa de reformas sob o prisma da
eficiência - conhecidas por "retrofit", no jargão do setor - têm que
saltar dos atuais 1% para 2,5% nos próximos anos.
"Trata-se de um setor de grande potencial", diz Henri Lukas,
especialista em eficiência energética em edifícios da Dena. A agência,
constituída no ano 2000 e que hoje tem 150 funcionários, é uma companhia
mista metade do governo e metade de empresas como a seguradora Allianz
ou o Deutsche Bank. Lukas cita, por exemplo, que cerca da metade das
construções na Alemanha terá que ser reformada nos próximos 20 anos por
motivos técnicos e que 75% das moradias foram construídas antes das
primeiras legislações sobre economia energética, de 1978. As fachadas de
80% das casas não têm isolamento, mais de 30 milhões de janelas não
possuem vidros duplos e só 12% dos sistemas de aquecimento existentes
são modernos.
"Mas poderíamos ser muito mais eficientes", rebate Martin Bornholdt, do
conselho executivo da Deneff, uma associação alemã para eficiência
energética. "As pessoas preferem economizar para comprar um carro bacana
do que para investir em sistemas melhores de energia para suas casas",
afirma. Bornholdt trabalha em uma entidade formada em 2010 e que faz
lobby pelas energias renováveis e por programas de eficiência
energética. Na sua opinião, faltam políticas públicas que estimulem os
consumidores a poupar energia. "A Alemanha não conseguirá cumprir sua
meta de eficiência energética em 2020 sem instrumentos mais atraentes
que convençam as pessoas a investir, por exemplo, em sistemas melhores
de isolamento térmico em suas casas", ilustra. Na sua opinião, falta
mais intervenção estatal e um pacote de estímulos. "Esse é um debate
difícil", reconhece.
Trata-se, também, de um ponto estratégico, em sua visão, para que o
governo alemão alcance os objetivos de seu plano energético de longo
prazo, lançado em setembro de 2010 e revisto em 2011, depois do acidente
nuclear em Fukushima, no Japão. Na ocasião, o governo de Angela Merkel
decidiu voltar atrás em uma decisão anterior e definiu que o país não
terá mais energia nuclear depois de 2022. "Eficiência energética é a
peça-chave nessa equação", acredita Bornholdt, referindo-se à rota que a
Alemanha terá que seguir para conseguir substituir a energia nuclear.
Segundo ele, para dar impulso à maior eficiência energética, é preciso
desenvolver um mercado de serviços de energia, promover campanhas que
eduquem os consumidores, desenvolver selos e lançar mecanismos
financeiros que estimulem as reformas.
Nos edifícios da Potsdamer Platz, o sofisticado sistema de ventilação
consegue reduzir pela metade o uso de energia primária. Não se usa
ar-condicionado convencional. Por ali, a sustentabilidade vai além do
uso energético mais racional. Os jardins que existem em cada teto servem
para coletar milhões de litros de água que vão parar em oito grandes
cisternas e economizam 20 mil metros cúbicos por ano. Cerca de 80% da
água da chuva coletada acabam evaporando, mas o resto vai para as
cisternas que estão a oito metros da superfície, explica o geólogo
Eisenhardt. A água pluvial é tratada e usada nos espelhos d'água do
complexo. Depois é reutilizada nos banheiros e entra nos sistemas que
aquecem ou resfriam os andares dos escritórios.
Mais de 100 mil pessoas passam pela Potsdamer Platz todos os dias e não
há congestionamentos nas redondezas, mesmo com as centenas de vans que
abastecem o complexo, um sintoma que a logística do subsolo funciona
bem. As construções sustentáveis da região também têm outros ganhos,
além da conta da luz e da água: as emissões de CO
2 foram reduzidas em 70% em comparação às estruturas similares erguidas pela cartilha arquitetônica convencional.
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