O atraso na construção de 35 usinas térmicas outorgadas a dois grupos
com pouca experiência no setor elétrico - a Bertin e a Multiner -
só não levou o país a uma crise de abastecimento por causa da forte desaceleração da economia brasileira desde o ano passado. Basta uma
olhada rápida nos números para ter ideia da dimensão do problema.
Todas essas térmicas, movidas a óleo ou a gás natural, deveriam entrar
em operação entre janeiro de 2010 e janeiro de 2013. À medida que
começassem a funcionar, aumentariam a oferta de energia em até 4.265
megawatts (MW) médios, volume superior à produção somada das
hidrelétricas do rio Madeira - Santo Antônio e Jirau -, em Rondônia.
Nada disso obedece ao cronograma estabelecido nos leilões, obrigando o
Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) a mexer no planejamento do
que está ou não disponível para ser acionado. Nas estimativas do ONS,
que balizam todos os preços praticados no setor, só 2.497 MW médios
(quase 60% de todo o volume efetivamente contratado) realmente devem
sair do papel.
A conta do atraso na entrada em operação de usinas térmicas -- clique na imagem para ampliá-la -- (Gráfico: Valor Econômico).
O problema é que, segundo analistas respeitados de mercado, essa
projeção ainda é bastante otimista. A consultoria PSR calcula que apenas
784 MW médios têm chances reais de entrar em operação. Mesmo assim,
mais da metade disso só deve se transformar em oferta de energia a
partir de janeiro de 2014, com a conclusão de duas térmicas que foram
vendidas pela Bertin à MPX.
"O Brasil foi salvo pela recessão", diz Jorge Trinkenreich, diretor da
PSR. Como o aumento da demanda tem crescido bem menos do que o esperado,
o atraso na construção das usinas gerou menos dor de cabeça e até
causou um problema curioso: as distribuidoras ficaram sobrecontratadas,
ou seja, o consumo está abaixo do que imaginavam e elas agora têm
energia demais em mãos. "Parece que o país gosta de viver
perigosamente", ironiza o especialista, retomando a seriedade em seguida
e frisando que a confusão não deve ser celebrada.
Por incrível que pareça, a revogação das autorizações para a Bertin
construir suas térmicas - independentemente da adoção de penalidades
pela Aneel - pode até resolver a situação das distribuidoras. Elas
continuam sobrecontratadas. Com a revogação, reverte-se em grande parte o
problema e abre-se espaço para a realização de um novo leilão de
projetos novos (A-3) até o fim deste ano, segundo o diretor da agência
Julião Coelho.
Aneel vai zerar pendências do grupo Bertin
O grupo paulista Bertin está prestes a sofrer um novo revés que pode
comprometer definitivamente o plano de negócios formulado recentemente
para resolver sua complicada situação no setor elétrico. A Agência
Nacional de Energia Elétrica (Aneel) se prepara para executar a cobrança
de R$ 430 milhões em garantias de fiel cumprimento pelo atraso de 15
usinas térmicas, além de fazer uma limpeza nas pendências que ainda
impedem a abertura de novas punições.
Pior ainda: a Aneel demonstra pouca disposição para aceitar o
parcelamento do débito ou que esse dinheiro seja descontado do montante a
receber das usinas que ainda podem entrar em funcionamento,
contrariando um pedido da Bertin. "Não faz sentido parcelar como se
fosse uma multa", afirmou o diretor Julião Coelho, que relata diversos
processos na Aneel envolvendo a empresa. "Isso destitui o próprio
instrumento da garantia como forma de assegurar a execução do
empreendimento".
Projetos emperrados do grupo Bertin -- clique na imagem para ampliá-la -- (Ilustração: Valor Econômico).
Coelho enfatiza que já houve decisões anteriores da agência negando o
pagamento diluído das garantias. Com isso, segundo ele, criou-se um
precedente que dificilmente será revertido. Em caso que a Aneel
considera como semelhante, há três semanas, a Multiner teve negado um
pedido para parcelar garantias referentes a duas usinas térmicas que
somavam R$ 40,7 milhões. Além disso, as autorizações para esses dois
projetos foram revogadas.
Com exceção da usina José de Alencar, em estágio mais avançado de
execução, a Bertin ainda está com recursos administrativos ou em fase de
defesa prévia contra a cobrança das garantias. Esse tipo de penalidade
pode atingir até 10% do valor do investimento estimado para cada
projeto. Não é o único baque, no entanto, para a empresa paulista. Amanhã, em
reunião de diretoria colegiada, a Aneel deverá rejeitar a devolução
"amigável" pedida pela Bertin para outras cinco térmicas - Escolha,
Cacimbaes, Macaíba, Iconha e Rio Largo - e abrir caminho para um
processo de revogação com penalidades. Juntas, essas usinas somam 1,2
mil megawatts (MW) de potência.
O presidente da Bertin Energia, Ricardo Knoepfelmacher, disse ao Valor
que a rejeição dos pedidos apresentados à agência pode comprometer o
plano de reestruturação da empresa e a venda de boa parte de seus ativos
ao grupo gaúcho Bolognesi. "Se o aspecto punitivo se der de forma
integral antecipada e ainda com o ajuste forçado dos preços, a tendência
é inviabilizar financeiramente todos os projetos e termos uma obra de
R$ 4 bilhões paralisada na Bahia".
O que está em jogo, segundo a visão praticamente consensual na Aneel, é a
própria credibilidade do sistema de leilões de energia. O sistema foi
criado em 2004, pela então ministra Dilma Rousseff, com certames para a
contratação de projetos com início da oferta três anos depois (A-3) e
cinco anos depois (A-5). "Se a agência ceder, será a desmoralização dos
leilões", comentou outro diretor, pedindo anonimato. Por isso, a intenção da Aneel é endurecer com a Bertin para que o caso
sirva como exemplo no setor elétrico. A interpretação corrente hoje na
agência é que a aprovação dos pedidos da empresa, com relaxamento das
penalidades, pode estimular atrasos de outros empreendedores.
Com base na experiência ruim da Bertin, a Aneel estuda propor uma série
de medidas para evitar a repetição dos erros em futuros leilões. Uma das
possibilidades é impedir a habilitação de tantos projetos por uma mesma
empresa, a fim de evitar a concentração da oferta de novas usinas por
um só empreendedor, como ocorreu com a Bertin no leilão de 2008. Outra hipótese que já foi avaliada é introduzir limite de oferta no
certame. No leilão A-5 de 2005, a Bertin negociou contratos de 16 das 18
usinas que colocou em disputa por uma tarifa de cerca de R$ 146 por
megawatt-hora, um preço que o governo vê como alto demais e influenciado
pelo excesso de oferta da empresa. Nenhuma das propostas, porém, foi
considera madura o suficiente até agora.
Para a Bertin, uma espécie de tiro de misericórdia pode ser dado com a
análise de pedido à Aneel para formar um "cluster" de usinas apelidado
de Nova Aratu, na Bahia. A proposta da empresa é juntar as obras em
andamento de seis usinas que formavam Aratu I e aproveitá-las dentro das
condições contratuais de Aratu II. O primeiro grupo (Aratu I) tem cerca
de 90% das obras civis executadas, várias turbinas à espera de serem
ativadas e motores de fabricação europeia aguardando o embarque no porto
de Hamburgo. Deveria ter iniciado as operações em janeiro de 2011 e o
preço da energia contratada foi de R$ 126 por MWh. Já o segundo grupo
(Aratu II) está parado, mas só tem funcionamento previsto a partir de
janeiro de 2013 e teve energia comercializada a cerca de R$ 146 por MWh.
Como os dois "clusters" são irmãos siameses, com 1.056 MW de capacidade
prevista, o pedido da Bertin foi para uma "mudança de localização" das
usinas. Esse movimento também é visto com cautela pela Aneel. Os
diretores não gostam da ideia de "trocar" uma tarifa de R$ 126 por outra
de R$ 146, ressaltando que a energia gerada será a mesma. "Estamos
atentos e não vamos cochilar com isso", avisou Julião Coelho.
Para a Bertin, conforme ressaltou Ricardo Knoepfelmacher, a
possibilidade de aplicar uma tarifa de R$ 146 por MWh para as usinas de
Nova Aratu não só tem todo o respaldo legal, como é peça-chave para
levar adiante o plano de reestruturação. Sem isso, segundo o executivo,
fica muito difícil ter fluxo de caixa suficiente para conseguir
financiamento e concluir as térmicas. O resultado é que nenhum
investidor se sentiria atraído. Na Nova Aratu, a ideia da Bertin é ficar
com 49%, vendendo o controle acionário para o grupo Bolognesi.
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