domingo, 29 de janeiro de 2012

O fim da lenda gurca?

Os gurcas  (também chamados de gurkhas) são soldados lendários, oriundos do Nepal, que compõem uma unidade de elite do exército britânico. São conhecidos por sua bravura, pela utilização do kukri e de técnicas de artes marciais. Sua coragem em combate, destacada durante a guerra do Nepal, entre 1814 e 1816, impressionou os ingleses, que os encorajaram a alistar-se como mercenários junto às forças armadas da Companhia das Índias Orientais. Os gurcas atuaram com destaque na guerra contra a Argentina em 1982 pela posse das Ilhas Falklands/Malvinas, com o 1° Batalhão - 7th Duke of Edinburgh's Own Gurkha Rifles, integrando a 5ª Brigada de Infantaria britânica.

Sob a lei internacional, os gurcas britânicos não são mercenários, mas sim soldados que integram o exército britânico, estando sujeitos a todas as regras e leis como qualquer outro soldado do Reino Unido. Além do exército britânico, os gurcas são recrutados também pela Força Policial de Cingapura, compondo seu Contingente Gurca, e pelo exército da Índia. 

Hoje República Federal Democrática do Nepal, o Nepal (cuja capital é Katmandu) foi uma monarquia até maio de 2008, quando, pressionado, seu monarca Gyanendra Shah renunciou e o país, via eleições livres, passou para um regime presidencialista multipartidário, com predominância do Partido Comunista do Nepal, de tendência maoísta -- seu primeiro presidente, Ram Baran Yadav, foi empossado em 23 de julho de 2008. O país, aos pés do Himalaia, é um enclave territorial entre a China (ao norte) e a Índia (ao sul, leste e oeste). 

Segundo notícia que me foi trazida por meu dileto amigo José Antonio, a quem agradeço, parece que a lenda dos gurcas corre o perigo de desaparecer por pressão do governo atual, de tendência maoísta, conforme reportagem do Asia Times traduzida a seguir.

Pessoas que querem escrever um epitáfio para o legado gurca argumentam que ele é uma mancha para o Nepal, como um país independente e soberano.  Para elas, a tradição que começou em 1815 é um exemplo de uma grande anomalia, e tem que ser encerrada no "novo" Nepal pós-monárquico. Suas opiniões estão refletidas em um relatório recentemente aprovado, por unanimidade, e emitido por uma comissão parlamentar de todos os partidos, dominada por legisladores maoístas.

Isso atraiu considerável atração da mídia, com muitos artigos nos jornais e talk shows na televisão concluindo que o Nepal deveria deixar de ser visto como um país que exporta "mercenários".  - "O recrutamento de gurcas deu à juventude uma pequena oportunidade de trabalho ... mas nem sempre permitiu ao país manter sua cabeça erguida", diz o relatório da comissão, que se refere também às "perdas" que o Nepal sofre quando esses jovens são encorajados a adotar a cidadania de outros países. Esta alusão se refere basicamente ao Reino Unido, que mantém uma brigada de gurcas, e à Índia, que tem um contingente muito maior de gorkhas -- como ali são chamados -- em seu exército nacional.

Coincidentemente, o relatório parlamentar veio a público no momento em que o Secretário de Defesa britânico, general David Richards, estava em visita ao Nepal. Seu roteiro oficial incluiu uma visita à cidade turística de Pokhara onde, no dia 4 de janeiro, ele participou do "desfile de confirmação" (attestation parade) que marcou a admissão formal de 176 recrutas homens no exército britânico. "Essa cerimônia de apoio e lealdade, secundariamente, é conduzida com pleno reconhecimento do fato de que aqueles que decidiram juntar-se ao exército britânico são cidadãos do Nepal", disse o coronel Andrew Mills, adido militar da embaixada britânica em uma entrevista ao Asia Times Online -- ele detém também o posto de chefe do British Gurkha Nepal, os gurcas britânicos do Nepal.

Hoje, o contingente de gurcas no exército britânico é de cerca de 3.800 homens. Entretanto, o governo britânico anunciou na quarta-feira que cortaria 400 homens desse efetivo, como parte nos cortes no orçamento da Defesa. Esse contingente sofrerá novos cortes nos anos vindouros, por conta de reduções propostas para o exército britânico. A Índia, que recruta anualmente entre 2.500 a 3.000 homens, mantém hoje 30 batalhões em sete regimentos gurca, totalizando mais de 30.000 homens, no auge de sua juventude. Nem o Reino Unido, nem a Índia começaram ainda a recrutar mulheres como soldados.

[...] Cerca de 200.000 gurcas lutaram pelo Reino Unido na duas Grandes Guerras, e mais de 45.000 morreram com o uniforme britânico. "Eles têm uma reputação por ferocidade e bravura, e são conhecidos por suas facas curvas kukri caracteristicas", descreveu a agência France-Presse. Quando da independência da Índia, em 1947, o Nepal, o Reino Unido e a Índia celebraram um acordo tripartite permitindo que o Reino Unido e a Índia mantivessem a "conexão gurca" com soldados recrutados do Nepal.

[...] O Reino Unido, que tem mais de 25.000 aposentados gurcas, gasta anualmente 87 milhões de libras esterlinas (US$ 134 milhões) em pensões e outros gastos vinculados a esses aposentados. Só essa cifra corresponde a 4% do PIB do Nepal. Além disso, há outras atividades de previdência social financiadas com dinheiro britânico. A Índia remete anualmente 12 bilhões de rúpias indianas (US$ 238,8 milhões) para aposentados e viúvas de guerra no Nepal. "Realmente, é uma tarefa tremenda cuidar de pessoas em quantidade superior a 124.000", explicou o coronel Ajay Pasbola, adido militar da embaixada da Índia em Katmandu. 

[...] Os gurcas podem ser deslocados para qualquer parte do mundo onde o Reino Unido tenha atividades militares. Uma demonstração do invejável nível de confiança e respeito desfrutado pelos gurcas no Reino Unido é o fato de que lhes foi dada a responsabilidade de proteger o Príncipe Harry, o terceiro na linha de sucessão do trono britânico.  

Analogamente, os gurcas da Índia foram enviados para o Sri Lanka e Kashmir (onde lutaram contra os paquistaneses). Em 1962, os gurcas fizeram parte do exército indiano que lutou uma batalha contra a China. Isso foi por várias vezes motivo de embaraço para o Nepal, pois nem China nem Paquistão são seus inimigos. Uma situação semelhante ocorreu em 1982, quando gurcas lutaram contra argentinos na guerra das ilhas Falklands/Malvinas. 

O acordo tripartite de 1947 e um memorando de entendimentos de 1962 entre o Nepal e o Reino Unido impedem que o Nepal tome qualquer decisão unilateralmente. Mas, os líderes revolucionários nepaleses podem ignorar esse dispositivo e "tomar uma atitude audaciosa para impedir que militares estrangeiros recrutem homens nepaleses", como insinuou um colunista do jornal The Kathmandu Post.

O que acontecerá se essa for realmente a posição oficial do Nepal?  Tanto a Índia como o Reino Unido têm alternativas prontas: Nova Delhi encontrará recrutas entre os gurcas já domiciliados na Índia, e os britânicos têm também uma pequena comunidade de ex-gurcas estabelecidos no país cujos filhos poderiam reabastecer suas fileiras.

"Os benefícios econômicos superam em muito as considerações políticas em discussão, especialmente em um país em fase de transição", disse o professor Lokraj Baral, um estudioso muito experiente que mantém uma "usina de ideias" (think tank) chamada Centro de Estudos Contemporâneos do Nepal.

A maioria dos membros da comissão parlamentar [que elaborou o relatório contra o recrutamento] está ciente e consciente do grau de suscetibilidade das pessoas que têm visto esse recrutamento como uma fonte de emprego. "Como esse é um assunto relacionado com a soberania do país, temos que ser muito  cuidadosos", disse Suresh Ale Magar, um membro maoísta da comissão. "Tudo o que queremos é que a interrupção não seja brusca; ela deve ser feita gradualmente, e depois que tenhamos desenvolvido alternativas", acrescentou.

[...] O embaixador britânico [no Nepal], John Tucknott, considera realista a avaliação de Ale Magar quando ele diz "depois" que alternativas tenham sido estabelecidas. "Se isso vai acontecer durante nosso período de vida, é outro assunto", diz ele.

Um soldado gurca, com seu chapéu e a faca kukri típicos - (Foto: Google).

A temível faca kukri, arma característica dos gurcas - (Foto: Wikipedia).

























































































































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