Luiz Ernesto Kawall - (Foto: Marcelo Vigneron).
É uma
das mais merecidas aposentadorias de que se tem notícia. Jornalista nas
áreas de política, cultura e esportes desde sua formatura, em 1951, na
turma inaugural da primeira faculdade brasileira de jornalismo, a
Cásper Líbero, o paulistano Luiz Ernesto Kawall vive este mês de junho
sob circunstâncias muito especiais. Ao mesmo tempo em que completa 85
anos e 60 de exercício da profissão, alcança um objetivo
insistentemente perseguido: tornar publicamente disponível a coleção
que vem formando há 40 anos e, então, retirar-se da labuta.
Sua
“vozoteca” tem, agora, destino certo. Autêntico “museu da voz”, o
acervo é composto por cerca de 8 mil gravações, principalmente de
discursos, reportagens e emissões radiofônicas, além de declamações e
amostras privilegiadas de canto. Várias instituições analisaram neste
ano a coleção, entre elas o Museu da Imagem e do Som (MIS) da capital
paulista e o Centro Cultural SP, mas foi o Instituto de Estudos
Brasileiros (IEB), vinculado à Universidade de São Paulo (USP), que
decidiu primeiro acolher em doação todo esse valioso acervo pessoal, a
ser alojado em seu novo prédio. Já em fase de acabamento, o amplo
edifício ao lado da Reitoria da USP abrigará tanto o IEB como a
Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. Portanto, em breve, Kawall
dará adeus a São Paulo e bom dia a Ubatuba, cidade na qual criou, na
década de 1970, o Museu Caiçara, hoje incorporado ao projeto Tamar.
Sempre
de extrema generosidade para transmitir informações, entrevistado
regularmente por formandos em jornalismo, Kawall é figura das mais
queridas no meio intelectual e artístico. Além de milhares de vozes de
personalidades, sua vozoteca conserva vários registros com sua própria
voz a contextualizar gravações importantes. Segundo seu criador,
trata-se, porém, de um material qualitativo, portanto, relativamente
compacto. Nos últimos anos, adiantou parte de sua digitalização,
transferindo para CDs centenas de gravações antes em suportes como
“bolachas” de vinil e fitas de rolo. Todo o acervo resume-se hoje a
quase 4 mil discos raros – desde a primeira gravadora brasileira e
exemplos de todas as alternativas –, 500 fitas-cassetes e 200 CDs,
estes com montagens de materiais agrupados por temas, além de dois
livros de tombo com uma pré-classificação. Atualmente, tudo se encontra
na sala de seu apartamento na Praça Benedito Calixto, localizada no
bairro de Pinheiros. A praça também abriga uma feira semanal de
antiguidades, privilegiada para a garimpagem de vinis, que lhe são
reservados de antemão.
“No
IEB, a intenção é oferecer para pesquisa e audição online todo o
acervo, que passa a ser o nosso maior em termos de som, ao lado das
coleções Mário de Andrade e Maestro Camargo Guarnieri”, diz Lúcia Thomé,
do Laboratório de Conservação e Restauro da instituição. “Recebemos a
coleção com muita alegria, mas ela demandará várias fases de trabalho:
apesar das boas condições, é preciso higienizar tudo antes de colocar
em ambiente climatizado; analisar o estado de cada item e restaurar o
que for necessário, aperfeiçoando a qualidade de som dos arquivos mais
importantes. Captar, então, recursos para transferir para suportes
acessíveis remotamente e proceder à catalogação final, segundo as
normas universais, para uma rápida localização”, detalha a
especialista.
SOB AS ORDENS DE LACERDA
Na época, Luiz Ernesto Kawall idealizou os LPs promocionais da campanha, incluindo jingles encomendados a músicos como Luiz Gonzaga. Assim, os álbuns Rio – Cidade indomável e A redenção da cidade exibem a numeração um e dois na Vozoteca LEK. O disco três, da gravadora Elenco, também traz a voz do político e orador imbatível, já em 1966: Trechos de Júlio César de Shakespeare, em tradução do próprio intérprete.
Foi
Lacerda também quem convocou o paulista para ajudar na constituição do
primeiro Museu da Imagem e do Som do país, inaugurado em 1965, com o
acervo sonoro de seu primeiro diretor, o pesquisador Ricardo Cravo
Albin, entre outras coleções.
E Lacerda, mais uma vez, exerceu influência sobre Kawall ao incentivá-lo, durante um encontro casual na paulistana Praça Ramos de Azevedo, em meados dos anos 1960, a iniciar a vozoteca: “Tenho uma coisa para você: estive em Londres e fui a uma espécie de museu da voz, com os discursos de Churchill, a Ave Maria com Maria Callas e muita coisa mais. Fiquei uma tarde inteira. Você deveria fazer o mesmo aqui”.
E Lacerda, mais uma vez, exerceu influência sobre Kawall ao incentivá-lo, durante um encontro casual na paulistana Praça Ramos de Azevedo, em meados dos anos 1960, a iniciar a vozoteca: “Tenho uma coisa para você: estive em Londres e fui a uma espécie de museu da voz, com os discursos de Churchill, a Ave Maria com Maria Callas e muita coisa mais. Fiquei uma tarde inteira. Você deveria fazer o mesmo aqui”.
FORMANDO O MIS-SP
Pela
mesma época, 1967, Luiz Ernesto Kawall recebeu do governador de São
Paulo, Roberto de Abreu Sodré, de quem também se tornaria muito
próximo, a missão de formar o MIS-SP. Para tanto, contou com uma equipe
de primeira linha: os críticos Almeida Salles e Paulo Emílio Salles
Gomes, e o cineasta Rudá de Andrade, além de Cravo Albin.
Amigo
dos mais destacados locutores de rádio dos anos 1950 e 1960, o
jornalista recebeu deles gravações raríssimas. Murilo Antunes Alves
(Rádio e TV Record) presenteou-o com os discursos de Ciccillo Matarazzo
e a reportagem completa da abertura da 1ª Bienal de São Paulo (1951),
além da última entrevista de Monteiro Lobato, na qual o escritor falou
da corrupção política no país e de reservas de petróleo. Já de Geraldo
José de Almeida (Record e Excelsior) veio a locução do célebre gol de
bicicleta de Leônidas, em 1942. A exemplo de Geraldo José, são-paulino
fervoroso, Kawall tornou-se amigo do jogador, chamado de Diamante
Negro, e protagonizou em torno dele uma confusão memorável. Nos anos
1970, o apresentador Fausto Silva, na época locutor da Joven Pan,
transmitia partida em homenagem a Leônidas, durante a qual emprestou do
jornalista o registro sonoro do gol histórico, para veiculação ao
vivo. Mas, em lugar da gravação esportiva, surgiram as recordações dos
monstros que o pintor popular Chico da Silva enxergava, quando menino,
nas paredes de seu quarto. “Eu estava na tribuna e, do campo, Faustão
gesticulava furioso, ameaçando-me com o punho cerrado".
Indagado
sobre as escalações de seu time favorito e sobre o jogador Alvaro
Machado – avô deste repórter – nos anos 1940, em que o São Paulo
começou a ser chamado de “máquina” [de ganhar campeonatos], Kawall
nomeia sem hesitar um antigo ataque: “Luizinho, Sastre, Alvaro, Remo e
Pardal: seu avô era centro-avante impetuoso”. A boa memória,
fundamental para a profissão, foi aperfeiçoada em aulas-testes de
memorização comuns nos anos 1970. Mas, aos estudantes de jornalismo,
ele aconselha sobretudo ouvir rádio – “até hoje, a notícia mais quente”
–, assistir mesmo sem convite a entrevistas coletivas e participar de
eventos em torno da vida da cidade. E mais: “Anotar entrevistas, não
confiando apenas no gravador, que sempre falha, e fazer quatro cópias
dos documentos, guardando-as em lugares diferentes, como me ensinou
Paulo Emílio”.
A
admiração dos colegas por seus métodos tornou-o, ao menos uma vez, o
centro da notícia. Em 1960, na recepção oferecida ao general e
presidente dos EUA, Dwight Eisenhower (apelidado Ike), em Brasília – com
segurança nunca vista para proteger o emblema vivo da vitória aliada
na Segunda Guerra Mundial –, o jornalista conseguiu entrar no Palácio
da Alvorada, sendo fotografado a dois metros do norte-americano e
ouvindo seus diálogos. Dias depois, no restaurante Fasano, em São Paulo
(então no Conjunto Nacional), um convidado ajudou-o a fazer chegar à
mesa das autoridades um cardápio, para ser assinado por Ike e pelo
presidente brasileiro JK. Luiz Ernesto Kawall já deixava o prédio quando
a porta do elevador se abriu e entrou o próprio Eisenhower, que
reconheceu o repórter e perguntou, em inglês: “Você de novo?!”. Ele
respondeu: “Sim, general, o senhor parece cansado!”, ao mesmo tempo que
lhe estendia sua caneta, como “presente-símbolo da liberdade da classe
jornalística”, revoltada por ser obrigada a uma distância mínima de
trinta metros da personalidade. Mas a porta do elevador abriu-se outra
vez e saltaram seguranças por todos os lados. Horas depois, o
jornalista voltou para apanhar o menu-troféu, devidamente assinado.
Kawall
também exerceu com frequência a crítica de artes plásticas e publicou,
entre outros, um livro de entrevistas com os 30 mais importantes
artistas brasileiros em 1972, entre eles Volpi, Tarsila do Amaral e
Flávio de Carvalho. O autor lembra que a edição, do Centro de Artes
Novo Mundo, pode ser vista como precursora do trabalho de documentação
hoje realizado pelo Itaú Cultural. Para o curador Antonio Carlos
Abdalla, “Kawall é o decano dos jornalistas ligados às artes visuais e
valorizou muito os artistas populares e naifs.
Promovia eventos como oficinas de cordel em bienais e encotros de
mulheres rendeiras, quando abria as portas de sua casa para alimentar
participantes. Um caráter raro”. ©
Kawall participa do encontro de Eisenhower com Juscelino - Ao lado da foto, o cardápio do restaurante Fasano autografado pelos dois presidentes - (Foto: Marcelo Vigneron).
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