CENTENÁRIO DO JORNALISTA E ESCRITOR DESPERTA OUTRAS VISÕES SOBRE SUA VASTA PRODUÇÃO E IMPORTÂNCIA NA CULTURA BRASILEIRA
No cenário cultural brasileiro da segunda metade do século passado, brilhou o grupo de mineiros radicados no Rio de Janeiro conhecidos como “Cavaleiros de um íntimo apocalipse”: Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino. Talvez mais um pudesse ser incluído, se mineiro fosse, pela amizade que o ligava a todos. O quinto cavaleiro seria Nelson Rodrigues, que completa 100 anos de nascimento em 23 de agosto próximo. Artista e jornalista – falecido em dezembro de 1980 –, ele faria jus ao nome do grupo por um sentido específico: o de ter mapeado com profundidade uma série de aspectos da cultura brasileira e do limite do humano, demasiadamente humano.
Fartamente clicado, uma imagem que melhor o revela é a fotomontagem da capa da primeira edição de Memórias – A menina sem estrela (1967). Nelson vira vários Nelsons, plural como suas atividades em torno da palavra: repórter, dramaturgo, romancista, cronista e memorialista. Em todos, caminhou sobre o fio da navalha da condição humana, por vezes questionando acidamente o leitor ou o espectador. A Revista da Cultura ouviu amigos e pesquisadores para levantar aspectos de sua vasta obra. Mas é muito difícil não chegar perto da palavra “gênio”, apesar de ainda ter muito a se descobrir sobre ele.
Ele pelos outros
Sábato Magaldi, autor de Nelson Rodrigues: dramaturgia e encenações e Teatro da obsessão: Nelson Rodrigues, o define como “o maior dramaturgo brasileiro, o autor que deu dimensão universal à nossa literatura dramática”. Amigos desde os anos 1950, quando Magaldi era crítico do Diário Carioca, os dois conviveram por quase 30 anos e se falavam por telefone todas as semanas.
A
mais longeva crítica teatral em atuação no Brasil, escrevendo desde
1957 em jornais diários, Barbara Heliodora não hesita em comparar
Nelson a Shakespeare. “Apenas pelo fato de serem dois homens de suas
épocas, que absorveram os universos que os rodeavam e tiveram não só
uma capacidade excepcional para criar as personagens que habitariam
suas obras. Ambos tinham um talento especial para o teatro, vendo o
mundo em termos de ação, pois só quem pensa assim escreve bom teatro”,
enfatiza.
A
amizade entre eles nasceu quando o dramaturgo soube que Barbara era
filha do “Marcos do Fluminense”. “Meu pai foi tricampeão pelo time e
goleiro da seleção campeã sul-americana de 1919. O Nelson volta e meia
falava nele. Nós nos encontrávamos no teatro ou no Maracanã, sempre com
papos tranquilos e simpáticos".
Para
melhor descobrir o teatro brasileiro e o seu “mais importante
dramaturgo”, o professor americano Fred Clark veio para cá em 1970. Na
mala, a vontade de traduzir a peça Vestido de noiva (esgotado), que muito o impressionou. “Fui ao O Globo e passamos uma hora conversando sobre o seu teatro e eu disse de meu interesse em traduzir Vestido de noiva para
o inglês”. No dia seguinte, recebeu a carta de autorização. Clark
tornou-se professor da Universidade da Carolina do Norte (EUA) e
publicou duas obras e 40 textos científicos sobre o teatro do escritor
brasileiro. Nos seus poucos encontros com ele, Clark se lembra de como
Nelson se referiu ao dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill, um dos
mais importantes do globo e Nobel de Literatura de 1936. “Ele me
disse que O’Neill era um grande talento e eu vi certas semelhanças
entre ambos".
O blefe de Nelson
Em 1961, o jornalista Paulo Francis publica um texto no qual aborda Nelson com descrição vívida na redação do jornal Última Hora.
“Ele estava sentado de lado, pernas cruzadas, datilografando
intermitentemente. Nas pausas, parecia dialogar com alguém, em
murmúrios acompanhados de gestos discretos: sua expressão variava do
ameaçador ao impassível, do sarcástico ao confidencial; vivia as
personagens de A vida como ela é... (esgotado) antes de passá-las para o papel".
Mas
erra, e muito, ao afirmar que o jornalista era “uma das pessoas mais
ignorantes” e sua capacidade de leitura só alcançava jornais nas
editorias de esporte e polícia. Cony rebate dizendo que o escritor
vendia essa ideia de ser um analfabeto inculto – esse seria seu maior
blefe. “Ele dizia que a sua universidade eram o botequim, as ruas, o
futebol e as redações de jornal diário.” Não teve formação acadêmica,
mas era um leitor de longo curso. “Leu muito Dostoiévski, Machado de
Assis, Eça de Queirós, entre outros.” Mas tinha postura atípica,
rememora Cony, ao ler um livro ou partida de futebol. Não dava muita
importância ao que via, pinçava o que era mais interessante para levar
aos seus textos.
“Ele
gostava de dizer que nunca tinha lido uma peça antes de escrever as
suas, mas nunca consegui me convencer que isso não fosse uma espécie de
pose dele”, afirma Barbara. Ela lembra que o dramaturgo gostava de
desmontar noções como a de alta e baixa cultura. “Sempre achei notável o
fato de ele delimitar o nível cultural de Alaíde, personagem de Vestido de noiva, fazendo-a apreciar ... E o vento levou e A Traviata
na música, ou seja, tanto apreciava o best-seller quanto a ópera
italiana.” Magaldi encerra a questão: “Se Nelson fosse ignorante,
jamais teria construído a obra impressionante que ele deixou”.
Erros e frases
Nelson
despertou juízos díspares. Clark acredita que o maior erro foi o de o
tacharem de pornógrafo. “Não vejo nada pornográfico em suas peças, mas
um grande interesse no ser humano e no sexo como um aspecto muito
importante da vida humana".
Erro
mesmo era acusá-lo de “reacionário”, pontua Magaldi. Para o crítico, um
dia será necessário rever o epíteto de reacionário que sobre ele se
afixou, pois há muito de “feroz ironia nesse qualificativo. Quem fala
mal de Nelson Rodrigues é um imbecil”, dispara.
Cony
tem a mesma posição. Para ele, o cronista não era reacionário
ideológico, mas tinha uma visão crítica sobre a esquerda, e não atacava
o regime militar por ter um filho e amigos presos. Acerta Manuel
Bandeira, que escreveu meses antes da estreia de Vestido de noiva:
“Sem dúvida, o teatro desse estreante desnorteia bastante, porque
nunca é apresentado só nas três dimensões euclidianas da realidade
física. Nelson Rodrigues é poeta”.
Barbara
acredita que parece “um engano a busca do clima das chamadas peças
míticas, nas quais Nelson não chega a estabelecer uma dramaturgia
realmente eficiente” e o melhor está em Vestido de noiva e O beijo no asfalto.
Já seu maior tino está nas peças cariocas, nas quais, “pela primeira
vez, transpõe para o palco, em termos teatrais, o linguajar do Rio de
Janeiro, criando, com seu ouvido de repórter, ações dramáticas que
lembram o ‘aqui e agora’ de A vida como ela é..., alterando definitivamente o teatro brasileiro”.
Por
outro lado, Nelson era grande frasista. Barbara conta uma que ouviu
pessoalmente dele, sentada ao seu lado no intervalo de um jogo no
Maracanã – naturalmente, ambos torcendo pelo Fluminense: “Tenho a
impressão de que em outra encarnação eu já pastei; porque olho para
esse verde e me dá uma tranquilidade...” ou “Se carrocinha apanha
cachorro, por que não apanha crítico?”. O humor e as frases jorravam em
seu cotidiano. Após décadas debruçado sobre a obra do brasileiro, Clark
destaca: “Toda coerência é, no mínimo, suspeita”; “Invejo a burrice,
porque é eterna”; e “O dinheiro compra até o amor verdadeiro”.
Tiro ao alvo
Nelson e sua mulher, Elza Bretanha Rodrigues - (Foto: Silvestre Silva).
Em texto de 1966, o crítico Leo Gilson Ribeiro traz a afirmação de Nelson sobre O beijo no asfalto,
logo após a estreia, em 1961: “Todos estamos afetados por essa peça e
ninguém que a veja poderá sentir-se alheio a ela, pois nos envolve a
todos. Eu creio firmemente que vivemos numa floresta de papel impresso:
somos modelados, condicionados pela imprensa”.
Até
essa histórica montagem com Fernanda Montenegro, Fernando Torres,
Mário Lago e grande elenco, era comum no teatro rodrigueano o jornalismo
ser representado por profissionais de ética no mínimo discutível. Em O beijo no asfalto,
o dramaturgo parte de um fato: um homem comum cumpre o último desejo
de um atropelado que, às portas da morte, pede um beijo na boca. Um
repórter de polícia faz matérias forjando um caso escandaloso de
homossexualidade. Para dar veracidade à peça, Nelson faz com que esse
jornalista, personagem chave do espetáculo, receba o nome verdadeiro do
maior repórter dessa editoria no poderoso jornal Última Hora:
Amado Ribeiro. Samuel Wainer, o dono do periódico na vida real – o
mesmo no qual Nelson era sucesso há 10 anos com sua coluna A vida como ela é...
– também é mencionado em cena. E o próprio jornal é apresentado, na
visão do escritor, como aquele que induz a chamada “opinião pública”, a
mesma que execra aquele que beijou na boca, levando-o a uma morte
trágica.
Luiz Fernando Mercadante – que passou por grandes veículos como Jornal do Brasil e Realidade – lembra que na estreia do espetáculo em questão, mais da metade da plateia era formada por jornalistas do Rio de Janeiro e de outros estados. “Corria o boato de que Nelson escrevia uma peça contra nós e a classe compareceu em peso”. Após o pano final, não teve o aplauso esperado. Os jornalistas saíram em silêncio e, no dia seguinte, alegaram que o autor retratava a redação de Última Hora e que todos os outros eram éticos no cotidiano. Mercadante viu a felicidade estampada no rosto de Amado Ribeiro durante a temporada. “Ele era pior do que na peça.” Mas, fora o jornalista de polícia e Wainer, todos viraram a cara para ele, o que o fez sair do jornal.
Luiz Fernando Mercadante – que passou por grandes veículos como Jornal do Brasil e Realidade – lembra que na estreia do espetáculo em questão, mais da metade da plateia era formada por jornalistas do Rio de Janeiro e de outros estados. “Corria o boato de que Nelson escrevia uma peça contra nós e a classe compareceu em peso”. Após o pano final, não teve o aplauso esperado. Os jornalistas saíram em silêncio e, no dia seguinte, alegaram que o autor retratava a redação de Última Hora e que todos os outros eram éticos no cotidiano. Mercadante viu a felicidade estampada no rosto de Amado Ribeiro durante a temporada. “Ele era pior do que na peça.” Mas, fora o jornalista de polícia e Wainer, todos viraram a cara para ele, o que o fez sair do jornal.
1968 não acabou
Um dos estudos acadêmicos mais originais sobre o dramaturgo é A palavra nova – O diálogo entre Nelson Rodrigues e Dostoiévski,
da historiadora e professora da Universidade Federal de Santa
Catarina, Claudia Drucker. Ela provou que uma das maiores obsessões do
cronista – a de citar o autor russo – não era brincadeira, mas profunda
identificação.
Seu
primeiro desafio foi encontrar o lugar de Nelson Rodrigues na história
da cultura brasileira. Para ela, fala-se na ebulição despertada pela
Semana de Arte Moderna de 1922 e na efervescência da década de 1960
como se o cronista e dramaturgo fosse tão retrógrado que não possa ser
citado. Afirma que ele não se identificou com qualquer movimento
modernista, mas deve-se reconhecer a peculiaridade da sua obra, “o que
não impede que fosse visto como alguém capaz de pensar sobre questões
muito semelhantes às dos modernistas, tropicalistas, brechtianos,
socialistas etc. O ano de 1968 se tornou símbolo de visão de mundo e
qualquer pessoa diferente foi considerada ultrapassada – e ainda é, em
grande parte”.
A última coisa que o autor de O beijo no asfalto
– e de outras 16 peças, além de romances e livros de contos – deseja
fazer é um retrato realista e agradável da vida urbana: o realismo, diz
ele, é uma “quase canalhice”. A fusão de memorialismo, reflexão,
notícia e ficção em seu trabalho lembra a tradição satírica da imprensa
russa da segunda metade do século 19 com debates políticos, morais e
metafísicos em linguagem semicifrada para escapar à censura, expõe
Claudia. “Parece-me que Nelson foi contagiado por esta liberdade para
transitar entre gêneros literários e pela sua seriedade, vestida de
humor, no tratamento de todo tipo de tema.” Ainda defende que Nelson se
valeu do escritor russo, autor de O duplo e Crime e castigo,
entre outros, ao recusar o realismo e a ausência de tensão trágica, ao
contrário da maioria. Ele nunca explicou em detalhes sua visão de
Dostoiévski, mas legou uma ou outra observação como ‘a grande ficção
nada tem a ver com o bom gosto’ e ‘Dostoiévski é o meu único professor
de drama’ ".
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