quinta-feira, 21 de junho de 2012

"Loucura", um texto de Nelson Rodrigues

[O conto a seguir, "Loucura", de 1952, faz parte do artigo de Gutemberg Medeiros que reproduzi na postagem anterior. Este texto, cedido pela editora Nova Fronteira, que vem reeditando a obra de Nelson, foi veiculado uma única vez, na edição de 3 de janeiro de 1952 da Última hora, e nunca mais foi divulgado. Assim como a editora, mantivemos a grafia original do autor.]

LOUCURA

Tragédia, drama, farsa e comédia -- A vida como ela é ...

Por NELSON RODRIGUES

Era de uma família de nervosos. E ela própria reconhecia:
— Meu pessoal todo é assim. Tenho o pior gênio do mundo!
O pior, não. Um dos piores. Tratava o marido como a uma criança. Ele, em casa, era um inibido. A mulher, na irritação constante que a desgastava, vivia fazendo observações:
— Amadeu, não mexe aí! Não põe cinza no tapete! Olha a imundice que você fez no chão!
E o pobre do Amadeu, que podia reagir, valorizar a própria condição de marido, era um abnegado e nenhum temperamento mais acomodatício. De vez em quando, alguém ponderava: “Fulano tem sangue de barata!” Talvez tivesse: mas ele se defendia das críticas com o invariável argumento: “Quero é sossego.” E, na verdade, o que defendia, acima de tudo, dia após dia, não era senão o sossego que ele prezava, acima de tudo.
A princípio, ainda discutia uma vez ou outra; mas acabou com um tão severo e eficaz controle de si mesmo, que suportava os mais graves acintes, as provocações mais exasperantes, com um humor inalterável. A falta de uma reação estimulava o gênio de Marlene. Uma vez, no emprego, Amadeu teve o primeiro desabafo com uma colega de escritório:
— Minha mulher só falta me dar na cara!

INTROMETIDA

A colega em apreço chamava-se Marieta. Era uma morena escura que, segundo uma maledicência geral, esticava os cabelos a poder de vaselina. Fora casada, separara-se do marido e se interessava, de uma maneira quase inconveniente pelo drama conjugal de Amadeu. No fim de cinco ou seis meses de trabalho em comum, ela conquistara a confiança do rapaz; ouvia as confidências e fazia as observações competentes. Suspirava:
— Você é bom demais. Ah, se fosse outro!
Sustentava a tese de que o sujeito bom sempre leva na cabeça. Citava casos de beneméritos que são tratados a pontapés pelas respectivas esposas. Por vezes, fazia insinuações, quase imperceptíveis e que o ingênuo realmente não percebia. Dizia, então: “Há casos que só com pancada.” Até que, um dia, Marieta falou, pela primeira vez, numa possibilidade que jamais ocorrera a Amadeu:
— Quem sabe se tua mulher é maluca.
Espanto do rapaz:
— Maluca?
Ela insistiu:
— Pois é, maluca. O que ela faz, meu filho, é de gente doida. No duro!
Na volta para casa, à noitinha, Amadeu veio pensando, embora com certa relutância, na hipótese. Mas como se caracterizava por uma boa-fé ilimitada, acabou se envergonhando dos próprios pensamentos. Por coincidência, a mulher estava, nesse dia, de uma irritabilidade incrível. Fez barulho porque ele, no seu desmazelo, pusera cinza no assoalho. Esganiçava a voz:
— Tenha vergonha! Tamanho homem e tão porco!
As veias do pescoço saltavam. Dir-se-ia uma possessa. E, então, embora a contragosto, ele se lembrou da colega e da hipótese sugerida. No dia seguinte, em pleno trabalho, a outra voltou à carga. Exprimindo-se em gíria, foi bastante positiva:
— Sabe qual é o golpe? Consultar um médico! Vai por mim, que você vai bem! Um psiquiatra!
Não largou mais aquela ideia:
— Tua mulher sofre da bola! Aposto minha cabeça!    

O ROMANCE 

Cada vez mais desconsiderado em casa, sofrendo desacatos diários, ele foi se deixando dominar pela outra. As indiretas de Marieta eram cada vez mais nítidas.
— Só te digo uma coisa: outro qualquer já teria dado um chute nessa mulher. E é isso que ela merecia!
Amadeu, fraco, pusilânime, com um horror das resoluções heroicas, balbuciava:
— É minha esposa. Casei-me com ela.
No fundo, era a favor do casamento indissolúvel. Achava uma coisa horrorosa os casais que se separam. Então, a outra, baixando a voz e sem desfitá-lo, usava um argumento considerável:
— Ninguém é obrigado a viver com uma louca. Compreendeste? E ninguém me tira da cabeça: tua mulher é maluca, meu filho!
O fato é que, sugestionado, ele acabou sugerindo, em casa:
— Minha filha, se eu fosse você ia a um médico.
A mulher estacou:
— Médico de que?
Pigarreou:
— Médico de nervos, meu anjo. Porque, meu bem, você anda tão alterada!
Pela primeira vez, aquela mulher que esbravejava tanto, que fazia a vida de todos um inferno, acusou o primeiro sintoma de pusilanimidade. Não soube o que dizer, com um súbito medo. E, muito pálida, fez a pergunta, em voz baixa:
— Você está insinuando o quê? Hein, Amadeu? Que história é essa?
Exaltou-se, de novo:
— Eu sei o que você está pensando! Sei, sim! Mas desista, Amadeu, desista, porque não vou a médico nenhum!

O MEDO
 
Mas, enfim, tinha medo. Desde mocinha que trazia em si o pavor da loucura. Era um sentimento obstinado, que fazia por esquecer. Um dia, não resistiu e confessou este pânico a um médico. Ele, com muito tato, a tranquilizou:
— Isso não tem importância. É próprio da pessoa nervosa.
Com o correr do tempo, teve suas crises de angústia. Não podia saber de um caso de loucura, que não gelasse, apavorada. Perguntava, então, a si mesma: “Quando chegará a minha vez?” A sugestão do marido caíra em terreno propício. Num instante, pôs-se a pensar mil coisas, numa especulação infinita. No fim de muitas horas de solitária, de ardente meditação, concluiu: “Ele quer se ver livre de mim!” No dia seguinte, pela manhã, antes de escovar os dentes, perguntava com doçura, quase com humildade:
— Você seria capaz de me internar?
— Que bobagem!
— Responde, Amadeu. Se eu ficasse doida, você me internaria, hein?
— Ora, Marlene! Sossega!
Mas ela, obstinada, numa ideia fixa que a consumia, não sossegou enquanto ele, diante de tamanha angústia, não prometesse: “Claro que não, ora essa!” E ela:
— Eu conheço famílias que conservam, em casa, os parentes doidos!
No escritório, Amadeu, impressionadíssimo, contou o episódio à Marieta. Esta pareceu exultar:
— Não te disse? Batata! Nem tem graça!
Ele, preocupado, só dizia:
— Fiquei besta!
A situação sentimental, entre os dois, estava mais do que definida. Iam ao cinema, ao teatro, e Marieta não perdia a oportunidade de comentar:
— Ah, se eu fosse tua mulher! Se eu morasse contigo!  

A TRAGÉDIA
 
Os dois já consideravam, com tranquila objetividade, a seguinte hipótese: que Marlene enlouquecesse e tivesse de ser internada. Esperavam, apenas, que os sintomas se tornassem mais nítidos, mais insofismáveis. Por fim, já estavam impacientes, achando que o mal não evoluía tão rapidamente quanto desejavam. E, além disso, aconteceu o que estava fora de suas cogitações: Marlene se transformava, e para melhor. O medo de enlouquecer a tornava mais tranquila, menos excitada. Exercia sobre si mesma um grande controle e fazia um contínuo esforço, no sentido de evitar as irritações, os paroxismos. No escritório, Amadeu, decepcionado, desabafava com a morena escura:
— Acho que foi rebate falso. Soltamos foguetes antes da festa. Minha mulher está calma que só vendo!
Marieta, obstinada, insistia:
— Também há loucura mansa, ora essa!
E ele, coçando a cabeça:
— É o diabo! Um caso sério!
Mas seu alarme cresceu. Porque Marlene já se fazia meiga, carinhosa, humilde. Desde que o marido prometera que não a internaria, em hipótese nenhuma, ela se voltava para ele numa atitude de gratidão comovida. E esta ternura, que o rapaz não desejava, tinha o poder de irritá-lo profundamente. Foi assim que, uma noite, sob a sugestão de não sei que demônio, virou-se para a esposa. Segurava uma xícara, pequena, de café. E perguntou, de repente:
— Que é isso?
— Xícara.
— Não é xícara. É pires.
A mulher, atônita, apanhando a xícara, balbuciou:
— Pires? Isso é pires? Não é xícara?
— Claro, evidente! Você queria que fosse o quê? Que graça!
A brincadeira aparente escondia um fundo de perversidade que ele desconhecia em si mesmo. Viu o pavor da mulher. Durante um, dois, três minutos, não se falaram, espreitavam-se, apenas. Depois, ela desviou a vista para a xícara pequena, com absoluta fascinação. Repetiu:
— É pires, não é xícara, pires!
Olhava, agora, em torno, incerta de tudo e de todos. Parecia não reconhecer mais os móveis, as paredes, o lustre, o teto. Talvez a mesa não se chamasse mesa, tivesse outro nome qualquer. Ele, continuando a comédia, fazia um espanto alegre:
— O que é que há contigo? Não brinca assim, Marlene! Podem te achar maluca!

A CERTEZA
 
Marlene levou a pequena xícara para o quarto. Tinha vontade de gritar, de fugir, de correr. O medo da loucura estava no mais íntimo de si mesma; e mais do que isso: da internação. De vez em quando, olhava para o marido. Sem sentir, o rosto de Amadeu aparecia mais nu do que nunca, sem um disfarce, sem uma máscara. A maldade estava nos olhos, no ríctus cruel. Dir-se-ia a face do demônio. Então, Marlene teve a brusca certeza: “Vou enlouquecer e ele me internará.” Aceitaria a loucura. Não o hospital de loucos. Depois, o medo se transformou em ódio. Alta noite, Amadeu estava dormindo. E, foi assim que recebeu na altura da carótida, um golpe só, medonho. Com a navalha de barba do marido, ela o degolara. ©











 

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