terça-feira, 31 de julho de 2012

Desaquecimento da economia poupou o Brasil de um novo apagão

O atraso na construção de 35 usinas térmicas outorgadas a dois grupos com pouca experiência no setor elétrico - a Bertin e a Multiner - só não levou o país a uma crise de abastecimento por causa da forte desaceleração da economia brasileira desde o ano passado. Basta uma olhada rápida nos números para ter ideia da dimensão do problema.

Todas essas térmicas, movidas a óleo ou a gás natural, deveriam entrar em operação entre janeiro de 2010 e janeiro de 2013. À medida que começassem a funcionar, aumentariam a oferta de energia em até 4.265 megawatts (MW) médios, volume superior à produção somada das hidrelétricas do rio Madeira - Santo Antônio e Jirau -, em Rondônia.

Nada disso obedece ao cronograma estabelecido nos leilões, obrigando o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) a mexer no planejamento do que está ou não disponível para ser acionado. Nas estimativas do ONS, que balizam todos os preços praticados no setor, só 2.497 MW médios (quase 60% de todo o volume efetivamente contratado) realmente devem sair do papel.


 A conta do atraso na entrada em operação de usinas térmicas -- clique na imagem para ampliá-la -- (Gráfico: Valor Econômico).

O problema é que, segundo analistas respeitados de mercado, essa projeção ainda é bastante otimista. A consultoria PSR calcula que apenas 784 MW médios têm chances reais de entrar em operação. Mesmo assim, mais da metade disso só deve se transformar em oferta de energia a partir de janeiro de 2014, com a conclusão de duas térmicas que foram vendidas pela Bertin à MPX.

"O Brasil foi salvo pela recessão", diz Jorge Trinkenreich, diretor da PSR. Como o aumento da demanda tem crescido bem menos do que o esperado, o atraso na construção das usinas gerou menos dor de cabeça e até causou um problema curioso: as distribuidoras ficaram sobrecontratadas, ou seja, o consumo está abaixo do que imaginavam e elas agora têm energia demais em mãos. "Parece que o país gosta de viver perigosamente", ironiza o especialista, retomando a seriedade em seguida e frisando que a confusão não deve ser celebrada.

Por incrível que pareça, a revogação das autorizações para a Bertin construir suas térmicas - independentemente da adoção de penalidades pela Aneel - pode até resolver a situação das distribuidoras. Elas continuam sobrecontratadas. Com a revogação, reverte-se em grande parte o problema e abre-se espaço para a realização de um novo leilão de projetos novos (A-3) até o fim deste ano, segundo o diretor da agência Julião Coelho.

Aneel vai zerar pendências do grupo Bertin

O grupo paulista Bertin está prestes a sofrer um novo revés que pode comprometer definitivamente o plano de negócios formulado recentemente para resolver sua complicada situação no setor elétrico. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) se prepara para executar a cobrança de R$ 430 milhões em garantias de fiel cumprimento pelo atraso de 15 usinas térmicas, além de fazer uma limpeza nas pendências que ainda impedem a abertura de novas punições.

Pior ainda: a Aneel demonstra pouca disposição para aceitar o parcelamento do débito ou que esse dinheiro seja descontado do montante a receber das usinas que ainda podem entrar em funcionamento, contrariando um pedido da Bertin. "Não faz sentido parcelar como se fosse uma multa", afirmou o diretor Julião Coelho, que relata diversos processos na Aneel envolvendo a empresa. "Isso destitui o próprio instrumento da garantia como forma de assegurar a execução do empreendimento".


Projetos emperrados do grupo Bertin -- clique na imagem para ampliá-la -- (Ilustração: Valor Econômico).

Coelho enfatiza que já houve decisões anteriores da agência negando o pagamento diluído das garantias. Com isso, segundo ele, criou-se um precedente que dificilmente será revertido. Em caso que a Aneel considera como semelhante, há três semanas, a Multiner teve negado um pedido para parcelar garantias referentes a duas usinas térmicas que somavam R$ 40,7 milhões. Além disso, as autorizações para esses dois projetos foram revogadas.
Com exceção da usina José de Alencar, em estágio mais avançado de execução, a Bertin ainda está com recursos administrativos ou em fase de defesa prévia contra a cobrança das garantias. Esse tipo de penalidade pode atingir até 10% do valor do investimento estimado para cada projeto. Não é o único baque, no entanto, para a empresa paulista. Amanhã, em reunião de diretoria colegiada, a Aneel deverá rejeitar a devolução "amigável" pedida pela Bertin para outras cinco térmicas - Escolha, Cacimbaes, Macaíba, Iconha e Rio Largo - e abrir caminho para um processo de revogação com penalidades. Juntas, essas usinas somam 1,2 mil megawatts (MW) de potência.

O presidente da Bertin Energia, Ricardo Knoepfelmacher, disse ao Valor que a rejeição dos pedidos apresentados à agência pode comprometer o plano de reestruturação da empresa e a venda de boa parte de seus ativos ao grupo gaúcho Bolognesi. "Se o aspecto punitivo se der de forma integral antecipada e ainda com o ajuste forçado dos preços, a tendência é inviabilizar financeiramente todos os projetos e termos uma obra de R$ 4 bilhões paralisada na Bahia".

O que está em jogo, segundo a visão praticamente consensual na Aneel, é a própria credibilidade do sistema de leilões de energia. O sistema foi criado em 2004, pela então ministra Dilma Rousseff, com certames para a contratação de projetos com início da oferta três anos depois (A-3) e cinco anos depois (A-5). "Se a agência ceder, será a desmoralização dos leilões", comentou outro diretor, pedindo anonimato. Por isso, a intenção da Aneel é endurecer com a Bertin para que o caso sirva como exemplo no setor elétrico. A interpretação corrente hoje na agência é que a aprovação dos pedidos da empresa, com relaxamento das penalidades, pode estimular atrasos de outros empreendedores.

Com base na experiência ruim da Bertin, a Aneel estuda propor uma série de medidas para evitar a repetição dos erros em futuros leilões. Uma das possibilidades é impedir a habilitação de tantos projetos por uma mesma empresa, a fim de evitar a concentração da oferta de novas usinas por um só empreendedor, como ocorreu com a Bertin no leilão de 2008.  Outra hipótese que já foi avaliada é introduzir limite de oferta no certame. No leilão A-5 de 2005, a Bertin negociou contratos de 16 das 18 usinas que colocou em disputa por uma tarifa de cerca de R$ 146 por megawatt-hora, um preço que o governo vê como alto demais e influenciado pelo excesso de oferta da empresa. Nenhuma das propostas, porém, foi considera madura o suficiente até agora.

Para a Bertin, uma espécie de tiro de misericórdia pode ser dado com a análise de pedido à Aneel para formar um "cluster" de usinas apelidado de Nova Aratu, na Bahia. A proposta da empresa é juntar as obras em andamento de seis usinas que formavam Aratu I e aproveitá-las dentro das condições contratuais de Aratu II. O primeiro grupo (Aratu I) tem cerca de 90% das obras civis executadas, várias turbinas à espera de serem ativadas e motores de fabricação europeia aguardando o embarque no porto de Hamburgo. Deveria ter iniciado as operações em janeiro de 2011 e o preço da energia contratada foi de R$ 126 por MWh. Já o segundo grupo (Aratu II) está parado, mas só tem funcionamento previsto a partir de janeiro de 2013 e teve energia comercializada a cerca de R$ 146 por MWh.

Como os dois "clusters" são irmãos siameses, com 1.056 MW de capacidade prevista, o pedido da Bertin foi para uma "mudança de localização" das usinas. Esse movimento também é visto com cautela pela Aneel. Os diretores não gostam da ideia de "trocar" uma tarifa de R$ 126 por outra de R$ 146, ressaltando que a energia gerada será a mesma. "Estamos atentos e não vamos cochilar com isso", avisou Julião Coelho.

Para a Bertin, conforme ressaltou Ricardo Knoepfelmacher, a possibilidade de aplicar uma tarifa de R$ 146 por MWh para as usinas de Nova Aratu não só tem todo o respaldo legal, como é peça-chave para levar adiante o plano de reestruturação. Sem isso, segundo o executivo, fica muito difícil ter fluxo de caixa suficiente para conseguir financiamento e concluir as térmicas. O resultado é que nenhum investidor se sentiria atraído. Na Nova Aratu, a ideia da Bertin é ficar com 49%, vendendo o controle acionário para o grupo Bolognesi.


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