A revista Spiegel Online teve uma série de encontros com líderes da máfia calabresa, a 'Ndrangheta, do que resultaram três reportagens. Reproduzo a seguir a tradução de boa parte da primeira dessas reportagens, "Dentro do mundo da 'Ndrangheta" (Inside the World of the 'Ndrangheta).
A misteriosa máfia calabresa, a 'Ndrangheta, tornou-se uma das mais poderosas organizações criminosas do mundo ocidental, através de seu domínio sobre o tráfico europeu de cocaína. Pela primeira vez, chefões da organização descreveram seu modelo de negócio à Spiegel -- é um misto de talento empresarial, gestão competente, e crueldade implacável.
Para o encontro com a Spiegel, Carlo sugeriu um café numa cidade fora de Munique. Ele está sentado à sombra de árvores altas, um homem em forma em seus 50 e muitos anos, com olhos alertas e cabeça raspada. Ele explica como homens como ele nunca são presos, mesmo trazendo cocaína para a Alemanha às toneladas.
Um diamante incrustrado em um anel dourado brilha por um momento, à luz do sol do final de tarde, e então Carlo prossegue de onde havia parado: "Sou um "iluminato", diz ele, falando alemão com sotaque italiano. Nos círculos mafiosos, há uma distinção entre os "iluminati" (os "iluminados") e os "manovali" (os "serventes"). O anel é um sinal do alto posto de Carlo.
Fontes no sul da Itália disseram que Carlo era o responsável pelo comércio de cocaína na Alemanha. Nessa tarde, ele não deixa dúvidas quanto a isso. "No verão, ou por volta do Ano Novo, quando há o pico de demanda, trazemos uma tonelada de cocaína a cada intervalo de poucos dias", diz Carlo. Embora esteja permanentemente ciente do que está acontecendo no mundo da droga, ele mesmo nunca toca na mercadoria, preferindo que outros sujem seus dedos. Isto reflete a divisão de trabalho entre os iluminados e os serventes.
Há tempo a Polícia Criminal Federal alemã (BKA, em alemão) está de olho na 'Ndrangheta, a máfia calabresa. Ela foi responsável por quase todos os crimes mafiosos que chamaram a atenção, cometidos em solo alemão nos anos recentes.
Giorgio Basile, que cresceu na cidade de Mülheim an der Ruhr, da Alemanha Ocidental, e esteve envolvido em cerca de 30 assassinatos até sua prisão em 1998, era um membro da 'Ndrangheya. O grupo de pistoleiros que matou seis pessoas em uma pizzaria perto de Duisburg em 2007 veio do sul da Itália. E os sete mafiosos presos pela polícia nos Estados de Baden-Würtemberg, Hesse, e Nord Rheine-Westphalia no início de 2011, eram membros de um sindicato que especialistas consideram o cartel de cocaína mais importante do mundo. De acordo com um relatório interno da BKA, a Alemanha é um centro chave no tráfico europeu de cocaína, como um "país de trânsito e organização".
"O mito da invencibilidade"
Marcar um encontro com um membro ativo da 'Ndrangheta é um processo difícil. Isto exige ter os contatos certos, alguém para estabelecer o contato inicial, e muito tempo e paciência. Também ajuda ter crescido na Calábria.
Durante várias discussões preliminares, a 'Ndrangheta avaliou o risco a que estaria exposta por estar em contato com a mídia. Francesco Sbano, de 48 anos, fotógrafo e responsável pela produção da música da 'Ndrangheta, considera que os membros da organização estão agora dispostos a falar porque se sentem muito fortes. "Querem cultivar o mito da invencibilidade", diz.
Poucos traidores
No entanto, Carlo, o iluminado, decidiu não aparecer no primeiro encontro combinado na Alemanha. Ele quis primeiro se certificar com o pessoal da Calábria. Na segunda vez, ele reprogramou o encontro várias vezes. Quando finalmente apareceu no café fora de Munique, a primeira coisa que pediu foi uma carta de recomendação [relativa ao repórter] escrita em italiano. E disse que poderia prestar informações, desde que isso não prejudicasse o [seu] negócio. Vestia roupas italianas de alta qualidade.
Disse que foi batizado aos 18 anos. Se referia ao ritual secreto no qual foi aceito na "onorata società", ou "honorável sociedade", como a 'Ndrangheta se autodenomina. Foi levado à organização por seu tio. Isso acontece geralmente nessas organizações, onde a união é baseada em parentesco e, como consequência, há poucos traidores.
Na Itália, esses vira-casacas são conhecidos como "penitenti" ou "penitentes" (arrependidos). São membros da máfia que, depois de presos, quebram a "omertà" ou voto de silêncio e contam tudo. De acordo com as estatísticas do judiciário italiano, até 2008 havia cerca de 1.000 penitenti filiados à Cosa Nostra siciliana, 2.000 à Camorra napolitana -- mas, apenas 42 pertenciam à 'Ndrangheta. Os "'Ndranghetistas", como são chamados seus membros, não mancham o sangue de suas famílias com traição.
Ganhando a confiança do Chefão
Carlo veio para a Alemanha inicialmente para trabalhar numa fábrica da Bavária durante umas férias de verão. Quando voltou para casa, engravidou a prima de um mafioso. Ele não queria casar-se com ela, o que não agradou em nada a família dela, o que obrigou Carlo a voltar [para a Alemanha] e desaparecer nos Alpes. Ele não esteve fora de perigo até dois anos depois, quando o mafioso morreu. "Foi assim que escapei de uma vendetta (vingança)", diz ele.
Sempre que os figurões da 'Ndrangheta vinham para a Alemanha, Carlo trabalhava como seu motorista. Ele dirigiu com eles pela Bavária e Baden-Würtemberg, pela região industrial do Ruhr na Alemanha Ocidental, e para Bremen e Hamburgo no norte, "para os portos onde chega a cocaína". Ele era seu intérprete, fazia trabalhos avulsos para eles, e lentamente ganhou sua confiança.
De acordo com Carlo, a 'Ndrangheta montou uma malha sólida por toda a Alemanha. Ele diz que o porto de Hamburgo é uma das maiores portas de acesso para a cocaína que vem da América do Sul. "Operamos como uma empresa comercial", ele explica. "Compramos a mercadoria, a empacotamos, alugamos empresas de navegação, e pagamos os impostos". As empresas de navegação providenciam para que o dinheiro do suborno chegue para as autoridades que tomam as decisões. "As transportadoras conhecem o mapa da mina à volta dos portos".
Ao longo dos anos, Carlo preparou seu caminho rumo ao topo da organização alemã. Hoje, quase nenhuma reunião importante se faz sem sua presença. "As reuniões são a peça chave para a operação da 'Ndrangheta", diz ele. Tudo é discutido cara a cara. Carlo usa cartões de telefone pré-pagos para fazer ligações de negócio, e depois os joga fora depois de cada ligação, de modo que as ligações não possam ser rastreadas.
Evitando riscos
"Nossos clientes na Alemanha são, em sua maioria, cafetões e uma grande quadrilha de ciclistas", diz Carlo. "Entregamos pacotinhos de 50 a 70 gramas, geralmente para bordéis". Ele disse que ignora o que acontece com a cocaína lá. A 'Ndrangheta tem o cuidado de não correr riscos cometendo crimes comuns. "Não negociamos drogas nas ruas alemãs", diz ele.
Evidentemente, é impossível checar a veracidade de tudo que o homem da Calábria diz durante uma tarde num café da Alta Bavária. Por outro lado, a participação geral da 'Ndrangheta no crime organizado na Alemanha é bem documentada.
O relatório da BKA afirma que a máfia calabresa montou "estruturas de fundações profundas" na Alemanha, "com líderes de clãs individuais e também com assassinos". De acordo com a Jane's Intelligence Review [Revista de Inteligência Jane, uma publicação mensal de inteligência militar], uma revista inglesa para quem toma decisões na área militar e de inteligência, a Alemanha é provavelmente a base mais importante da 'Ndrangheta na Europa.
[A reportagem da Spiegel é muito longa, e não é possível reproduzí-la na íntegra aqui, por isso eliminei vários trechos do texto original].
Conexões excelentes
As relações da 'Ndrangheta com a América do Sul são excelentes. A "fratellanza" ou "irmandade" garante preços favoráveis e alta qualidade. Ela monitora o empacotamento e o transporte na América do Sul, assim como o trajeto pelo portos europeus como Hamburgo, Rotterdam, ou Antuérpia, e pelo caminho todo até os depósitos secretos na Calábria. "A rede não tem falhas", diz outro figurão da organização, "e as rotas de transporte são confiáveis". Nas poucas ocasiões em que um carregamento foi descoberto isso ocorreu porque "o dinheiro do suborno foi muito pouco".
A 'Ndrangheta paga 1.200 euros por um quilo de cocaína na Venezuela ou no Peru, mas quando a droga chega à Calábria ela já lhe custou 17.000 euros. "A maior parte disto é gasta no suborno de autoridades", diz um líder da organização. Quando chega ao mercado atacadista, o quilo da cocaína bruta (pura) [sem quaisquer aditivos] já custa entre 27.000 e 32.000 euros.
A organização ganha milhões com cada novo carregamento. Por isso, a parte mais difícil do trabalho é saber "como investir o dinheiro". Mas hoje não falta gente competente para fazer negócio. Graças aos milhões das drogas, os mafiosos puderam mandar seus filhos para as melhores escolas e hoje eles são advogados, consultores fiscais, banqueiros e médicos. Eles efetuam operações de lavagem de dinheiro do mais alto nível.
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