Gabriel García Márquez em seu labirinto
Milton Ribeiro
Autor de uma obra inimitável, "Gabo" não escreverá mais - (Foto: Google).
Gabriel García Márquez não escreverá mais. É o que disse ontem (6) seu
irmão Jaime. Toda doença é lastimável, porém Gabo está preso a mais
vulgar e injusta das enfermidades para um escritor, a demência senil.
Ele está perdendo a memória e a arte literária que, sabemos, consiste
muito em conseguir mapear, sentir e viver vários personagens. Há a
necessidade do talento e da memória. Juntas. Como fazê-lo na senilidade?
Claro que a senilidade é tão triste em García Márquez quanto em
anônimos, porém como estamos acostumados a espreitar o mundo através do
imaginário do escritor, a situação parece mais triste. Onde estará
Aureliano Buendía, o que estará fazendo? E Florentino Ariza? Segue
esperando? Pelo quê?
O irmão, Jaime García Marquez, informou ao El País sobre o
estágio avançado de demência que provoca a perda de memória do
colombiano. Ele conta que Gabo liga diariamente do México para sua casa,
em Cartagena, a fim de recordar fatos corriqueiros que estão
desaparecendo de sua mente em razão da doença. Fisicamente, no entanto,
ele está bem. Jaime, 13 anos mais jovem do que Gabriel, de 84 anos, diz
que a decrepitude chegou precocemente como decorrência da quimioterapia
que lhe salvou de um câncer linfático em 1999. Com sua memória, explica
Jaime, vai-se a genialidade.
O escritor teria dois romances parcialmente escritos: Tigra e Em agosto nos vemos. O primeiro conta a história de uma fêmea de tigre adotada por um caçador, um magnata de Nova York que matara sua mulher. De Em agosto nos vemos o
escritor já teria feito várias versões. Mas, segundo Jaime, é possível
que ele tenha destruído os manuscritos, já que costumava jogar numa
trituradora de papel tudo que não lhe agradava.
Em sua última novela, Memórias de Minhas Putas Tristes (2004), já havia claros sinais da decadência. Lançado no Brasil quase ao mesmo tempo que As Intermitências da Morte (2005),
de José Saramago, era impressionante a comparação entre a vitalidade do
português e o cansaço do colombiano, cuja brilhante e colorida
literatura aparecia amenizada em tons que não eram seus. Deste modo,
talvez seja melhor não conhecer esses dois últimos livros.
A relação de livros de Gabriel García Márquez é um atestado de uma grandeza que nenhum outro escritor vivo pode ostentar: Cem Anos de Solidão, A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada, Os Funerais da Mamãe Grande, O Outono do Patriarca, O General em seu Labirinto, O Veneno da Madrugada, Crônica de uma morte anunciada, O Amor nos Tempos do Cólera, Viver para Contar, Ninguém Escreve ao Coronel, etc.
Seus trabalhos iniciais eram decididamente de inspiração kafkiana.
Porém, em 1967, ele subitamente adquiriu voz distinta e saltou para a
fama com Cem Anos de Solidão. De um ano para outro, García
Márquez tornou-se um dos grandes nomes da literatura sul-americana,
narrando a decadência e a indireção do continente com uma mistura de
amargura e romantismo. Tal característica foi lembrada na justificativa
para o Prêmio Nobel de Literatura de 1982: ”por seus romances e contos,
nos quais o fantástico e o real são combinados em um mundo ricamente
composto de imaginação, refletindo a vida de um continente e seus
conflitos”. Macondo, a cidade sede da grande construção de García
Márquez, deveria ser preservada em nossa memória como um reduto de
loucos e sonhadores. Deveríamos decretar que nenhuma cidade
latino-americana assim se denominasse, para que pudéssemos ali nos
refugiar de nossa realidade às vezes assombrosa. (Vide Paraguai).
Gabriel confirmava que fora levado à literatura por Kafka, mais exatamente por A metamorfose –
lida em uma tradução de Jorge Luis Borges. Ele disse que aquilo mudou
sua vida: o tom lembrava o das histórias contadas por sua avó. “Eu não
sabia de alguém que tivesse coragem de escrever daquela forma ou que se
sentisse autorizado a tanto. Se soubesse, teria começado a escrever há
muito mais tempo”. Também era um grande admirador de William Faulkner —
sua fictícia Macondo é devedora da impronunciável Yoknaputawpha County
do norte-americano.
García Márquez, ou simplesmente Gabo, completou os primeiros estudos em
Barranquilla e Zipaquirá. Por insistência dos pais, começou o curso de
direito na Universidade Nacional de Bogotá, mas logo enveredou para o
jornalismo, assumindo uma coluna diária no recém-fundado jornal “El
Universal”. Nunca se graduou em nada. Mudou-se para o “El Espectador”,
onde se tornou um reconhecido cronista e repórter. Em 1955, viajou para a
Europa como correspondente do jornal, após a publicação de uma extensa
reportagem, “Relato de um Náufrago”, que desagradou ao governo do
general Roja Pinillas.
No final dos anos 50, de volta às Américas, trabalhou em Caracas, em
Cuba, onde passou seis meses, e em Nova York, dirigindo a agência de
notícias cubana Prensa Latina. Em 1960, García Márquez mudou-se para a
Cidade do México e começou a escrever roteiros de cinema. No ano
seguinte, publicou Ninguém Escreve ao Coronel e, em 1962, O Veneno da Madrugada, que ganhou o Prêmio Esso de Romance, na Colômbia.
Em 1966, segundo depoimento do escritor mexicano Carlos Fuentes, quando
voltava do balneário de Acapulco para a Cidade do México, García Márquez
teve o momento de inspiração para escrever o romance que ruminava há
mais de uma década. Largou o emprego, deixando o sustento da casa e dos
dois filhos a cargo da mulher, Mercedes Barcha. Isolou-se pelos 18 meses
seguintes, trabalhando diariamente por mais de oito horas. E assim
criou sua obra mais conhecida, Cem Anos de Solidão — unânime obra-prima da literatura mundial.
Ali, García Márquez — que já era um narrador poderoso em livros
anteriores — estabeleceu algumas características que o acompanharam em
livros posteriores. O uso estético de exageros inadmissíveis na
realidade; os elementos fantásticos percebidos como normais pelos
personagens e pelo autor; o tempo sentido como cíclico, não linear, para
que o presente se repita ou se pareça ao passado. E a poesia, grandes
poesia e compreensão humana. Era um autor muito particular. Trazia
tantas novidades que foi o epicentro do boom da literatura
latino-americana no mundo inteiro. Foi imitadíssimo, sem sucesso.
O escritor retornou ao jornalismo em 1999, quando passou a dirigir a
revista “Cambio”. Em 2002, publicou “Viver Para Contá-la”, primeiro
volume de sua autobiografia que ficará incompleta. Alguns de seus textos
foram adaptados para o cinema, como Eréndira, de 1983, estrelado por Cláudia Ohana e dirigido por Ruy Guerra, e O Amor nos Tempos do Cólera, de 2007, dirigido pelo inglês Mike Newell, e com a participação de Fernanda Montenegro.
Plínio Apuleyo Mendoza, jornalista e escritor de Cheiro da goiaba, que reúne memórias de García Márquez, disse à revista digital Kienyke que o autor já não reconhece mais as pessoas pela voz. Mendoza contou que telefonou para o amigo no último dia 6 de março, em
seu aniversário de 85 anos, mas que ele não pode falar. “No dia que
completou 85 anos, liguei para García Márquez mas não falei com ele.
Conversei com Mercedes [Barcha, sua esposa] e ela preferiu não passar o
telefone porque ele não reconhece mais vozes”, afirmou o jornalista.
Ainda segundo Mendoza, da última vez que conversaram, já há alguns anos,
o escritor esquecia coisas e perguntava repetidamente “quando eu
chegara e onde estava hospedado”, em compensação, “quando fomos almoçar,
lembrava de coisas muito antigas de 30 ou 40 anos atrás, remotas”. O
jornalista também recordou que tanto a mãe do escritor como um de seus
irmãos, que já morreram, sofreram do Mal de Alzheimer.
Que tristeza, hein, Vascão. Sempre anseei pela parte II do Vivir para contarla. Vamos ficar sem essa. Torço,ao menos, para que ele cumpra a profecia e se vá só aos 100 anos.
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