segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Pelé ao Le Monde: "Libertei os jogadores de futebol brasileiros da escravidão"

No dia seguinte à entrega da "Bola de Ouro" [a Messi] em Zurique, Pelé (71 anos) concedeu uma longa entrevista ao jornal francês Le Monde -- reproduzo a seguir a reportagem de Mustapha Kessous.

O que representa o Mundial brasileiro, do qual o Sr. é o embaixador?

Não quero personificar sozinho a Copa do Mundo. O mais importante não é o número de "gols" que posso marcar nesse teste, é a imagem do meu país e sua repercussão pelo mundo. Me lembro de que na Europa, em 1958, ninguém conhecia realmente o Brasil. Quando cheguei ao campo de treinamento na Suécia, onde se realizava o Mundial, a bandeira brasileira estava errada: no lugar do losango havia um círculo. Tenho apenas um desejo: através da Copa ajudar meu povo, meu país.

Qual é a imagem do Brasil que o Sr. quer mostrar?

O Brasile é a quinta (sic) potência mundial! Mas, gostaria que nele houvesse menos pobreza e mais igualdade social. Depois do Mundial, haverá os Jogos Olímpicos em 2016. O governo e o povo devem tirar proveito desses momentos muito fortes para modernizar o país. Esses dois eventos consolidarão os avanços já em andamento. Estamos preocupados com que haja uma redistribuição mais equânime das receitas obtidas da Copa e dos Jogos. Precisamos fazer uma boa gestão desses recursos. Isso dará confiança aos investidores que desejarem aplicar no país. É o momento de investir no Brasil!

O que poderia impedir os investidores de acreditar no Brasil?

O que nos preocupa são as divergências políticas que existem em nosso país. Elas podem colocar em risco o trabalho que se fez para o êxito da Copa. Esses problemas políticos podem levar à corrupção e a gastos excessivos. Não tem sentido gastar fortunas para a construção de estádios, porque o dinheiro vem do povo. Não podemos conviver com "elefantes brancos" que não serão úteis depois da Copa. É preciso aproveitar para construir escolas e universidades que, elas sim, permanecerão [úteis].

Como lutar contra a corrupção?

Tenho uma enorme confiança na presidente Dilma Rousseff. Em menos de um ano no cargo ela já se desfez de seis ministros. É a primeira vez na história do Brasil que tantos políticos são excluídos do governo por corrupção. A luta deve continuar ...

O futebol brasileiro está também minado por casos de corrupção ...

É preciso fazer uma limpeza, mas não apenas no futebol brasileriro. Este é o bom momento para se fazer uma limpeza na Fifa, dos pés à cabeça.

O futuro do futebol brasileiro se escreverá sem Ricardo Teixeira, presidente da CBF desde 1989 e ele próprio implicado em casos de corrupção?

Se isso ficar comprovado, eu lamentarei. Espero pelas provas. O que desejo é que toda a administração do futebol seja sadia, do Brasil ao Japão. O futebol é alguma coisa inata no povo brasileiro e assim continuará. Antes de Teixeira, houve um outro presidente e o futebol funcionou, e depois dele funcionará também.

Uma outra imagem associada ao Brasil é a da violência ...

Nossas forças armadas estão no momento envolvidas na missão de eliminar a violência nos morros e favelas [do Rio]. As ações de limpeza são tomadas para erradicar o banditismo nos locais problemáticos. São decisões que foram tomadas nas altas esferas para a tranquilidade do país, e as populações dessas comunidades estão muito contentes.

Como o Sr. explica o fato de o futebol brasileiro não estar no topo da hierarquia mundial [desse esporte]?

Os melhores jogadores brasileiros estão na Europa. As equipes brasileiras venderam muitos jogadores: todos os grandes estão no estrangeiro. Como resultado, na seleção nacional, os jovens não têm muito tempo para jogar em conjunto. É a prova de uma má administração do futebol por seus dirigentes. Se as grandes equipes como Flamengo, Corinthians ou Vasco tivessem uma gestão melhor, não precisariam ficar vendendo seus jogadores o tempo todo. Ainda assim, a formação [de jogadores] tem funcionado. Dever-se-ia manter os jogadores jovens por mais tempo no país.

O Sr. foi ministro dos Esportes de 1995 a 1998. Que experiência guarda disso?

Sou muito orgulhoso, porque libertei todos os jogadores de futebol brasileiro da escravidão. Antes de minha chegada ao ministério, o jogador era propriedade absoluta do time: não tinha liberdade para se transferir para outro time, mesmo no fim de seu contrato. E quando certos times não tinham mais dinheiro, iam ao banco e diziam: "Nós lhes damos nosso jogador". Os jogadores eram comercializados como escravos. Felizmente, graças ao presidente Fernando Henrique Cardozo, essa situação terminou desde 1996. É preciso enquadrar mais os agentes [de jogadores], que adquiriram uma importância excessiva.

Há excesso de dinheiro no futebol moderno?

Não. A única diferença em relação à minha época é que hoje existem os patrocinadores. A questão de fato não é o dinheiro, mas quem é o melhor jogador do mundo.

E quem é o melhor jogador?

Hoje?  Gosto muito do Messi, é um tremendo jogador.

Qual é a diferença entre o Sr. e ele?

Há grandes diferenças. Tecnicamente, estamos praticamente no mesmo nível. Comigo, ninguém sabia com que pé iria chutar, jogava com os dois. Marquei também muitos gols de cabeça. Quanto a Messi, seu pé esquerdo é bom, mas o direito é melhor. É um grande jogador no Barcelona, mas quando joga na seleção da Argentina não tem o mesmo desempenho. Penso também nesse jogador do Santos, o Neymar. Há a possibilidade de que se torne um grande jogador, é muito habilidioso com os dois pés, é muito inteligente. Essa comparação de estilos me fazer lembrar de Platini, que era um ótimo jogador, mas Cruyff era mais rápido.

Então, Messi é mais importante do que o Sr.?

É difícil de dizer: os amantes do futebol dirão que "ele é o jogador do momento". Alguns dirão que Beethoven não sabia tocar piano, outros dirão que Miguelangelo não sabia pintar e que Pelé não sabia jogar futebol. Mas, todos receberam um dom de Deus. Quando Messi tiver marcado 1.238 gols como eu, quando tiver ganhado três Copas do Mundo, a gente volta a falar [sobre isso]. Não há necessidade de fazer comparações. O futebol muda, os recordes são feitos para serem batidos, mas será difícil bater os melhores. As pessoas me perguntam o tempo todo: "Quando nascerá um novo Pelé?". Jamais! Meu pai e minha mãe fecharam a fábrica.

O Sr. foi o primeiro negro a se tornar Ministro no Brasil. Problema de racismo?

Isso não existe no Brasil. É absurdo dizer também que há racismo no futebol. Quantos jogos há no mundo a cada semana? É enorme a quantidade, o futebol é multirracial: amarelos, negros, brancos ...

Ainda assim, o Sr. foi insultado nos campos?

Inúmeras vezes, e me vingava marcando dois gols a mais para cada insulto. Os jogadores se desculpavam depois. Mas, eu também insultei jogadores, mas não havia nada de racismo. Com o avanço da mídia e da internet, fala-se muito mais sobre isso.

O Sr. acredita que contribuiu para mudar a opinião sobre os negros?

Sim, acredito. Houve dois momentos fortes. No Mundial de 1958, quando o Rei da Suécia desceu ao campo. Pela primeira vez na história ele foi fotografado apertando a mão de um negro -- essa fotografia correu o mundo. O segundo evento, quando a Rainha Elizabeth me fez "Sir" do Reino Unido: lá, então, isso era de um enorme simbolismo. Uma outra coisa me aconteceu. Em 1975,meu contrato com o Santos tendo terminado, Henry Kissinger, o antigo Secretário de Estado americano, veio ver-me para me dizer": "É preciso que você venha aos Estados Unidos para promover o futebol". E, nos Estados Unidos, havia racismo. Acho que minha presença no Cosmos de Nova Iorque dever ter contribuído para mudar a situação. Uma última anedota: fui jogar no Zaire em 1969 com o Santos. Para o nosso jogo, a guerra civil foi interrompida. Na época, não havia internet mas todo mundo sabia disso.

Como o Sr. deseja ser lembrado?

O Sr. sabe, Pelé é o nome mais conhecido no mundo inteiro. Posso ir não importa onde: se procurar trabalho, o encontrarei. Falando mais seriamente, depois de minha morte gostaria que as pessoas se lembrassem de que fui uma boa pessoa que sempre quis unir as pessoas e os povos. E que se lembrem também de que fui ... um bom jogador.

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