quinta-feira, 21 de junho de 2012

100 x Nelson Rodrigues

[Reproduzo a seguir o artigo de Gutemberg Medeiros na Revista da Cultura deste mês, com o título desta postagem, sobre o genial jornalista e escritor pernambucano Nelson Rodrigues, na esteira das comemorações pelo centenário de seu nascimento neste 2012. O texto "Loucura", de Nelson, que faz parte do artigo, deixei-o para a postagem seguinte.]

CENTENÁRIO DO JORNALISTA E ESCRITOR DESPERTA OUTRAS VISÕES SOBRE SUA VASTA PRODUÇÃO E IMPORTÂNCIA NA CULTURA BRASILEIRA

No cenário cultural brasileiro da segunda metade do século passado, brilhou o grupo de mineiros radicados no Rio de Janeiro conhecidos como “Cavaleiros de um íntimo apocalipse”: Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino. Talvez mais um pudesse ser incluído, se mineiro fosse, pela amizade que o ligava a todos. O quinto cavaleiro seria Nelson Rodrigues, que completa 100 anos de nascimento em 23 de agosto próximo. Artista e jornalista – falecido em dezembro de 1980 –, ele faria jus ao nome do grupo por um sentido específico: o de ter mapeado com profundidade uma série de aspectos da cultura brasileira e do limite do humano, demasiadamente humano. 

Fartamente clicado, uma imagem que melhor o revela é a fotomontagem da capa da primeira edição de Memórias – A menina sem estrela (1967). Nelson vira vários Nelsons, plural como suas atividades em torno da palavra: repórter, dramaturgo, romancista, cronista e memorialista. Em todos, caminhou sobre o fio da navalha da condição humana, por vezes questionando acidamente o leitor ou o espectador. A Revista da Cultura ouviu amigos e pesquisadores para levantar aspectos de sua vasta obra. Mas é muito difícil não chegar perto da palavra “gênio”, apesar de ainda ter muito a se descobrir sobre ele.

Ele pelos outros

Mas quem era, afinal, Nelson Rodrigues? Para o escritor, jornalista e último “personagem” de suas crônicas, Carlos Heitor Cony, foi talvez a figura mais importante tanto no jornalismo como no teatro brasileiros, além de um amigo muito querido. Tinha raro talento: o dom da “palavra certa ou justa” para sintetizar bem o que queria dizer. E o que mais se aproximou da poesia, tanto que Manuel Bandeira o definia como “o maior prosador dramático da cultura nacional”. Um exemplo de lirismo na dramaturgia, Cony lembra a fala repentina do texto de Valsa nº 6 (esgotado): “E quando chove em cima das igrejas, os anjos escorrem pelas paredes”. Para ele, tal imagem desconcerta o espectador e é difícil acompanhar a encenação.

Sábato Magaldi, autor de Nelson Rodrigues: dramaturgia e encenações e Teatro da obsessão: Nelson Rodrigues, o define como “o maior dramaturgo brasileiro, o autor que deu dimensão universal à nossa literatura dramática”. Amigos desde os anos 1950, quando Magaldi era crítico do Diário Carioca, os dois conviveram por quase 30 anos e se falavam por telefone todas as semanas. 

A mais longeva crítica teatral em atuação no Brasil, escrevendo desde 1957 em jornais diários, Barbara Heliodora não hesita em comparar Nelson a Shakespeare. “Apenas pelo fato de serem dois homens de suas épocas, que absorveram os universos que os rodeavam e tiveram não só uma capacidade excepcional para criar as personagens que habitariam suas obras. Ambos tinham um talento especial para o teatro, vendo o mundo em termos de ação, pois só quem pensa assim escreve bom teatro”, enfatiza.

A amizade entre eles nasceu quando o dramaturgo soube que Barbara era filha do “Marcos do Fluminense”. “Meu pai foi tricampeão pelo time e goleiro da seleção campeã sul-americana de 1919. O Nelson volta e meia falava nele. Nós nos encontrávamos no teatro ou no Maracanã, sempre com papos tranquilos e simpáticos".

Para melhor descobrir o teatro brasileiro e o seu “mais importante dramaturgo”, o professor americano Fred Clark veio para cá em 1970. Na mala, a vontade de traduzir a peça Vestido de noiva (esgotado), que muito o impressionou. “Fui ao O Globo e passamos uma hora conversando sobre o seu teatro e eu disse de meu interesse em traduzir Vestido de noiva para o inglês”. No dia seguinte, recebeu a carta de autorização. Clark tornou-se professor da Universidade da Carolina do Norte (EUA) e publicou duas obras e 40 textos científicos sobre o teatro do escritor brasileiro. Nos seus poucos encontros com ele, Clark se lembra de como Nelson se referiu ao dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill, um dos mais importantes do globo e Nobel de Literatura de 1936.  “Ele me disse que O’Neill era um grande talento e eu vi certas semelhanças entre ambos".  

O blefe de Nelson
 
Em 1961, o jornalista Paulo Francis publica um texto no qual aborda Nelson com descrição vívida na redação do jornal Última Hora. “Ele estava sentado de lado, pernas cruzadas, datilografando intermitentemente. Nas pausas, parecia dialogar com alguém, em murmúrios acompanhados de gestos discretos: sua expressão variava do ameaçador ao impassível, do sarcástico ao confidencial; vivia as personagens de A vida como ela é... (esgotado) antes de passá-las para o papel".

Mas erra, e muito, ao afirmar que o jornalista era “uma das pessoas mais ignorantes” e sua capacidade de leitura só alcançava jornais nas editorias de esporte e polícia. Cony rebate dizendo que o escritor vendia essa ideia de ser um analfabeto inculto – esse seria seu maior blefe. “Ele dizia que a sua universidade eram o botequim, as ruas, o futebol e as redações de jornal diário.” Não teve formação acadêmica, mas era um leitor de longo curso. “Leu muito Dostoiévski, Machado de Assis, Eça de Queirós, entre outros.” Mas tinha postura atípica, rememora Cony, ao ler um livro ou partida de futebol. Não dava muita importância ao que via, pinçava o que era mais interessante para levar aos seus textos. 

“Ele gostava de dizer que nunca tinha lido uma peça antes de escrever as suas, mas nunca consegui me convencer que isso não fosse uma espécie de pose dele”, afirma Barbara. Ela lembra que o dramaturgo gostava de desmontar noções como a de alta e baixa cultura. “Sempre achei notável o fato de ele delimitar o nível cultural de Alaíde, personagem de Vestido de noiva, fazendo-a apreciar ... E o vento levou e A Traviata na música, ou seja, tanto apreciava o best-seller quanto a ópera italiana.” Magaldi encerra a questão: “Se Nelson fosse ignorante, jamais teria construído a obra impressionante que ele deixou”.  

Erros e frases

Nelson despertou juízos díspares. Clark acredita que o maior erro foi o de o tacharem de pornógrafo. “Não vejo nada pornográfico em suas peças, mas um grande interesse no ser humano e no sexo como um aspecto muito importante da vida humana".


Erro mesmo era acusá-lo de “reacionário”, pontua Magaldi. Para o crítico, um dia será necessário rever o epíteto de reacionário que sobre ele se afixou, pois há muito de “feroz ironia nesse qualificativo. Quem fala mal de Nelson Rodrigues é um imbecil”, dispara.

Cony tem a mesma posição. Para ele, o cronista não era reacionário ideológico, mas tinha uma visão crítica sobre a esquerda, e não atacava o regime militar por ter um filho e amigos presos. Acerta Manuel Bandeira, que escreveu meses antes da estreia de Vestido de noiva: “Sem dúvida, o teatro desse estreante desnorteia bastante, porque nunca é apresentado só nas três dimensões euclidianas da realidade física. Nelson Rodrigues é poeta”. 

Barbara acredita que parece “um engano a busca do clima das chamadas peças míticas, nas quais Nelson não chega a estabelecer uma dramaturgia realmente eficiente” e o melhor está em Vestido de noiva e O beijo no asfalto. Já seu maior tino está nas peças cariocas, nas quais, “pela primeira vez, transpõe para o palco, em termos teatrais, o linguajar do Rio de Janeiro, criando, com seu ouvido de repórter, ações dramáticas que lembram o ‘aqui e agora’ de A vida como ela é..., alterando definitivamente o teatro brasileiro”.  

Por outro lado, Nelson era grande frasista. Barbara conta uma que ouviu pessoalmente dele, sentada ao seu lado no intervalo de um jogo no Maracanã – naturalmente, ambos torcendo pelo Fluminense: “Tenho a impressão de que em outra encarnação eu já pastei; porque olho para esse verde e me dá uma tranquilidade...”  ou “Se carrocinha apanha cachorro, por que não apanha crítico?”. O humor e as frases jorravam em seu cotidiano. Após décadas debruçado sobre a obra do brasileiro, Clark destaca: “Toda coerência é, no mínimo, suspeita”; “Invejo a burrice, porque é eterna”; e “O dinheiro compra até o amor verdadeiro”.

Tiro ao alvo

Com vários temas recorrentes na prosa, no teatro e na crônica, Nelson Rodrigues teve como um de seus alvos a imprensa. Do jornalismo sempre tirou seu ganha pão. E não apenas isso. Grandes dramas viveu em redações. “O jornal era a vida dele e o que valia a pena”, define Cony. 

Nelson e sua mulher, Elza Bretanha Rodrigues - (Foto: Silvestre Silva).

Em texto de 1966, o crítico Leo Gilson Ribeiro traz a afirmação de Nelson sobre O beijo no asfalto, logo após a estreia, em 1961: “Todos estamos afetados por essa peça e ninguém que a veja poderá sentir-se alheio a ela, pois nos envolve a todos. Eu creio firmemente que vivemos numa floresta de papel impresso: somos modelados, condicionados pela imprensa”. 

Até essa histórica montagem com Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Mário Lago e grande elenco, era comum no teatro rodrigueano o jornalismo ser representado por profissionais de ética no mínimo discutível. Em O beijo no asfalto, o dramaturgo parte de um fato: um homem comum cumpre o último desejo de um atropelado que, às portas da morte, pede um beijo na boca. Um repórter de polícia faz matérias forjando um caso escandaloso de homossexualidade. Para dar veracidade à peça, Nelson faz com que esse jornalista, personagem chave do espetáculo, receba o nome verdadeiro do maior repórter dessa editoria no poderoso jornal Última Hora: Amado Ribeiro. Samuel Wainer, o dono do periódico na vida real – o mesmo no qual Nelson era sucesso há 10 anos com sua coluna A vida como ela é... – também é mencionado em cena. E o próprio jornal é apresentado, na visão do escritor, como aquele que induz a chamada “opinião pública”, a mesma que execra aquele que beijou na boca, levando-o a uma morte trágica.

Luiz Fernando Mercadante – que passou por grandes veículos como Jornal do Brasil e Realidade – lembra que na estreia do espetáculo em questão, mais da metade da plateia era formada por jornalistas do Rio de Janeiro e de outros estados. “Corria o boato de que Nelson escrevia uma peça contra nós e a classe compareceu em peso”. Após o pano final, não teve o aplauso esperado. Os jornalistas saíram em silêncio e, no dia seguinte, alegaram que o autor retratava a redação de Última Hora e que todos os outros eram éticos no cotidiano. Mercadante viu a felicidade estampada no rosto de Amado Ribeiro durante a temporada. “Ele era pior do que na peça.” Mas, fora o jornalista de polícia e Wainer, todos viraram a cara para ele, o que o fez sair do jornal.


1968 não acabou

Um dos estudos acadêmicos mais originais sobre o dramaturgo é A palavra nova – O diálogo entre Nelson Rodrigues e Dostoiévski, da historiadora e professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Claudia Drucker. Ela provou que uma das maiores obsessões do cronista – a de citar o autor russo – não era brincadeira, mas profunda identificação.
Seu primeiro desafio foi encontrar o lugar de Nelson Rodrigues na história da cultura brasileira. Para ela, fala-se na ebulição despertada pela Semana de Arte Moderna de 1922 e na efervescência da década de 1960 como se o cronista e dramaturgo fosse tão retrógrado que não possa ser citado. Afirma que ele não se identificou com qualquer movimento modernista, mas deve-se reconhecer a peculiaridade da sua obra, “o que não impede que fosse visto como alguém capaz de pensar sobre questões muito semelhantes às dos modernistas, tropicalistas, brechtianos, socialistas etc. O ano de 1968 se tornou símbolo de visão de mundo e qualquer pessoa diferente foi considerada ultrapassada – e ainda é, em grande parte”.

A última coisa que o autor de O beijo no asfalto – e de outras 16 peças, além de romances e livros de contos – deseja fazer é um retrato realista e agradável da vida urbana: o realismo, diz ele, é uma “quase canalhice”. A fusão de memorialismo, reflexão, notícia e ficção em seu trabalho lembra a tradição satírica da imprensa russa da segunda metade do século 19 com debates políticos, morais e metafísicos em linguagem semicifrada para escapar à censura, expõe Claudia.  “Parece-me que Nelson foi contagiado por esta liberdade para transitar entre gêneros literários e pela sua seriedade, vestida de humor, no tratamento de todo tipo de tema.” Ainda defende que Nelson se valeu do escritor russo, autor de O duplo e Crime e castigo, entre outros, ao recusar o realismo e a ausência de tensão trágica, ao contrário da maioria. Ele nunca explicou em detalhes sua visão de Dostoiévski, mas legou uma ou outra observação como ‘a grande ficção nada tem a ver com o bom gosto’ e ‘Dostoiévski é o meu único professor de drama’ ".  



 


 

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