Em
meio à penumbra, o facho de luz incide de modo seletivo sobre um nada
exultante David e expõe o instante em que o herói segura a cabeça do
gigante Golias. As pinceladas não poupam a dramaticidade da cena: estão
à mostra todo o horror da face de quem acabou de ser decapitado, o
olhar do homem diante da morte. A disposição das figuras, a inclinação
do corpo e dos elementos, tudo sugere um momento que foi congelado,
como em uma fotografia. A obra David segurando a cabeça de Golias,
de 1610, expressa o compromisso com a verdade e a aversão aos vícios
acadêmicos. Trata-se de uma das muitas pinturas do artista barroco
Michelangelo Merisi (1571-1610), conhecido como Caravaggio – nome da
sua aldeia natal perto do Bérgamo, na Lombardia.
De
postura revolucionária, seus trabalhos costumavam provocar escândalo,
sendo por vezes recusados por quem os encomendava. O artista,
inclusive, teve que fazer uma segunda versão de algumas obras
encomendadas pela Igreja Católica. Chocava, por exemplo, a obscenidade
de determinadas expressões e situações. Mas sua vida pessoal não era
menos controversa, imersa em confusões, rumores de crimes, fugas e
perseguições. Com 18 anos, foi para Roma e lá desenvolveu parte de sua
obra, alternando as sessões de trabalho com as de bebida, junto com os
vagabundos da cidade.
Capaz
de trabalhar em velocidade incrível diretamente na tela, sem mesmo ter
esquematizado suas personagens, o pintor, criador de obras como A vocação de São Mateus
(1599-1600), passou sua existência desesperada e violenta – chegou a
confessar um homicídio – de calabouço em calabouço, dos quais foi sendo
arrancado por protetores poderosos, cada vez com maior dificuldade.
Estilo de vida que o levou à morte com apenas 40 anos, vítima de
provável assassinato.
A
mesma postura dissonante, no trabalho e na vida, fez com que sua obra
fosse esquecida por séculos, apesar da enorme difusão da escola
“caravaggesca” no começo dos anos 1600 e de ter influenciado artistas
como Velázquez e Rembrandt. É possível considerar Caravaggio uma
descoberta do século 20, resgatado pelo historiador Roberto Longhi em
sua tese universitária, escrita em 1911, e na versão definitiva da
monografia, de 1968. “Foi esquecido, mas sem ele não teria havido
Ribera, Vermeer, La Tour, Rembrandt. Delacroix, Coubert e Manet teriam
pintado de outra forma”, escreveu o estudioso.
CLARO E ESCURO
Em
suas telas, o pintor utilizava o contraste, o jogo de luz e sombra
para tornar ainda mais reais suas personagens, todas recrutadas das
ruas, mesmo para as cenas sagradas. Personagens da vida que podem ser
identificadas em várias pinturas, como o instrumentista do Tocador de lira (1596-97), presente ainda em Concerto de jovens, também chamada de Os músicos (1594-95). Inspirado, inicialmente, apenas pelos jovens garotos, não tardou, todavia, para que a Madalena arrependida nascesse de seus pincéis. Caravaggio teve como modelo preferida a jovem Fillide Melandroni, que posou para Judite e Holofernes (1599), Santa Catarina de Alexandria (1598) e para Marta em A conversão de Madalena (1598).
Chama a
atenção, no entanto, a presença do próprio artista como personagem em
algumas obras. Para produzir os autorretratos, ele utilizava espelhos,
os mesmos que serviam para retratar outros modelos vivos, com
iluminação artificialmente dirigida. Há ainda a possível hipótese,
estudada por David Hockney e Charles Falco, do uso de instrumentos
óticos para projetar imagens sobre a tela. Ao pintar o que aparece no
espelho, a imagem é simplesmente um recorte daquilo que se vê em
determinado momento, como um fotograma.
No autorretrato de O pequeno Baco doente (1593-1594),
pintado após seis meses em um hospital, as olheiras profundas e o
aspecto da pele sugerem a doença – a febre romana ou a peste – que
nunca chegará a passar totalmente. Em outro, o amor mostra-se presente.
É o caso de Os músicos. Na tela, Caravaggio é o cantor do fundo, à direita. [Clique nas imagens para ampliá-las.]
O pequeno Baco doente - Caravaggio
Os músicos - Caravaggio
Recentemente, restauradores descobriram outro autorretrato, dessa vez no interior do jarro de vinho da tela Grande Baco
(1596-1597), no qual o artista pintou a silhueta de um homem de pé,
com um braço estendido. Mas ele ainda aparece em outros trabalhos, como
no quadro O Martírio de São Mateus (1599-1600), quando é uma das testemunhas da cena, de rosto atormentado.
Grande Baco - Caravaggio
O Martírio de São Mateus - Caravaggio
MEMÓRIAS
Pintada
durante a estada de cinco meses na Ilha de Malta, após fugir da
condenação à pena capital, em Roma, por assassinato, a tela A Degolação de S. João Batista
(1608) é uma das obras que evocam rebatimentos do artista com sua
vida. Sobre a cena, composta por um carrasco que acaba de dar um golpe
com espada em um mártir degolado, Pietro Ambrogiani escreveu: “Não
podemos nos impedir de pensar que o pintor se inspirou em recordações
pessoais”. É a única tela assinada por Caravaggio com o nome
aparentemente traçado com o sangue que sai do pescoço, sugerindo uma
identificação com a vítima. Nesse sentido, a cabeça cortada do gigante,
em David segurando a cabeça de Golias,
seria igualmente mais um autorretrato seu. Segurada por um David pouco
triunfante, a cabeça de Golias ilustra o profundo tumulto de um pintor
atormentado pela perseguição inclemente dos adversários. E foi o
próprio Caravaggio que, pouco antes de morrer, atacado e abandonado na
rua em Nápoles, ficou com uma cicatriz no rosto como a do seu
personagem. A arte imita a vida e vice-versa.
A degolação de S. João Batista - Caravaggio
David com a cabeça de Golias - Caravaggio
O famosíssimo "São Jerônimo que escreve", de Caravaggio.
Detalhe da "Crucificação de S. Pedro", de Caravaggio.
Caravaggio, por Ottavio Leoni (cerca de 1621).
O famosíssimo "São Jerônimo que escreve", de Caravaggio.
Detalhe da "Crucificação de S. Pedro", de Caravaggio.
Caravaggio, por Ottavio Leoni (cerca de 1621).
O MESTRE E SEUS SEGUIDORES
Por Melanie Torres
Diversos períodos pictórios da vida do artista italiano podem ser conferidos em Caravaggio e seus seguidores,
exposição em cartaz na Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte, até 15
de julho, antes de migrar para o Masp (Museu de Arte de São Paulo),
onde fica de 26 de julho a 20 de novembro. Com curadoria no Brasil de
Fábio Magalhães, a mostra tem pinturas do período romano, o mais
expressivo do artista, e 14 telas dos seus principais seguidores.
“Acredito que não se trata de uma exposição de massa. É uma mostra que
tem um recorte expográfico muito expressivo e precioso, porque são
obras significativas dentro de suas próprias coleções regionais. Então,
o público daqui terá acesso a peças que estão nos museus mais
relevantes para entender a história desse período e, sobretudo,
Caravaggio”, ressalta André Tavares, professor de História da Arte da
Universidade Federal de São Paulo.
Telas,
inclusive, que apresentam curiosas facetas do italiano. “Ele trabalhou
temas de grande dramaticidade, que incluíam erotismo. Por outro lado,
trabalhou muito a espiritualidade, sobretudo em obras do texto
bíblico”, lembra o museólogo Magalhães. Para Rossela Vodret, uma das
principais especialistas em Caravaggio na Itália e coordenadora da
exposição, essa é também uma ótima oportunidade para conferir os
trabalhos dos caravaggescos que, ainda de acordo com a italiana,
tiveram uma grande desventura artística ao viver no mesmo período de um
gênio. “Os caravaggescos eram grandes pintores, mas quando se tem um
gênio, tudo fica obscurecido. Foi isso o que aconteceu.” Ela aponta que
um dos principais seguidores do mestre foi Giovanni
Baglione, de quem foi selecionada para a
mostra no Brasil a obra Ecce homo.©
Ecce Homo, de Giovanni Baglione, um dos seguidores de Caravaggio.
adorei receber estes textos.Quando vi pela primeira vez uma pintura de Caravaggio, senti um impacto tão forte que até hoje me emociona.Foi na Pinacoteca di Brera em Milão.Ele me abriu os olhos,a mente e a sensibilidade para apreciar todos os outros pintores que existiram antes e depois dele...
ResponderExcluirCristina