A cada dia que passa, novas denúncias deixam muito mal um grupo cada vez maior de senhores togados da Justiça, e comprovam a imperativa necessidade de um órgão fiscalizador como o CNJ, como mostra a reportagem abaixo publicada hoje no jornal O Estado de S. Paulo ("Estadão").
O lobby de associações de magistrados e a pressão dos tribunais puseram
abaixo iniciativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de editar
resolução para pôr um fim na farra de desembolsos milionários à toga. Em
2011, "pelo menos duas ou três vezes", sem êxito, o então conselheiro
Ives Gandra da Silva Martins Filho levou a plenário uma proposta para
disciplinar a liberação de pagamentos de verbas acumuladas.
"Eu levei a matéria a plenário e pediram para adiar, eram pedidos de
associações de magistrados e de Tribunais de Justiça, alguns presidentes
de tribunais me procuraram colocando suas preocupações", relata Gandra
Filho. Aos 52 anos, ele é ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) desde
1999. Por dois anos exerceu a função de conselheiro do CNJ, entre julho
de 2009 e junho de 2011.
Supercontracheques são alvo de uma frente de investigação sem precedentes do CNJ. Aqui e ali magistrados se rebelam à inspeção. Alegam que os valores lhes
são devidos, por férias não desfrutadas, vencimentos pagos com atraso e
outras situações. Em São Paulo descobriu-se a "turma do milhão". São desembargadores que receberam quantias superiores R$ 1 milhão.
A tentativa de criar uma rígida norma para impedir privilégios e
concessão de somas extraordinárias aos juízes foi tomada no CNJ depois
do escândalo envolvendo onze magistrados do Tribunal de Justiça de Mato
Grosso, alguns aquinhoados com R$ 1,5 milhão, em 2008, mediante suposta
fraude financeira. A proposta para evitar a reedição de episódios como os de Mato Grosso foi apresentada por Gandra Filho.
Qual era a sua proposta?
Gandra - Eu pedia basicamente a adoção de duas medidas. A primeira, que os
pagamentos ficassem limitados às verbas não prescritas, ou seja,
créditos que estivessem contidos exclusivamente em um período de até
cinco anos antes da solicitação. A segunda medida previa que não fosse
contemplado apenas um pequeno grupo do tribunal. Eu coloquei: não tendo
dinheiro para pagar os atrasados a todos, então que se dividissem
equitativamente os valores disponíveis. Que não se concentrasse toda a
verba só para pagar um grupo.
Por que o sr. estabeleceu prazo prescricional de cinco anos?
Gandra - Qualquer demanda que se apresente perante o Judiciário contra a União
deve obedecer esse prazo. A minha proposta era para que fosse obedecido o
critério da prescrição. Acho razoável, justo.
O que o fez tomar essa iniciativa?
Gandra - A preocupação maior no conselho surgiu a partir do processo de Mato
Grosso. Eles (desembargadores) inflacionaram a folha dos atrasados,
calcularam para aumentar demais, de forma a atingir valores bem altos, e
só pagaram a um grupinho ligado à presidência do TJ. Foi um processo
bastante complicado.
Por quê?
Gandra - A presidência do TJ de Mato Grosso era dominada por maçons, havia uma
cooperativa ligada à maçonaria. Vários magistrados receberam para
emprestar à loja. Esse processo foi o principal problema. Alguns
ganharam R$ 1,5 milhão. Nesse processo, do qual fui o relator, eu
escrevi: "Farinha pouca, meu pirão primeiro". É assim: primeiro vamos
cuidar do nosso.
Que sanções foram aplicadas?
Gandra - O Conselho Nacional de Justiça afastou os magistrados, mas providências
de âmbito civil e penal são de competência de outras esferas, como o
Ministério Público. Dez juízes foram afastados, mas o Supremo Tribunal
Federal devolveu-os às suas funções e cargos, sem entrar no mérito. O
STF entendeu que eles (os juízes) deveriam retomar suas atividades e que
fossem julgados antes pelo próprio tribunal ao qual pertencem. Nesse
contexto de um caso concreto é que surgiu a imposição, a necessidade de
uma providência para disciplinar os pagamentos aos magistrados. [Pelo jeito, o STF está se tornando o baluarte do corporativismo togado. Isso, somado à decisão do ministro Ricardo Lewandowski de conceder liminar contra o CNJ no apagar das luzes das atividades do STF no ano passado, mesmo denunciado pela Folha de S. Paulo de estar sob investigação desse Conselho, só faz aumentar a péssima impressão que se vai tendo sobre o STF nesse episódio. Ver postagem anterior sobre esse assunto.]
Por que fracassou a resolução para impor regras nos pagamentos?
Gandra - Pelo menos duas ou três vezes, no ano de 2011, levei a plenário a
proposta, mas sem êxito. Pediram para adiar, eram pedidos de associações
de magistrados e de Tribunais de Justiça. Alguns presidentes de
tribunais me procuraram colocando suas preocupações.
Quais preocupações?
Gandra - Eles não queriam que limitássemos em cinco anos o prazo prescricional,
sob argumento central de que o problema não é gerado pelo Judiciário.
Alegavam que o Judiciário tem direito à verba, mas não tem caixa para
pagar porque o Executivo não repassa. Vai passando o tempo, fica o
débito e eleva os valores a níveis bem altos.
O que são verbas atrasadas a que os magistrados alegam ter direito?
Gandra - Basicamente vantagens pessoais e pagamentos relativos a períodos de
planos econômicos, quem não recebeu se sentiu prejudicado. Alegam, por
exemplo, equiparações ao Ministério Público. Ninguém pode ganhar mais
que ministro do Supremo. Mas deputados estavam ganhando com os auxílios
mais que os ministros. Esses auxílios foram estendidos ao Judiciário.
Outro problema era a forma de cálculos aplicada pelos tribunais. Veja,
não estou criticando nenhum colega. Eu propus critérios, se a resolução
vai emplacar ou não eu não sei.
O sr. insistiu em levar sua proposta à votação?
Gandra - Eu queria votar o mais rápido possível. Nada melhor que parâmetros
claros, até para respaldar os presidentes dos tribunais que são os
ordenadores de despesas. Eu coordenava a Comissão de Eficiência
Operacional e de Gestão de Pessoas, um setor que trata das questões
relativas aos magistrados. Por mais que tentássemos não conseguimos
votar. Entidades pediam para que estudássemos melhor, apresentaram
muitas sugestões.
Por que o sr. não conseguiu?
Gandra - Todas as vezes em que levei a matéria e coloquei em pauta não se quis
votar. Alguns conselheiros achavam que devíamos votar, outros que a
matéria ainda precisava amadurecer. Eu precisei contar com o apoio da
Secretaria Orçamentária. Reconheço que as ponderações em sentido
contrário são razoáveis. Os tribunais alegavam que sofriam restrições do
Executivo, que os governos não repassavam as verbas orçamentárias. A
proposta de resolução levantou muitos pontos polêmicos, todas as vezes
que levei a plenário não conseguimos aprová-la.
Sem resolução específica como ficam os pagamentos milionários?
Gandra - No meu modo de ver, quanto mais demora, pior fica. Uma resolução já
resolveria, depois que se faça os ajustes, a calibragem. Melhor do que
ficar sem nenhuma norma. Com o vácuo legal, nem o administrador tem a
segurança necessária, nem o cidadão fica tranquilo. Vai questionar se
aquele valor foi pago de acordo com a lei. Se o juiz tem que julgar e
tem que ser justo no seu trabalho não pode ser questionado publicamente
se está recebendo privilégios.
O CNJ se curvou à pressão dos tribunais e das entidades de classe?
Gandra - As associações cuidam dos interesses dos magistrados de forma mais
corporativa ou menos corporativa. As entidades pediam para que
estudássemos melhor, apresentaram muitas sugestões. Reitero que os
tribunais alegavam restrições orçamentárias por falta de repasse do
Executivo. Este é um argumento que reconheci, porque realmente a
situação pode ocorrer.
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