O poeta Carlos Drummond de Andrade concedeu esta entrevista à pesquisadora Maria Lúcia do Pazo no dia 16 de junho de 1984. Na ocasião,
Maria Lúcia estudava o erotismo na poesia de Drummond para uma tese de
doutorado em Comunicação, na Universidade Federal do Rio de Janeiro,
defendida em 1992.
O trabalho nunca foi publicado, mas a pesquisadora doou uma cópia para a
Biblioteca Nacional. Esta entrevista, que é parte integrante da tese,
permaneceu inédita desde então, arquivada na divisão de Manuscritos da
biblioteca. Maria Lúcia tem hoje 80 anos e mora em Botafogo, zona sul do
Rio.
Carlos, em "Toada de amor", no verso "amor cachorro bandido trem"
esse "trem" é linguajar mineiro para "coisa" ou é trem mesmo, com suas
implicações de velocidade, possibilidade de descarrilar, bilhete de ida e
volta, como no amor?
"Trem", na linguagem mineira coloquial, significava muita coisa. Em
primeiro lugar significava mesmo "coisa", indiscriminadamente. Depois
significava uma forma depreciativa, e é mais ou menos nessa acepção que
eu chamo o amor de cachorro, bandido e trem, como ofensa grave. Se eu
não tivesse eliminado até as vírgulas, esse verso exigiria mais ênfase
na leitura. Não quis dar essa entonação. Limitei-me a enumerar as
palavras. Mas "trem" era tudo -- por exemplo, uma coisa que não era
fácil de definir é um "trem", uma "coisa", um "troço" -- "trem" era,
portanto, sinônimo de "troço", que veio depois.
Como a interpretação da poesia é muito lata -- a poesia publicada já não
pertence exclusivamente ao autor e sim a uma sociedade, a um condomínio
entre o autor e o leitor ou leitores -- a interpretação pode ser dada
no sentido mais extenso e sugerir, como sugeriu a você, a imagem do trem
de ferro, que pode ir pelos trilhos calmamente e pode também
descarrilar e produzir os maiores desastres. Nesse sentido, o amor pode ser considerado trem de ferro, como um itinerário, uma viagem muito atormentada.
No mesmo poema, "Toada de Amor", os dois últimos versos: "Mariquita,
dá cá o pito,/ No teu pito está o infinito". Constituem-se numa forma,
digamos, coloquial do último verso do poema erótico inédito "Mimosa Boca
Errante", que diz: "Já sei a eternidade: é puro orgasmo"?
Cotejada com a palavra "eternidade", realmente apresenta certa
similitude. No caso do poema "Mariquita dá cá o pito" -- me recordo
muito bem disso -- é mera alusão a um conto de Monteiro Lobato em que
ele narra a estória de um vigário do interior muito relaxado, que andava
de chinelos, fumava cachimbo, em suma, tinha uma liberdade muito grande
de viver na casa dele, quando chega o bispo para uma visita paroquial.
Ele então arruma a casa e prepara-se para receber o visitante com toda a
cerimônia. A certa altura, o bispo vira-se para ele e pede um cigarro
ou um pedaço de fumo de rolo, uma coisa assim. Ele fica satisfeito,
assim, e chama a comadre, que estava nos fundos da casa, e diz: dá cá o
pito, quer dizer, aquela expressão que ele não se permitiria usar diante
de uma autoridade eclesiástica, ficou sendo familiar porque a pessoa
autorizava isso.
A ideia que eu tive em mente foi isso, repetir - "Mariquita dá cá o
pito" - e acrescentar, já agora como anotação minha sugerindo que o pito
era da maior importância, era o infinito, quer dizer, o fumo, o prazer
do fumo, do cigarro ou do cachimbo, cria uma espécie de sonho que pode
ser considerado uma forma de infinito.
Esse poema "Mimosa boca errante" faz parte da coleção de poemas
eróticos intitulada "O Amor Natural". Você poderia dizer alguma coisa
sobre a sua intenção de não publicá-los no momento e a permissão que me
deu, tão gentilmente, para que pudessem ser abordados em minha tese de
doutorado sobre o erotismo na poesia de Carlos Drummond de Andrade?
Bem, a autorização e mesmo a sugestão que fiz de lhe mostrar esses
poemas para serem aproveitados na sua tese, a meu ver, é uma coisa óbvia
porque se o objeto da tese é exatamente o erotismo na minha poesia, não
havia nada mais representativo do que esse volume inédito porque ele
trata exclusivamente desse tema em suas muitas variações. Já na minha
obra completa, publicada, o erotismo aparece aqui e ali de uma maneira
mais ou menos intensa ou declarada mas não tem esse sentido assim de
tema único que "O Amor Natural" possui.
Não quis publicar até agora e hesito ainda em publicar -- ou antes,
resolvi não publicar -- pela circunstância de que o mundo foi invadido
por uma onda de erotismo, logo depois convertida em pornografia, se é
que a onda de pornografia não veio antes.
O fato é que hoje não se distingue mais o erotismo propriamente dito e a
pornografia, que é uma deturpação da noção pura de erotismo. Se eu
publicasse agora o livro iria enfrentar, por assim dizer, um elenco
bastante numeroso de livros em que a poesia chamada erótica não é mais
do que poesia pornográfica e às vezes nem isso, porque é uma poesia mal
feita, sem nenhuma noção poética.
Não quis, no momento em que há maior abertura, publicar esse livro
porque não queria ser confundido com outros que exploram esses temas de
maneira que eu considero de mau gosto, inferior.
Já me advertiram que a demora em publicar vai importar talvez num futuro
próximo, em que meus poemas já não ofereçam nenhuma curiosidade porque o
tema já estará tão batido, já se esgotou tanto essa série de assuntos e
a educação sexual de uma forma errada ou certa se generalizou de tal
modo -- na escola, no rádio, na televisão e na casa de família - que o
meu livro de poemas correrá o risco de constituir-se em livro de classe
para jardim de infância...
Carlos, em seu poema "Tarde de Maio" referindo-se ao amor, você diz:
"...há tanto lavou a memória
Das impurezas de barro e folha em que repousava"
Esse barro e essa folha seriam alusões, respectivamente, ao barro do
qual teria sido feito Adão e à folha de parreira que, dizem, serviu para
encobrir o sexo de Eva?
Bem, admito essa interpretação porque, como disse, o texto literário,
principalmente o texto poético, é oferecido a diferentes pessoas com
sensibilidades e culturas distintas, que podem aproximá-lo de outras
ideias ou de outras vivências que tenham tido. Neste caso é
perfeitamente razoável comparar este barro e folha do texto àqueles que
você citou.
Agora, tanto quanto eu posso me lembrar -- 20 ou 30 anos depois, os
autores não se dão conta, não se lembram das circunstâncias em que os
versos foram feitos. Às vezes é uma motivação imediata, direta; às vezes
é uma sugestão que ocorre como que fantasiosamente e que desperta o
poema.
Quer me parecer, tanto quanto posso me lembrar ou esquecer, que aí eu me
referia realmente a certas circunstâncias em que a natureza se
apresenta na sua forma mais simples: uma estrada e, como eu sou uma
pessoa do interior -- meu pai era fazendeiro -- guardo na lembrança as
estradas barrentas por onde a gente viajava a cavalo até chegar à cidade
onde havia a estrada de ferro, era o caminho do colégio.
A imagem de barro, de folhas caídas das árvores, essas duas
circunstâncias estão ligadas na minha memória sentimental e existencial a
acidentes da infância e me parece que teria cabimento no caso, associar
as duas imagens imediatas à idéia do amor, que evolui entre
circunstâncias muito pobres, às vezes num meio hostil, em ambiente
humilde ou que não ofereça nenhum aspecto mais agradável.
Donde o barro e a folha devem ser entendidos, a meu ver, como intenção
do autor, no sentido literal. Mas pela força que eu disse a você que o
poema adquire sendo lido, interpretado, digerido, deglutido pelo leitor,
e também porque muitas vezes a intenção do poeta é subliminar, ele não
percebe, no momento em que está criando, que na verdade obedeça a umas
tantas reminiscências, umas tantas visões da vida, e essa aproximação só
pode ser detectada pelo leitor.
Acho que a interpretação pode ser aceita.
A Igreja Católica teve que se decidir a justificar a sexualidade para
permitir a reprodução, mas todos nós sabemos das restrições que o
cristianismo impôs ao sexo, associando-o com o pecado. Como você vê
então, que forçosamente tenha havido incesto na origem do mundo
porquanto, Adão e Eva, ou foram irmãos ou foram pai e filha ou ainda mãe
e filho, tal como na mitologia universal que é pecaminosa, pelo menos
para a Igreja Católica?
Confesso a você que nunca me havia ocorrido essa ideia de que Adão foi
incestuoso, mas é realmente curiosa e pode ser sustentada.
O problema do incesto é, a meu ver, cultural. Haverá países ou
civilizações em que o incesto era permitido porque não havia a noção de
família que nós cultivamos, e que é, por assim dizer, básica na formação
da sociedade ocidental. Mesmo nesta, segundo li -- não me recordo onde
-- a França é um país onde não há penalidades para o incesto. Não é
considerado crime. Só é criminoso, só é passível de penalidade, a pessoa
que faz provocação sexual a parentes. Mesmo assim, se esses parentes
tiverem, parece, mais de quatorze anos, quer dizer, quando eles já são
núbeis, já são adultos, então podem resistir muito bem à provocação.
Há casos de dispensa de vínculo para autorização de casamento de cunhado
e cunhada, de tio e sobrinha. O casamento de tio e sobrinha existiu no
Brasil até, creio, a Proclamação da República.
Na minha família há numerosos casos de tios casados com sobrinhas, por
uma razão muito simples -- o casamento tinha de ser feito dentro da
mesma família -- o clã era poderoso, não se admitia a intromissão de
elementos estranhos, porque quebravam a tradição da família e
principalmente porque entravam no uso e gozo da fortuna que era um bem
coletivo da família.
O incesto é muito relativo. Parece que em povos primitivos não há essa
noção e ele é permitido. Realmente a Igreja fez disso um cavalo de
batalha, como faz de muitas outras coisas. Ainda hoje, para meu pasmo,
li nos jornais que o Papa considera, como direi, não digo criminoso, mas
considera desaconselhável e reprova a relação sexual entre marido e
mulher, que não seja destinada à procriação. Então a liberdade, os
prazeres que o casal possa usufruir, ele simplesmente os condena porque
são prazeres gratuitos.
Carlos, o escorpião do poema "Signo" é o desejo, mas o escorpião do
poema "Confissão" é o pecado. Durante muito tempo associou-se sexo e
pecado, hoje, não mais. Por que nos culpamos tanto por termos outrora
feito dele um pecado? O excessivo discurso sobre sexo de nossos dias não
será um erro para corrigir outro?
Sem dúvida, porque, sobretudo, é um discurso muito confuso, muito
enrolado. Com relação ao escorpião, devo dizer a você que o escorpião
faz parte da minha vida, porque sou do signo de escorpião e essa palavra
-- escorpião -- é terrível para os moradores do interior de Minas onde
cidades inteiras eram ameaçadas, invadidas por escorpiões. Até Belo Horizonte, capital, era famosa pelo número de escorpiões que
possuía, tanto que a Prefeitura pagava -- o Nava conta isso nas memórias
-- não sei quantos réis, 200 réis ou mil réis, a quem levasse um
escorpião. Era o preço base. As pessoas então passavam a caçar
escorpiões como meio de vida ou pelo menos para completar o seu
orçamento.
O escorpião é muito ligado à minha vida por essa razão, embora eu não
acredite na importância dos signos do zodíaco -- acho isso uma coisa
mais literária ou mágica do que outra coisa, não é nada racional -- o
escorpião de que eu fugia no porão lá de casa, com medo de ser mordido
por ele, era paradoxalmente um bicho que eu trazia dentro de mim, por
ter nascido dentro desse signo, compreendeu?
Essa é a interpretação que eu dou. Já o poema "Confissão" -- "Escorpião
mordendo a alma, o pecado graúdo acrescido do outro de omiti-lo, aflora
noite alta em avenidas úmidas de lágrimas, escorpião mordendo a alma da
pequena cidade". Aí, tanto quando eu posso me lembrar, era associando à
ideia do escorpião, do animalzinho perverso, maligno da nossa cidade, ao
escorpião do pecado, à tortura, à angústia que a criança do interior,
educada no princípio do século, sentia com a noção de pecado.
Você pode imaginar como nós sofríamos porque não tínhamos ainda bastante
lucidez de espírito para julgar na época o que fosse ou não pecado. Se
era pecado mastigar a hóstia no ato da comunhão, muito mais pecado seria
praticar, digamos, o onanismo, ou tentar ver o nu feminino, o que aliás
era impraticável.
Mas essas coisas, essas tentações da idade, da infância e da
adolescência, eram todas consideradas pecados graves. Era como se o
sentimento desse pecado passasse a ser pecado realmente, porque nós o
sentíamos como tal. Isso nos aferroava a alma como um escorpião.
Entendo como uma das características da sua poesia, o movimento de lançadeira, explícito por exemplo, no poema "Ciclo".
"Sorrimos para as mulheres bojudas que passam como cargueiros adernando.
(...) Sorrimos também -- mas sem interesse -- para as mulheres bojudas que passam,
cargueiros adernando em mar de promessa contínua".
Em outros poemas do tipo "Bolero de Ravel", o movimento de lançadeira está explicito, mas não tanto:
"Círculo ardente (onde) nossa vida para sempre está presa
Está presa..."
Você admite estabelecer uma relação entre esse movimento de
lançadeira e o desejo sexual com base no intermitente mas perene que
caracteriza ambos?
Bem, esta é uma descoberta que você fez e que não me havia acudido,
sabe? Gosto muito de ver a reação do leitor, porque, às vezes, ele
ilumina o autor. O leitor percebe aquilo que o autor não tinha cogitado,
de modo que eu admito.
No poema "A um Hotel em Demolição", a imagem sensual e nostálgica expressa nos versos:
"Bonbonniéres onde o papel de prata
Faz serenata em boca de mulheres"
É uma alusão ao bombom "Serenata do Amor" que, à semelhança do Hotel
Avenida, faz parte de um passado onde o amor era garoto e a cidade, ao
invés de cruel, conseguia ser tradicional?
Não me recordo se tinha em mente este bombom chamado "Serenata do Amor",
que se tornou tão popular. É possível que me ocorresse a aproximação. O
que me parece que tentei fazer foi apenas criar uma rima interna --
prata, no final do verso, rimando como serenata, dentro de um outro
verso -- porque, como você sabe, o bombom é, em geral, embrulhado
naquele papel prateado que fazia as delícias da gente na infância.
Quantas vezes eu alisava aquele pequeno papel prateado e o guardava não
sei pra quê, já que não tinha a menor utilidade...
Mas a serenata, embora de mulheres, é porque as mulheres, gostando de
bombons, sentiriam um prazer, a meu ver, correspondente àquele que
sentiriam ouvindo a serenata dos seus apaixonados na porta da rua.
Carlos, você podia contar de novo aquele caso de zoofilia do poema "O Sátiro": "Hildebrando insaciável comedor de galinha"?
Não me fale, isso é um dos maiores dramas da minha vida literária que
extrapolou para a vida comum. Cometi a imprudência de recordar um fato
ocorrido na minha infância, em que um rapaz morador na minha cidade do
interior, foi acusado de praticar o ato sexual com uma pobre galinha, se
é que não fazia isso frequentemente. Talvez fizesse, pois lhe tinham
dado o apelido de Dedê Galo, o que faz supor que a prática era
costumeira.
Em suma, com a maior falta de critério, eu contei essa estória sem
sequer me dar ao trabalho de trocar o nome da pessoa. Realmente,
confesso, foi uma falha minha porque magoei uma pessoa mais idosa do que
eu, pois eu era garoto quando ele era rapaz, e isso irritou-o muito.
Ele resolveu tomar uma desforra. Deu uma entrevista em que acusava minha
família de coisas tenebrosas. Chocou-me ele ter colocado na dança minha
família, que não tinha culpa nenhuma no cartório, tanto mais que os
fatos que ele mencionava tinham sido deturpados. Ainda que houvesse um
laivo de verdade, não correspondiam à realidade. Era uma ofensa
gratuita. Pelo que, uma das pessoas visadas por ele, meu irmão, pessoa
muito briosa e assomada, resolveu comprar a briga, mas não para me
defender, e sim defendendo-se e acusando o tal Dedê.
Daí resultou uma troca de cartas muito desagradável e eu fui obrigado,
me senti no dever de liquidar o assunto escrevendo ao jornal que havia
publicado a entrevista da pessoa.
Pedi-lhe para fazer aquilo que o Eça de Queirós pediu a Pinheiro Chagas.
Há um romance de Eça em que o Pinheiro Chagas se sentiu retratado de
maneira mordaz. Reclamou, e Eça então escreveu um artigo muito
interessante que terminava assim: "Por favor, retire-se da minha
personagem". Isso não ficou assim porque, durante um mês ou dois, em
seguida, invariavelmente depois do almoço, o telefone tocava e uma voz
desconhecida me dizia os piores desaforos. Eu ouvia aquilo com a
humildade devida e também porque me parecia que essa pessoa teria algum
motivo para se ofender. Não seria um ataque gratuito; ela devia ter-se
ferido por alguma coisa que eu fiz.
Até que afinal liguei os fatos -- certa lentidão mental -- e a última
vez que essa pessoa me falou eu reagi com uma série de xingamentos
terríveis que nunca mais ele falou. Então exorcizei essa pessoa e
parece, pus ponto final na estória, que foi muito desagradável, porque
confesso a você que eu não tinha intenção de ferir ninguém. Não custava
nada alterar a qualificação dele, o nome e a profissão. Foi mesmo, da
minha parte, um erro.
Como você explica a perenidade da sua poesia com imagens para o seio materno, do tipo:
"Sorvetilúnio
Para o resto da vida, queijo, flã
Níveo de gelatina aldebarã".
Imagens das quais transborda uma sensualidade casta que, infelizmente, há muito foi abolida?
Esse sorvetilúnio, o queijo, o flã níveo de gelatina aldebarã, realmente
são imagens um pouco desconexas, à primeira vista, surpreendentes. Mas
como se referem à criança que viu o eclipse de 1913, o que eu quis fazer
foi mergulhar na consciência infantil e despertar nela a ideia de um
sorvete do luar e das coisas que as crianças gostam, como o queijo e o
flã. Usei aldebarã porque, tratando-se de eclipse, portanto de um
episódio ocorrido no espaço celeste, a estrela aldebarã podia ser
introduzida aí. São recursos poéticos, um pouco arbitrários, mas que
obedecem mais a um objetivo estético do que propriamente à intenção de
fazer qualquer referência ao seio materno ou qualquer outra conotação de
ordem sexual. Agora, mais uma vez, eu insisto em que o leitor tem o
direito.
O Drummond de 1984 combina mais com a sensualidade marota da
Elzirardente, uma Elzira que, pelo visto, queimava feito aguardente do
poema "O Doutor Ausente", ou com a sensualidade recatada, quase pudor,
dos "joelhos em tulipas", das "grades de seda", "da penugem de braço de
namorada" e tantas outras imagens do tipo das três relacionadas acima?
A Elzirardente, para ser bem explicada, eu devo assinalar o seguinte:
esses versos que você cita são de três livros que eu escrevi com as
minhas memórias infantis, quer dizer, são fatos realmente acontecidos,
situações verdadeiras que adaptei, naturalmente com as liberdades que o
poeta se permite.
Em primeiro lugar, não quanto ao Hildebrando, nos demais fui trocando
nomes e situações, para que o fato em si aparecesse sem essa moldura de
realidade. No caso, era um delegado de polícia, formado em direito, excelente homem
de boa família, que tinha uma companheira, mulher humilde que vivia com
ele. Ao mesmo tempo esse homem, por uma espécie de decadência devida à
falta de estímulo intelectual do meio, à vida limitada, sem horizonte,
sem nada, começou a beber, e do vinho bom passou à cachaça, que é o
uísque dos pobres.
Então, nessa Elzirardente, há uma conotação com aguardente porque a
mulher que naturalmente despertava desejos eróticos podia ser
considerada uma espécie de cachaça, que ele sorvia a tragos mais ou
menos largos, conforme a inspiração.
O elemento surpresa que você introduz em poemas como, por exemplo, "O Quarto em Desordem", pela menção:
"Cavalo solto pela cama
A passear o peito de quem ama."
Fechando um soneto que, eu diria, clássico, pode ser entendido como um dado erótico da poesia modernista?
Em primeiro lugar, confesso a você que não considero clássico o meu
soneto porque, repare, ele não tem um esquema de rimas regular. Então
dificilmente merece esse nome.
Agora, "o cavalo solto pela cama" é a imagem dos movimentos convulsos,
da agitação frenética de uma atividade sexual na cama. É isso que tentei
fazer. Se é um dado do Modernismo, eu não poderia ter essa pretensão
porque nunca tive em mente estabelecer padrões para a poesia modernista.
Sou um beneficiário do Modernismo, uma das pessoas que vieram depois,
não um inovador propriamente.
Mas o fato de ser um soneto, que não é sua forma usual de poesia, já não seria um dado diferente?
Realmente o soneto não é frequente na minha poesia, mas eu acho que não é
frequente na obra dos poetas modernistas em geral, pelo menos daqueles a
partir da geração de 30, a que pertenço.
Você pode folhear toda a obra de um Augusto Frederico Schmidt e não
encontra um soneto. Encontra algumas composições em catorze versos com a
disposição clássica do soneto, mas sem o espírito dele.
O soneto tem uma estrutura, uma organização interna, a começar pela
exigência de métrica e de rima, que os poetas modernos, em geral, não
observam. Outro é o Murilo Mendes. Os sonetos de Murilo, que eu saiba,
não existem. Se houver algum, como também os do Schimidt, não são
sonetos regulares. Na minha obra também, o soneto é pouco frequente.
Isso pela razão de que o Modernismo abriu avenidas novas em matéria de
versificação. Ele deu um impulso muito grande ao verso livre. É um verso
talvez mais difícil de manejar, porque não tem limites, não há
legislação técnica sobre o verso livre. Há quem diga que ele alcança o
limite do ato de respirar da pessoa. Quer dizer, se a pessoa não
consegue enunciar o verso de um simples golpe, ele não é mais um verso,
serão dois ou três versos.
Então, o fato de a metrificação comum alcançar, no máximo, doze sílabas
-- só os versos chamados "bárbaros", de Carlos Magalhães de Azeredo, que
foi nosso embaixador em Roma, é que tinham mais do que doze sílabas --
mas aí já é uma metrificação latina, que não temos na língua portuguesa,
oferece ao soneto alguns problemas técnicos que não interessam ao
Modernismo.
Por outro lado, é preciso saber fazer um soneto. Acredito que eu tenha
sentido certa humilhação, vendo que os meus poemas não eram sonetos e
que na realidade eu não os fazia. Então experimentei fazer. Acredito que
haja na minha obra toda, no máximo, vinte sonetos. Por outro lado,
existe a obra de um poeta modernista chamado Alphonsus de Guimarães
Filho, já de uma terceira geração, em que a quase totalidade é de
sonetos. Ele se exprime muito mais no soneto do que no verso livre, ao
contrário do que acontece comigo, que me sinto mais à vontade no verso
livre.
O fato de ser um soneto, a meu ver, significa apenas o seguinte: na ocasião, eu senti um impulso natural para fazê-lo.
Em geral, a composição poética se faz por uma espécie de caminho natural
-- a pessoa se deixa levar por um ritmo. De certo modo, antes de
escrever o poema ela já traçou um esquema mental pelo qual o poema
aparece organizado em alexandrinos, em decassílabos, em oitavas, em
décimas, rimado ou não rimado. O que se tem a dizer, normalmente, é
condicionado por esse esquema mental que se elabora um pouco
misteriosamente. Acredito que, no meu caso, o soneto possa ser considerado uma exceção.
No poema "Mulher Vestida de Homem" o nome fictício Márgara encobre a
personagem de um caso real dessa inclinação para vestir roupas do sexo
oposto que Havelock Ellis denominou "eonismo", ou o poeta tirou da
imaginação a fascinante mulher-homem que à noite se travestia para
compensar a fragilidade na cama?
Não, a Márgara existiu realmente. É um poema de um dos meus livros de
poemas da infância, em que as coisas que me impressionaram muito
aparecem agora, na idade madura, transportadas para a poesia.
Não tinha esse nome de Márgara porque já então eu devo ter tido bastante
experiência para não incidir no erro do "Sátiro" -- não quis dar nome
aos bois -- mas era uma coisa que me parecia muito estranha.
Constava (e minha mãe mesmo dizia isso com certo assombro) que
determinada senhora da sociedade itabirana, à noite se vestia de homem e
saía pelas ruas não se sabe bem para fazer o quê -- ela não ia praticar
nenhum ato estranho porque não havia condições -- as pessoas todas
estavam dormindo. No interior se dormia cedo, não sei se ainda se faz
isso, por causa da televisão.
Essa mulher era realmente estranha, porque tinha, não digo a pretensão
de parecer-se com os homens, mas é possível que a inspirasse certo
sentimento de inferioridade que a mulher experimentava até o começo do
século. Sentia-se dependente do homem, obrigada a obedecer aos seus
caprichos de toda natureza. E a calça comprida, o paletó, eram símbolos
de masculinidade.
Não se admitia que um homem vestisse saia, que usasse aquele saiote
escocês dos meus antepassados. Era obrigatório o terno completo.
Uma mulher tentando, à noite, quando todos já estavam dormindo e havia
pouca chance de ser descoberta, andar vestida de homem, devia ser o
máximo para ela.
Em Machado de Assis, a fixação pelos braços das mulheres é evidente.
Em sua poesia, pernas e coxas femininas se destacam. Isso começou em
Belo Horizonte quando você era adolescente. Como foi?
Acho, Lúcia, que começou antes. Começou em Itabira, porque não havia a
menor informação sobre o corpo feminino. Os vestidos alongavam-se a
ponto de esconder até os sapatos, e as pessoas, no máximo, arregaçavam
um pouco o vestido para não se sujarem na lama da rua, nas poças d'água.
O máximo que se podia ver de uma mulher era o bico do sapato.
Indo para Belo Horizonte já rapazola, com essa imagem precária da
mulher, e encontrando ali um veículo muito útil para se recolher
informação um pouco maior, que era o bonde, onde as mulheres, para
subir, tinham de, contra a vontade, mostrar um pouco da perna, aquilo
era uma delícia, pelo menos para pessoas do interior, como eu. Já para
os rapazes nascidos em Belo Horizonte, não seria tanto assim.
Note-se que eu não tinha cinema na infância. O cinema chegou
precariamente, com sessões no domingo à noite, quando não chovia, quando
as estradas não estavam encharcadas e o burrinho, levando a mala do
correio, levava também os discos, as latas dos filmes.
Nós conhecíamos pouco da vida e conjecturávamos muito. É como um
selvagem que vai à cidade e encontra todas essas máquinas, esses
recursos da civilização: fica espantado; a gente se espantava diante da
perna, já não direi da coxa, que essa não se via de maneira nenhuma. A
palavra coxa, eu a considerava altamente erótica.
A gente se consolava com a perna e notadamente com a barriga da perna,
talvez também porque essa expressão -- barriga da perna -- já fazia
suspeitar alguma coisa mais além. Eram suspeitas, indícios, conjecturas,
que formulávamos em torno do corpo feminino.
Daí o fato de Mário de Andrade ter identificado na minha poesia aquilo
de que eu não me tinha dado conta: a quantidade enorme de pernas que
passam -- o bonde passava cheio de corpos, mas eu só via pernas na hora
de subir. Freud explica isso, não é...
Estamos mesmo em Freud. Segundo Freud, "o amor sexual proporciona as
mais fortes sensações de prazer, constituindo-se no protótipo do anseio
de felicidade em geral. Todavia, uma pessoa nunca está menos protegida
contra o sofrimento do que quando ama e nunca está mais desamparadamente
infeliz do que quando perde esse amor". (Wilhelm Reich - "A Função do
Orgasmo"). Você mesmo já escreveu no poema "Elegia": "Amor, fonte de
eterno frio". Assim sendo, por que queremos todos o amor, a despeito de
tudo que possa nos causar de tristeza e dor?
Não creio que, conscientemente, qualquer um de nós procure a tristeza e a
dor. Mas há de haver uma força oculta dentro de nós, que acaba
paradoxalmente procurando essas coisas. É um sentimento de
autodestruição, realmente nebuloso. Não se procura isso conscientemente.
A gente procura o amor como fonte de realização plena, evidentemente.
Mas está mais do que provado que essa realização nunca é desacompanhada
de grandes tremores de terra, grandes convulsões, e nós sabemos o preço
disso, porque há uma história que, dependendo da nossa experiência --
ela vem nos livros, nas óperas, na pintura -- mostra as tristezas do
amor. É uma procura talvez masoquista, mas que faz parte da natureza
humana. Não creio que alguém aspirasse a um amor puramente tranquilo,
celestial, mesmo porque, na prática, está demonstrado que é impossível.
Quais as influências literárias que você foi recebendo desde que começou a fazer poesia?
Olha, essas influências são inúmeras, e não são simplesmente literárias,
são de toda natureza. O "Almanaque Bristol" da minha infância foi uma
influência que eu senti profundamente. As farmácias antigas tinham um
cheiro especial, devido à manipulação de certas essências que exalavam
um perfume muito agradável. Esse cheiro vinha acompanhado dos almanaques
que a gente ganhava. Almanaques publicados pelos laboratórios, a Bayer e
o Elixir Capivarol faziam isso.
A leitura daquilo -- nos almanaques havia anedotas, acrósticos, enigmas,
cartas enigmáticas e versinhos também -- foi das primeiras leituras que
eu tive. Em seguida as revistas semanais do Rio - "Fon-fon" e "Careta" -
que eu pedia emprestado. Já atingindo assim uns dez, doze anos, eu
tinha uma pequena mesada. Então, eu mesmo adquiria as revistas com
grande orgulho. Colecionava aquilo, guardava com um ciúme louco, ninguém
podia pôr as mãos em cima delas. Foram essas as minhas influências
literárias.
As revistas já me traziam Olavo Bilac, além dos versos de outros poetas e
aí eu já me sentia mais familiarizado com a literatura. Depois vieram
os livros que meu irmão mandava para mim. Ele era estudante de Direito
no Rio, lia os livros de Fialho de Almeida, Flaubert (em português),
Antônio Patrício, poeta português pouco conhecido, de que eu gosto até
hoje, Antônio Nobre, outro poeta muito estimado, Eça de Queirós, espécie
de autor universal para o Brasil. Não havia brasileiro que se prezasse
que não apreciasse Eça de Queirós. As pessoas imitavam-no, usavam suas
expressões. Era uma grande influência.
Tive essas influências todas. Depois, através de meu irmão, fui
adquirindo um conhecimento maior dos simbolistas franceses, Verlaine,
Mallarmé, Rimbaud, etc. E me apaixonei por eles. No Brasil, esses poetas
refletiam-se em Álvaro Moreyra, em Eduardo Guimarães, do Rio Grande do
Sul, e no nosso velho Alphonsus, espécie de ídolo da mocidade do meu
tempo.
Através dos modernistas, atravessando os modernistas, cheguei a Manuel
Bandeira e Mário de Andrade que foram, realmente, os dois encontros
literários mais importantes da minha vida. A esses devo praticamente
tudo, porque foi o gosto da poesia de Bandeira, a delicadeza, o mistério
dessa poesia que me encantaram, como foi também a teorização, a
abertura de novos pontos de vista críticos que Mário me sugeriu.
A poesia do Mário nunca me influenciou. A de Bandeira, sim. Essas foram
as grandes influências literárias da minha vida e influências humanas.
Eu acho que uma pessoa humilde, a minha ama-preta, foi uma influência na
minha vida, influência existencial, mas que refletiu na literatura,
porque tudo influi na gente, a casa onde se nasceu, os móveis, os
objetos, os companheiros de infância...Nós somos realmente um cadinho de
influências.
E Machado, como é que ficou?
Acho que houve uma intenção inconsciente minha de eliminar o Machado,
porque, de tal maneira ele me persegue que quando estou aqui
conversando, de repente há uma interrupção qualquer, por motivo de um
café ou coisa que o valha, então eu mergulho na estante, pego Machado e
abro em qualquer página. É uma fatalidade na minha vida. Talvez seja por
isso que eu gostaria de esquecê-lo.
"Não procede historicamente a afirmação de que as grandes conquistas
culturais da humanidade, na arte, na literatura, são frutos da
sexualidade reprimida, mesmo porque "não há sublimação, por mais
perfeita que seja, que não ameace cortar a fala natural do corpo,
expressão que apenas o amor sexual pode transmitir com plenitude."
(Gilbert Tordjman - "Chaves da Sexologia"). O que o poeta pensa disso
quando o amor, nem sempre correspondido, tem inspirado alguns de seus
mais belos poemas?"
Não concordo em que a idéia de criação artística ou literária esteja
ligada à circunstância ocasional de repressão. Longe disso. O espírito
nunca se aprisiona. Cervantes escreveu uma parte do "Dom Quixote" na
cadeia, em Sevilha, como antes escrevera "La Galatea" no cativeiro em
Argel.
Por outro lado, não se pode considerar como de vida sexual reprimida a
vida de Lord Byron, um grande mulherengo, e a obra dele -- embora não
seja muito lida -- é uma grande obra literária. Então eu acho que a
plenitude amorosa funciona tão bem quanto a repressão. É um impulso
natural do ser humano. Não há essa influência negativa da repressão
quanto à criação literária. Esta é uma forma de reagir até contra a
opressão. A pessoa proibida, impedida de publicar, de escrever
publicamente, de fazer livros, músicas ou teatro, cria de qualquer
maneira. A divulgação da criação é que sofre dificuldades, mas o ato da criação continua livre.
"Porque preciso do corpo
Para mendigar Fulana,
Rogar-lhe que pise em mim,
Que me maltrate...Assim não." (O Mito)
É sabido que até as penitências do religioso da Idade Média, que se
impunha cilícios, eram tentativas, nitidamente masoquistas, para atingir
a satisfação sexual. A mulher, pela própria tradição cultural -- em que
pese a recente liberação de costumes -- é muito mais passiva que o
homem nas relações sexuais. Você percebe nessa passividade feminina
traços de masoquismo, seja nos gestos de submissão ao parceiro, seja na
renúncia aos próprios ideais?
Lúcia, eu acho que isso já acabou, sabe? Não há mais esse estado passivo
da mulher. Ela pode tomar a iniciativa, pelo menos encarar a proposta, a
sugestão do homem, com bastante liberdade para aceitar ou recusar, ou
para ela própria promover, se for o caso.
É realmente como você diz: houve uma repressão de costumes, mas a mulher
está, no momento, adquirindo consciência do seu ser como ser humano,
sem obrigação de obedecer aos caprichos ou às ordens masculinas.
Na poesia erótica portuguesa o homossexualismo é presença constante.
Na sua poesia, as alusões a esse desvio são raras e sutis, sendo que o
poema "O Rapto" é um desses poucos exemplos. Você podia falar sobre a
figura à qual se refere esse poema?
Pois não. Devo dizer que o homossexualismo sempre me causou certa
repugnância, que se traduz pelo mal-estar. Nunca me senti à vontade
diante de um homossexual.
Com o tempo, havendo agora uma abertura imensa com relação ao desvio da
homossexualidade, o homossexual não só ficou sendo uma pessoa com
autorização para ir e vir como tal, mas chega a ponto de isto ser
exaltado como riqueza de experiência, como acrescentamento da
experiência masculina.
Acredito que na minha obra o único caso de poesia referente ao
homossexualismo é esse. Mas exatamente por isso, porque o
homossexualismo nunca foi um fato que me interessasse poeticamente, nem
mesmo na vida real.
Esse "Rapto", exceção na minha poesia, resultou de uma leitura, de uma
operação puramente literária. Me lembro ter lido, na mitologia, que
Júpiter uma ocasião se apaixonou por um rapaz. Júpiter era terrível, não
se podia chamá-lo de homossexual nem bissexual, era pólissexual.
Como deus maior, deus dos deuses, ele se permitia tudo, tinha todas as
possibilidades. Apaixonou-se por um adolescente. Há as versões mais
variadas. Numa delas esse rapaz era um príncipe, na outra era um pastor.
Pois Júpiter encantou-se por ele, e para conquistá-lo, transformou-se
numa águia, desceu do Olimpo, bicou o rapaz e transportou-o pelo ar,
levou-o para o Olimpo. Lá, transformou-o numa coisa engraçada, no que se
chamava de escanção -- homem que serve bebida nos festins -- servia a
Júpiter na intimidade e aos deuses na vida social do céu.
Esse tema de Júpiter raptando Ganimedes -- era o nome desse cavalheiro
-- é muito explorado pela arte. Nós temos o rapto de Ganimedes por
Júpiter em Michelangelo, em Ticiano, em Rembrandt, em outros artistas de
que agora não me lembro. Ficou sendo uma situação clássica.
Agora, ao que eu aludo aqui, é também ao homossexualismo no Brasil.
Falando "na pérola dúbia das portas de boate", quis significar o
movimento noturno do homossexualismo, que é quando ele se manifesta mais
publicamente. O homossexualismo sai à noite, à procura de parceiro na
boate ou na rua, na avenida ou em qualquer parte.
Em "Poesia e Prosa" encontrei um poema -- "Tortura" -- que aborda a
zooerastia e outro - "O Sátiro" - no qual é contado um caso de zoofilia.
Da mesma "Poesia e Prosa" constam diversas imagens com bichos e no
"Amor Natural" aparecem algumas afinidades com o mundo animal. Se o
"sadismo é uma característica do homem, adquirida em período tardio do
seu desenvolvimento" (Wilhelm Reich - "A Função do Orgasmo") e
considerando "que o homem se distingue do animal não por uma sexualidade
menor, porém mais intensiva -- disposição permanente para relações
sexuais" (Wilhelm Reich - "A Revolução Sexual") como você vê, Carlos, o
fato de que o cruzamento entre macho e fêmea ocorra na natureza sem
maiores incidentes enquanto o intercurso sexual entre homem e mulher tem
mais de desencontro que encontro, haja vista a frequência, por exemplo,
dos chamados crimes passionais?
Não concordo com o nosso amigo Reich quanto a essa afirmação de que "o
sadismo é uma característica do homem adquirida em período tardio do seu
desenvolvimento". O sadismo é uma característica infantil, por
excelência. Posso dizer isso com experiência própria. Num poema de
"Boitempo", falo de um gato cujo rabo coloquei um carretel a duras
penas, segurando com muita força para impedir que ele me mordesse. O
rabo ficou inflamado a ponto de que tirar dele o carretel, foi um
problema. Meu irmão é que tirou, eu não tinha condições para isso.
Pratiquei esse ato por pura maldade, não tem outra explicação. Foi um
ato perverso, sem sentido -- coisa que os animais não fazem -- o animal
ataca e mata obedecendo à necessidade de alimentação, de sobrevivência,
coisa que o homem não tem porque pode subsistir sem eliminar seu
parceiro.
Acho que o cruzamento entre macho e fêmea ocorre realmente sem maiores
incidentes, mas, na realidade, o animal irracional é aquele que tem a
sabedoria, o privilégio de viver a sua vida praticando sexualidade, sem
remorso, sem sentimento de culpa, com naturalidade e na época adequada.
Ele está programado. Nós não estamos ou desobedecemos à programação da
natureza. Nós nos permitimos um interesse constante, obsessivo, doentio
quando, na realidade, a capacidade de satisfação desse desejo não
corresponde à obsessão. Imaginamos um ser humano com interesse luxurioso
para com as mulheres que passam, como se ele desejasse dormir com
todas. Há um excesso de pretensão do animal humano com relação às suas
potencialidades.
"A Carne é triste depois da felação" ("O Amor Natural")
"Sessenta e nova vezes boquilíngua" ("O Amor Natural")
A felação, mencionada nesses poemas de "O Amor Natural", é um
refinamento erótico ou perversão que, pelo acordo mútuo, transformou-se
em desvio como ato ocasional entre parceiros íntimos?
Eu acho que esses casos citados, não são perversões da natureza, estão
integradas na natureza. O amor erótico, o amor sexual, o amor carnal é
legítimo porque dele depende a conservação da espécie. As formas de
realização desse amor não estão codificadas. Não há nenhum livro no
mundo que estabeleça que esta forma é normal e outra não. A condição
para o ato é exatamente essa -- é aquilo dar prazer, se dá prazer, não é
pecado.
São Paulo já dizia: "Amai e fazei o que quiserdes". A perversão seria a
tentativa de obter de um determinado ato, determinada variedade de
prazer diferente do normal que seria o prazer da dor. Isso sim é o único
ato que eu acho vicioso, o ato sexual praticado com intenção de tirar
sangue da vítima, de bater-lhe, de humilhá-la, chicoteá-la. Isso já não é
natureza, é realmente o desvio do instinto e não pode ser aceito como
erotismo.
"Viste em mim teu pai morto e brincamos de incesto.
A morte entre nós dois tinha parte no coito.
O brinco era violento, misto de gozo e asco
E nunca mais, depois, nos fitamos no rosto" (de "Fugitivo Hotel na Colcha de Damasco" - "O Amor Natural")
O poema citado assinala a passagem do sexo natural para o sexo
cultural, sujeito de códigos dentro dos quais, nem mesmo nos jogos
amorosos é permitido brincar de incesto?
Sim, realmente há essa passagem que pode ser assinalada. Sobre esse
poema aparentemente chocante, devo dizer, como informação, que ele é
imaginário. Resultou de uma conversa que eu tive certa vez com uma
mulher. Ela declarou ver em mim o pai que já tinha morrido. Isso a fazia
sentir-se atraída por mim. Achei curiosa a associação de um defunto com
uma pessoa viva.
Tanto em alguns poemas da "Poesia e Prosa" como em diversos de "O Amor Natural" a associação amor/morte está presente:
Ah, coito, coito, morte de tão vida". ("A castidade em que abria as coxas" - " O Amor Natural")
Ovídio já intuiu uma certa cumplicidade entre Eros e Tânatos que, na
poesia erótica portuguesa já pretendia - "Seja o amor realmente irmão da
morte" ("Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica"). A
propósito dessa tônica, o que você tem a dizer?
Isto é um conceito clássico de poesia, a ligação da morte com o amor. Já
não é da poesia, é da psicologia. O êxtase amoroso é uma forma de morte
porque depois dele os sentidos se apaziguam, ficam como que
paralisados, mortos após a realização.
A morte, apesar do aspecto aterrorizante que ela tem para as pessoas
vivas, em geral, encerra também certa fascinação, o que explica o ato
dos suicidas.
A morte atrai. Como o que se chama de "belo horrível", como um vulcão que atrai para a morte. Ela tem esse duplo aspecto de espalhar o medo e ao mesmo tempo certa
curiosidade que pode se transformar em fascinação. É um conceito
tradicional em poesia. Me lembro, não sei que poeta italiano, não sei se
foi Leopardi que falava que, no momento do prazer, um desejo de morrer
se sente.
"Por que viria ofertar-me
Quando a tarde já vai fria,
Sua nívea rosa preta
Nunca jamais visitada
Inacessível naveta?" ("A Moça Mostrava a Coxa" - "O Amor Natural")
A "inacessível naveta" -- ao invés da consagrada rima dos poetas eróticos portugueses -- foi uma questão de estética ou pudor?
Foi uma questão prática. Convidado a publicar esse poema numa revista de
São Paulo -- dessas revistas consideradas para adultos -- pareceu-me
que seria talvez chocante empregar a palavra que os portugueses usam,
então servi-me dessa -- naveta -- e senti um certo prazer na
substituição porque acho a palavra naveta muito bonita. Ela dá um fecho
delicado ao poema que poderia chocar de outra maneira.
Você já me disse que nunca precisou do divã do analista. Em que medida a poesia concorreu para isso?
Realmente, mesmo que eu sentisse necessidade do divã seria impossível
porque não havia o divã no Brasil. Os divãs existiam, mas divãs comuns.
Ninguém se lembraria de deitar neles e dizer coisas da sua infância,
coisas tenebrosas, para um especialista.
A figura do analista veio muito depois da minha infância e da minha
mocidade. E já agora, a essa altura da vida, acho que nenhum analista me
receberia, nem haveria mais necessidade.
De fato, a poesia exerceu sobre mim um papel bastante salubre ou
tonificante, procurando sem que eu percebesse, clarear os aspectos
sombrios da minha mente.
Tive uma infância bastante confusa e triste, e uma mocidade tumultuada.
Sentia necessidade de expandir-me sem que soubesse como. A conversa com
os amigos não bastava porque, talvez, eles não entendessem bem os meus
problemas. Eram questões que vinham, digamos, de gerações anteriores, de
casamentos de tios com sobrinhas, de primos com primas, tudo isso se
acumulando na mente, criando problemas de adaptação ao meio, de dúvida,
de perplexidade, etc...
Então comecei a fazer versos sem saber fazê-los, por um movimento
automático. Foi uma tendência natural do espírito e senti que, pouco a
pouco, ia aliviando a carga de problemas que eu tinha. Como se
vomitasse. Nesse sentido, a poesia foi para mim, um divã.
Funcionou como catarse, então...
Sim, como catarse, é a palavra certa.
Carlos, muito obrigada. O que eu pretendi com esse tipo de pergunta
foi dar uma panorâmica da sua poesia, tanto através de "Poesia e Prosa"
como de "O Amor Natural". Evidentemente, uma panorâmica centrada no
erotismo porque os outros aspectos foram desprezados nessa entrevista.
Nós estamos pesquisando a sua poesia tendo por motivo o erotismo. Muito
obrigada. Acho que você esclareceu bastante. Sempre que for preciso,
tomarei a liberdade de voltar a perguntar, mas, por hoje, é só. Muito
obrigada.
E eu agradeço a você, porque uma pessoa que se preocupa com a minha
poesia e descobre aspectos menos estudados dela, com a paciência, a boa
vontade e, ao mesmo tempo, com o seu senso crítico muito agudo, só pode
me dar uma grande alegria. Obrigado a você.
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