Sob a lei internacional, os gurcas britânicos não são mercenários, mas sim soldados que integram o exército britânico, estando sujeitos a todas as regras e leis como qualquer outro soldado do Reino Unido. Além do exército britânico, os gurcas são recrutados também pela Força Policial de Cingapura, compondo seu Contingente Gurca, e pelo exército da Índia.
Hoje República Federal Democrática do Nepal, o Nepal (cuja capital é Katmandu) foi uma monarquia até maio de 2008, quando, pressionado, seu monarca Gyanendra Shah renunciou e o país, via eleições livres, passou para um regime presidencialista multipartidário, com predominância do Partido Comunista do Nepal, de tendência maoísta -- seu primeiro presidente, Ram Baran Yadav, foi empossado em 23 de julho de 2008. O país, aos pés do Himalaia, é um enclave territorial entre a China (ao norte) e a Índia (ao sul, leste e oeste).
Segundo notícia que me foi trazida por meu dileto amigo José Antonio, a quem agradeço, parece que a lenda dos gurcas corre o perigo de desaparecer por pressão do governo atual, de tendência maoísta, conforme reportagem do Asia Times traduzida a seguir.
Pessoas que querem escrever um epitáfio para o legado gurca argumentam que ele é uma mancha para o Nepal, como um país independente e soberano. Para elas, a tradição que começou em 1815 é um exemplo de uma grande anomalia, e tem que ser encerrada no "novo" Nepal pós-monárquico. Suas opiniões estão refletidas em um relatório recentemente aprovado, por unanimidade, e emitido por uma comissão parlamentar de todos os partidos, dominada por legisladores maoístas.
Isso atraiu considerável atração da mídia, com muitos artigos nos jornais e talk shows na televisão concluindo que o Nepal deveria deixar de ser visto como um país que exporta "mercenários". - "O recrutamento de gurcas deu à juventude uma pequena oportunidade de trabalho ... mas nem sempre permitiu ao país manter sua cabeça erguida", diz o relatório da comissão, que se refere também às "perdas" que o Nepal sofre quando esses jovens são encorajados a adotar a cidadania de outros países. Esta alusão se refere basicamente ao Reino Unido, que mantém uma brigada de gurcas, e à Índia, que tem um contingente muito maior de gorkhas -- como ali são chamados -- em seu exército nacional.
Coincidentemente, o relatório parlamentar veio a público no momento em que o Secretário de Defesa britânico, general David Richards, estava em visita ao Nepal. Seu roteiro oficial incluiu uma visita à cidade turística de Pokhara onde, no dia 4 de janeiro, ele participou do "desfile de confirmação" (attestation parade) que marcou a admissão formal de 176 recrutas homens no exército britânico. "Essa cerimônia de apoio e lealdade, secundariamente, é conduzida com pleno reconhecimento do fato de que aqueles que decidiram juntar-se ao exército britânico são cidadãos do Nepal", disse o coronel Andrew Mills, adido militar da embaixada britânica em uma entrevista ao Asia Times Online -- ele detém também o posto de chefe do British Gurkha Nepal, os gurcas britânicos do Nepal.
Hoje, o contingente de gurcas no exército britânico é de cerca de 3.800 homens. Entretanto, o governo britânico anunciou na quarta-feira que cortaria 400 homens desse efetivo, como parte nos cortes no orçamento da Defesa. Esse contingente sofrerá novos cortes nos anos vindouros, por conta de reduções propostas para o exército britânico. A Índia, que recruta anualmente entre 2.500 a 3.000 homens, mantém hoje 30 batalhões em sete regimentos gurca, totalizando mais de 30.000 homens, no auge de sua juventude. Nem o Reino Unido, nem a Índia começaram ainda a recrutar mulheres como soldados.
[...] Cerca de 200.000 gurcas lutaram pelo Reino Unido na duas Grandes Guerras, e mais de 45.000 morreram com o uniforme britânico. "Eles têm uma reputação por ferocidade e bravura, e são conhecidos por suas facas curvas kukri caracteristicas", descreveu a agência France-Presse. Quando da independência da Índia, em 1947, o Nepal, o Reino Unido e a Índia celebraram um acordo tripartite permitindo que o Reino Unido e a Índia mantivessem a "conexão gurca" com soldados recrutados do Nepal.
[...] O Reino Unido, que tem mais de 25.000 aposentados gurcas, gasta anualmente 87 milhões de libras esterlinas (US$ 134 milhões) em pensões e outros gastos vinculados a esses aposentados. Só essa cifra corresponde a 4% do PIB do Nepal. Além disso, há outras atividades de previdência social financiadas com dinheiro britânico. A Índia remete anualmente 12 bilhões de rúpias indianas (US$ 238,8 milhões) para aposentados e viúvas de guerra no Nepal. "Realmente, é uma tarefa tremenda cuidar de pessoas em quantidade superior a 124.000", explicou o coronel Ajay Pasbola, adido militar da embaixada da Índia em Katmandu.
[...] Os gurcas podem ser deslocados para qualquer parte do mundo onde o Reino Unido tenha atividades militares. Uma demonstração do invejável nível de confiança e respeito desfrutado pelos gurcas no Reino Unido é o fato de que lhes foi dada a responsabilidade de proteger o Príncipe Harry, o terceiro na linha de sucessão do trono britânico.
Analogamente, os gurcas da Índia foram enviados para o Sri Lanka e Kashmir (onde lutaram contra os paquistaneses). Em 1962, os gurcas fizeram parte do exército indiano que lutou uma batalha contra a China. Isso foi por várias vezes motivo de embaraço para o Nepal, pois nem China nem Paquistão são seus inimigos. Uma situação semelhante ocorreu em 1982, quando gurcas lutaram contra argentinos na guerra das ilhas Falklands/Malvinas.
O acordo tripartite de 1947 e um memorando de entendimentos de 1962 entre o Nepal e o Reino Unido impedem que o Nepal tome qualquer decisão unilateralmente. Mas, os líderes revolucionários nepaleses podem ignorar esse dispositivo e "tomar uma atitude audaciosa para impedir que militares estrangeiros recrutem homens nepaleses", como insinuou um colunista do jornal The Kathmandu Post.
O que acontecerá se essa for realmente a posição oficial do Nepal? Tanto a Índia como o Reino Unido têm alternativas prontas: Nova Delhi encontrará recrutas entre os gurcas já domiciliados na Índia, e os britânicos têm também uma pequena comunidade de ex-gurcas estabelecidos no país cujos filhos poderiam reabastecer suas fileiras.
"Os benefícios econômicos superam em muito as considerações políticas em discussão, especialmente em um país em fase de transição", disse o professor Lokraj Baral, um estudioso muito experiente que mantém uma "usina de ideias" (think tank) chamada Centro de Estudos Contemporâneos do Nepal.
A maioria dos membros da comissão parlamentar [que elaborou o relatório contra o recrutamento] está ciente e consciente do grau de suscetibilidade das pessoas que têm visto esse recrutamento como uma fonte de emprego. "Como esse é um assunto relacionado com a soberania do país, temos que ser muito cuidadosos", disse Suresh Ale Magar, um membro maoísta da comissão. "Tudo o que queremos é que a interrupção não seja brusca; ela deve ser feita gradualmente, e depois que tenhamos desenvolvido alternativas", acrescentou.
[...] O embaixador britânico [no Nepal], John Tucknott, considera realista a avaliação de Ale Magar quando ele diz "depois" que alternativas tenham sido estabelecidas. "Se isso vai acontecer durante nosso período de vida, é outro assunto", diz ele.
Um soldado gurca, com seu chapéu e a faca kukri típicos - (Foto: Google).
A temível faca kukri, arma característica dos gurcas - (Foto: Wikipedia).
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