[O título desta postagem se refere apenas aos portugueses, mas se aplica inteiramente e sem tirar nem por aos gregos e espanhóis, entre outros mais atingidos pela crise do euro. Aliás, também sem grande esforço isso se aplica perfeitamente ao Brasil no caso da saúde pública, com ou sem crise. O artigo que traduzo a seguir foi publicado ontem no jornal francês Le Monde.]
Por muito tempo eles foram os discípulos modelos da zona do euro. Aqueles que aceitavam, quase sem reclamar, as receitas dos financiadores do país: o Banco Central Europeu (BCE), a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Enquanto os gregos iam às ruas e os espanhóis se indignavam, eles, os portugueses, se resignavam ante uma austeridade que objetiva reduzir o deficit público de 9,8% do PIB em 2010 a 4,7% em 2012.
Esse tempo se acabou? Ontem, 11 de julho, os médicos portugueses iniciaram uma greve de dois dias, prometendo a maior mobilização dos últimos vinte anos. Os médicos não se conformam, e contam com o apoio de pacientes exasperados com a visível degradação do sistema de saúde. As listas de espera se alongam com a falta de pessoal, e a parcela de responsabilidade dos segurados no seguro-saúde está se encarecendo para os usuários de serviços públicos. Quanto aos médicos, não se conformam em ver seus salários reduzidos com a supressão de seu 14° salário.
Aos médicos somam-se os enfermeiros, que exigem o cancelamento de uma decisão do governo de fazer terceirização com empresas privadas, pagando menos de 4 euros a hora, diz a agência AFP.
Hospitais superendividados
O objetivo é fazer economia nos hospitais superendividados, e há urgência nisto. No dia 9 de julho, o laboratório alemão Merkel KGaA, cansado de ver suas faturas não serem pagas, ameaçou desistir de seus projetos de pesquisa médica em Portugal. "Uma confiança recíproca é um aspecto importante, mas a falta de disposição do Estado português de pagar o que deve diminui essa confiança", explicou Fritz Sacher, representante da Merck em Portugal, ao jornal Financial Times Deutschland [a reportagem em alemão tem o título "Merck perde a paciência com Portugal"].
Mas, desta vez os portugueses não parecem dispostos a deixar as coisas passarem em branco. A indignação cresce e se reflete no índice de popularidade do governo, em baixa nos últimos meses. É que, desde o início do ano, "as pessoas começam realmente a perceber e sentir a austeridade, que até agora permanecia muito teórica", diz Diogo Teixeira, do fundo de investimentos Optimize.
Os funcionários e os aposentados tiveram que renunciar a seus 13° e 14° salários, que serviam normalmente para pagar as férias e os impostos. Esse dispositivo poderá, no entanto, voltar à baila em 2013 porque a Corte suprema portuguesa julgou inconstitucional essa medida de austeridade por não ser isonômica, não atingindo senão uma parte da população, e por ser imposta sem limitação de tempo [belo imbróglio futuro ...].
Zelo do governo
Por bravata ou em benefício da ortodoxia orçamentária, o governo de Pedro Passos Coelho (PSD, centro-esquerda) respondeu à Corte que tornará a medida constitucional ..., exigindo sacrifícios equivalentes aos portugueses do setor privado. O Estado não quer se privar dos cerca de 2 bilhões de euros gerados por esse dispositivo.
Com uma recessão estimada em 3% este ano, "já é difícil cumprir com as metas do deficit", constata Gilles Möec, do Deutsche Bank. Em 2011, continua ele, a transferência ao Estado dos fundos de reserva de aposentadoria dos bancos [ao que me parece, algo remotamente parecido ao nosso FGTS] havia reduzido artificialmente o deficit para cerca de 3% do PIB -- essa benesse não se repetirá mais. Mas, espera ele, pode ser que o governo ao se mostrar zeloso tenha direito, como o da Espanha, a uma dilatação de prazo para sanear suas finanças.
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