terça-feira, 19 de junho de 2012

Uma "vozoteca" incrível

De Marlene Dietrich cantando em português a discursos de Carlos Lacerda e dos Modernistas de 1922, a "vozoteca" de Luiz Ernesto Kawall reúne cerca de 8 mil gravações e será disponibilizada pela USP (por Alvaro Machado, fotos de Marcelo Vigneron -- Clique nas imagens para ampliá-las.).

Luiz Ernesto Kawall - (Foto: Marcelo Vigneron).

É uma das mais merecidas aposentadorias de que se tem notícia. Jornalista nas áreas de política, cultura e esportes desde sua formatura, em 1951, na turma inaugural da primeira faculdade brasileira de jornalismo, a Cásper Líbero, o paulistano Luiz Ernesto Kawall vive este mês de junho sob circunstâncias muito especiais. Ao mesmo tempo em que completa 85 anos e 60 de exercício da profissão, alcança um objetivo insistentemente perseguido: tornar publicamente disponível a coleção que vem formando há 40 anos e, então, retirar-se da labuta.

Sua “vozoteca” tem, agora, destino certo. Autêntico “museu da voz”, o acervo é composto por cerca de 8 mil gravações, principalmente de discursos, reportagens e emissões radiofônicas, além de declamações e amostras privilegiadas de canto. Várias instituições analisaram neste ano a coleção, entre elas o Museu da Imagem e do Som (MIS) da capital paulista e o Centro Cultural SP, mas foi o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), vinculado à Universidade de São Paulo (USP), que decidiu primeiro acolher em doação todo esse valioso acervo pessoal, a ser alojado em seu novo prédio. Já em fase de acabamento, o amplo edifício ao lado da Reitoria da USP abrigará tanto o IEB como a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. Portanto, em breve, Kawall dará adeus a São Paulo e bom dia a Ubatuba, cidade na qual criou, na década de 1970, o Museu Caiçara, hoje incorporado ao projeto Tamar. 

Sempre de extrema generosidade para transmitir informações, entrevistado regularmente por formandos em jornalismo, Kawall é figura das mais queridas no meio intelectual e artístico. Além de milhares de vozes de personalidades, sua vozoteca conserva vários registros com sua própria voz a contextualizar gravações importantes. Segundo seu criador, trata-se, porém, de um material qualitativo, portanto, relativamente compacto. Nos últimos anos, adiantou parte de sua digitalização, transferindo para CDs centenas de gravações antes em suportes como “bolachas” de vinil e fitas de rolo. Todo o acervo resume-se hoje a quase 4 mil discos raros – desde a primeira gravadora brasileira e exemplos de todas as alternativas –, 500 fitas-cassetes e 200 CDs, estes com montagens de materiais agrupados por temas, além de dois livros de tombo com uma pré-classificação. Atualmente, tudo se encontra na sala de seu apartamento na Praça Benedito Calixto, localizada no bairro de Pinheiros. A praça também abriga uma feira semanal de antiguidades, privilegiada para a garimpagem de vinis, que lhe são reservados de antemão.


“No IEB, a intenção é oferecer para pesquisa e audição online todo o acervo, que passa a ser o nosso maior em termos de som, ao lado das coleções Mário de Andrade e Maestro Camargo Guarnieri”, diz Lúcia Thomé, do Laboratório de Conservação e Restauro da instituição. “Recebemos a coleção com muita alegria, mas ela demandará várias fases de trabalho: apesar das boas condições, é preciso higienizar tudo antes de colocar em ambiente climatizado; analisar o estado de cada item e restaurar o que for necessário, aperfeiçoando a qualidade de som dos arquivos mais importantes. Captar, então, recursos para transferir para suportes acessíveis remotamente e proceder à catalogação final, segundo as normas universais, para uma rápida localização”, detalha a especialista.

SOB AS ORDENS DE LACERDA

Tanto a carreira de Kawall como a coleção de vozes começaram sob a influência direta do polêmico jornalista e político Carlos Lacerda (1914-1977), lembrado, às vezes, como o “derruba-presidentes”. Fundador do jornal carioca Tribuna da Imprensa, Lacerda foi paraninfo na formatura do repórter e convidou-o para substituir Claudio Abramo como correspondente paulista de seu diário. Estava selada, dessa maneira, uma longa colaboração. Por mais de dez anos, Kawall mostrou-se pródigo em obter declarações das principais personalidades brasileiras, de Pelé a Jânio Quadros, de Ciccillo Matarazzo a Juscelino Kubitschek. Credenciou-se, assim, para cuidar da propaganda da campanha de Lacerda para governador do ex-Estado da Guanabara, em 1960. Atingido em atentado a bala em 1954, o político estivera ligado às quedas dos presidentes Getúlio Vargas e Jânio Quadros, além de participar do golpe para derrubar JK. Seu mandato no governo do Rio foi marcado por significativas reformas urbanas e aprovação da opinião pública.

Na época, Luiz Ernesto Kawall idealizou os LPs promocionais da campanha, incluindo jingles encomendados a músicos como Luiz Gonzaga. Assim, os álbuns Rio – Cidade indomável e A redenção da cidade exibem a numeração um e dois na Vozoteca LEK. O disco três, da gravadora Elenco, também traz a voz do político e orador imbatível, já em 1966: Trechos de Júlio César de Shakespeare, em tradução do próprio intérprete.  

 
Foi Lacerda também quem convocou o paulista para ajudar na constituição do primeiro Museu da Imagem e do Som do país, inaugurado em 1965, com o acervo sonoro de seu primeiro diretor, o pesquisador Ricardo Cravo Albin, entre outras coleções.
E Lacerda, mais uma vez, exerceu influência sobre Kawall ao incentivá-lo, durante um encontro casual na paulistana Praça Ramos de Azevedo, em meados dos anos 1960, a iniciar a vozoteca: “Tenho uma coisa para você: estive em Londres e fui a uma espécie de museu da voz, com os discursos de Churchill, a Ave Maria com Maria Callas e muita coisa mais. Fiquei uma tarde inteira. Você deveria fazer o mesmo aqui”.


FORMANDO O MIS-SP

Pela mesma época, 1967, Luiz Ernesto Kawall recebeu do governador de São Paulo, Roberto de Abreu Sodré, de quem também se tornaria muito próximo, a missão de formar o MIS-SP. Para tanto, contou com uma equipe de primeira linha: os críticos Almeida Salles e Paulo Emílio Salles Gomes, e o cineasta Rudá de Andrade, além de Cravo Albin.

Amigo dos mais destacados locutores de rádio dos anos 1950 e 1960, o jornalista recebeu deles gravações raríssimas. Murilo Antunes Alves (Rádio e TV Record) presenteou-o com os discursos de Ciccillo Matarazzo e a reportagem completa da abertura da 1ª Bienal de São Paulo (1951), além da última entrevista de Monteiro Lobato, na qual o escritor falou da corrupção política no país e de reservas de petróleo. Já de Geraldo José de Almeida (Record e Excelsior) veio a locução do célebre gol de bicicleta de Leônidas, em 1942. A exemplo de Geraldo José, são-paulino fervoroso, Kawall tornou-se amigo do jogador, chamado de Diamante Negro, e protagonizou em torno dele uma confusão memorável. Nos anos 1970, o apresentador Fausto Silva, na época locutor da Joven Pan, transmitia partida em homenagem a Leônidas, durante a qual emprestou do jornalista o registro sonoro do gol histórico, para veiculação ao vivo. Mas, em lugar da gravação esportiva, surgiram as recordações dos monstros que o pintor popular Chico da Silva enxergava, quando menino, nas paredes de seu quarto. “Eu estava na tribuna e, do campo, Faustão gesticulava furioso, ameaçando-me com o punho cerrado".

Indagado sobre as escalações de seu time favorito e sobre o jogador Alvaro Machado – avô deste repórter – nos anos 1940, em que o São Paulo começou a ser chamado de “máquina” [de ganhar campeonatos], Kawall nomeia sem hesitar um antigo ataque: “Luizinho, Sastre, Alvaro, Remo e Pardal: seu avô era centro-avante impetuoso”. A boa memória, fundamental para a profissão, foi aperfeiçoada em aulas-testes de memorização comuns nos anos 1970. Mas, aos estudantes de jornalismo, ele aconselha sobretudo ouvir rádio – “até hoje, a notícia mais quente” –, assistir mesmo sem convite a entrevistas coletivas e participar de eventos em torno da vida da cidade. E mais: “Anotar entrevistas, não confiando apenas no gravador, que sempre falha, e fazer quatro cópias dos documentos, guardando-as em lugares diferentes, como me ensinou Paulo Emílio”.

A admiração dos colegas por seus métodos tornou-o, ao menos uma vez, o centro da notícia. Em 1960, na recepção oferecida ao general e presidente dos EUA, Dwight Eisenhower (apelidado Ike), em Brasília – com segurança nunca vista para proteger o emblema vivo da vitória aliada na Segunda Guerra Mundial –, o jornalista conseguiu entrar no Palácio da Alvorada, sendo fotografado a dois metros do norte-americano e ouvindo seus diálogos. Dias depois, no restaurante Fasano, em São Paulo (então no Conjunto Nacional), um convidado ajudou-o a fazer chegar à mesa das autoridades um cardápio, para ser assinado por Ike e pelo presidente brasileiro JK. Luiz Ernesto Kawall já deixava o prédio quando a porta do elevador se abriu e entrou o próprio Eisenhower, que reconheceu o repórter e perguntou, em inglês: “Você de novo?!”. Ele respondeu: “Sim, general, o senhor parece cansado!”, ao mesmo tempo que lhe estendia sua caneta, como “presente-símbolo da liberdade da classe jornalística”, revoltada por ser obrigada a uma distância mínima de trinta metros da personalidade. Mas a porta do elevador abriu-se outra vez e saltaram seguranças por todos os lados. Horas depois, o jornalista voltou para apanhar o menu-troféu, devidamente assinado. 

Kawall também exerceu com frequência a crítica de artes plásticas e publicou, entre outros, um livro de entrevistas com os 30 mais importantes artistas brasileiros em 1972, entre eles Volpi, Tarsila do Amaral e Flávio de Carvalho. O autor lembra que a edição, do Centro de Artes Novo Mundo, pode ser vista como precursora do trabalho de documentação hoje realizado pelo Itaú Cultural.  Para o curador Antonio Carlos Abdalla, “Kawall é o decano dos jornalistas ligados às artes visuais e valorizou muito os artistas populares e naifs. Promovia eventos como oficinas de cordel em bienais e encotros de mulheres rendeiras, quando abria as portas de sua casa para alimentar participantes. Um caráter raro”. ©

 Kawall participa do encontro de Eisenhower com Juscelino - Ao lado da foto, o cardápio do restaurante Fasano autografado pelos dois presidentes - (Foto: Marcelo Vigneron).


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