A decisão do governo de Sebastian Piñera de mudar nos livros didáticos do ensino básico a denominação do governo de Augusto Pinochet de "ditadura" para "regime militar" deflagrou uma forte polêmica com a oposição, que denuncia um desejo de maquiar a realidade -- dentro inclusive da coalizão governante, de direita, há quem discorde da modificação.
O episódio seria quase que apenas uma anedota, não fosse pelo fato de não ser o único que ocorreu nos quase dois anos do governo de Piñera, que pôde chegar ao [palácio de] La Moneda, depois de 20 anos e quatro administrações de centro-esquerda, justamente por ter sido um opositor da ditadura.
A troca de "ditadura" por "regime militar" foi proposta pelo ex-ministro da Educação Felipe Bulnes e aprovada em 9 de dezembro pelo Conselho Nacional de Educação, do qual participam diferentes setores. O novo conceito, mais genérico mas, por sua vez, menos preciso e descritivo do que significou para os chilenos o governo de Pinochet (1973-1990), será adotado nos textos escolares de Linguagem, História, Geografia e Ciências Sociais dos alunos do primeiro ao sexto grau.
O novo ministro da Educação, Harald Beyer, um acadêmico conservador e rigoroso que chegou ao cargo às vésperas do final do ano, em substituição a Bulnes, teve que estrear defendendo a mudança de conceito, acidamente criticada através das redes sociais. "Eu reconheço que foi um governo ditatorial, portanto não tenho problemas", afirmou Beyer, mas se usa o termo mais genérico que é "regime militar". A coordenadora de currículos do Ministério da Educação, Loreto Fontaine, explicou em declarações ao portal eletrônico El Mostrador que o conceito de regime militar admite que "pode haver pontos de vista e experiências diferentes" na descrição do período.
A administração de Piñera tem estado repleta de pequenos incidentes desse tipo, e a ele próprio não lhe agradam essas manifestações ou deslizes, como se queira denominá-las. Em novembro, uma funcionária do La Moneda enviou em nome do presidente suas "felicitações e os melhores votos de sucesso" ao ato de homenagem ao ex-torturador Miguel Krasnoff, condenado a 144 anos de prisão em 23 acusações de violação de direitos humanos, e Piñera a demitiu do cargo.
Na oposição, o presidente do Partido Socialista, Osvaldo Andrade reagiu ao conceito de regime militar com um exemplo de zoologia: "Tem orelhas de gato, corpo de gato, mia como gato, e alguns querem que se chame cachorro. Isso é ditadura, ponham-lhe o nome que queiram".
Para a diretora do Instituto de Direitos Humanos, Lorena Fríes, há setores no governo que ficam incomodados com o conceito de ditadura, "mas é a verdade e se usa em todas as partes do mundo em que houve regimes totalitários que violaram de maneira grave e sistemática os direitos humanos". A presidente do Grupo de Familiares de Detidos Desaparecidos, Lorena Pizarro, considerou a modificação como uma ofensa e uma falta de respeito grave que "altera a verdade da história". A polêmica chegou inclusive à direita, onde os setores mais liberais -- e próximos ao próprio Piñera -- reconhecem que Pinochet foi ditador.
Ainda que as editoras de livros didáticos tenham liberdade para sua elaboração, se respeitam os conteúdos curriculares, é difícil que ignorem a decisão do Ministério. O Conselho de Educação pode reverter ou revisar a medida, depois da polêmica que ela desencadeou. Um de seus membros, Alejandro Goic, reconheceu que a modificação do conceito lhes passou despercebida e que o Ministério da Educação não os informou previamente. Goic espera que a decisão possa ser revertida, porque "as ditaduras têm que ser chamadas de ditaduras e as democracias, de democracias", segundo declarou à Rádio Cooperativa.
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