[O Globo e o Estadão de hoje publicaram mais um excelente artigo de Demétrio Magnoli, sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP - Universidade de S. Paulo. O texto, que reproduzo abaixo, faz uma análise perfeita do que o governo -- antes, de Lula, o Nosso Pinóquio Acrobata (NPA), e agora de Dilma -- fez com o Enem - Exame Nacional do Ensino Médio, que está desde o governo do NPA sob a batuta de Fernando Haddad, ministro da Educação. Mais um desserviço do NPA, de Dilma e do PT ao país. Não sou contra a ideia do Enem, mas acho absurda e completamente desqualificada sua gestão, com funestas consequências para a juventude e a educação do país].
No Enem, a saudação ao Duce
Demétrio Magnoli - (O Globo e O Estado de S. Paulo - 10/11/11)
Questão do Enem, 2001: "A Lei 9.491, de 9 de setembro de 1997, criou o
Programa Nacional de Desestatização, que reordena a posição estratégica
do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades
indevidamente exploradas pelo setor público . A referida lei representa
um avanço não só para a economia nacional, mas também para a sociedade
brasileira, porque (...)". Resposta, segundo o gabarito: "amplia os
investimentos produtivos e a riqueza geral da nação".
A questão acima é uma invenção minha: nunca foi proposta num Enem. Mas o
que diria Fernando Haddad se, no governo FHC, o MEC a tivesse inserido
num exame nacional que decide o futuro universitário de milhões de
estudantes brasileiros? Desconfio que, coberto de razão, ele
classificaria a prova como um gesto de covardia autoritária pelo qual os
candidatos seriam forçados a se curvar à doutrina política do poder de
turno, repetindo compulsoriamente o credo expresso no site do Planalto
sob pena de exclusão do ensino superior. Pois o atual ocupante do MEC
acaba de produzir um gesto assim, indigno de uma nação democrática, na
mais recente edição do Enem.
Eis o texto da questão: "A Lei n.º 10.639, de 9 de janeiro de 2003,
inclui no currículo dos estabelecimentos de ensino (...) a
obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira e
determina que o conteúdo programático incluirá o estudo da História da
África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra
brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a
contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política
pertinentes à História do Brasil (...) . A referida lei representa um
avanço não só para a educação nacional, mas também para a sociedade
brasileira, porque (...)". Resposta, segundo o gabarito: "impulsiona o
reconhecimento da pluralidade étnico-racial do país". Sob Haddad, o Enem
converteu-se em campo de reeducação ideológica para jovens. Diante
disso, pouco significam os sucessivos espetáculos de incompetência
gerencial que o atormentam.
A lei que os candidatos estão obrigados a celebrar não é uma ferramenta
de combate ao preconceito racial, mas a condensação da doutrina
racialista. Seu pressuposto é a divisão da humanidade em raças. Segundo
ela, as pessoas não são indivíduos mas componentes de "famílias raciais"
definidas por ancestralidades supostas e involucradas em culturas
singulares. As escolas, prega a lei, devem ensinar uma história
particular do "povo negro" (por oposição implícita ao "povo branco").
Desde a mais tenra idade, os estudantes aprenderiam a enxergar a si
mesmos como participantes de uma comunidade racial.
O gabarito da questão está errado e inexiste resposta correta entre as
alternativas apresentadas no exame. Mas a resposta certa, segundo o
próprio MEC, consta de um parecer do Conselho Nacional de Educação no
qual se explica que a lei "deve orientar para (...) o esclarecimento de
equívocos quanto a uma identidade humana universal". Tal resposta não
aparece entre as alternativas, pois ela explicitaria a insolúvel
contradição entre a lei da educação racial e a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, que repousa sobre a afirmação da realidade de "uma
identidade humana universal".
O contrato constitucional das democracias está amparado no princípio da
pluralidade. O princípio significa que não se reconhece doutrina ou
ideologia oficialmente verdadeira, à qual a nação deveria fidelidade ou
obediência. Dele se extrai um corolário: o sistema de ensino não pode
promover catequese ideológica. Escolas, livros didáticos e exames
vestibulares não têm o direito de doutrinar - isto é, de atribuir
estatuto de verdade científica ao que não passa de um ponto de vista
político. Haddad evidencia no Enem a sua visceral aversão ao princípio
da pluralidade. Ele é ministro num Estado democrático, mas sonha ser
comissário de um Estado totalitário.
A questão escandalosa não é um raio no céu claro. Nos últimos anos,
enquanto se metamorfoseava em vestibular nacional, o Enem converteu-se
num pátio de folguedos da pedagogia da doutrinação. O desfile de
catecismos ideológicos abrange, ao lado de versões cômicas de um
marxismo primitivo, constrangedores panfletos do ambientalismo
apocalíptico e manifestos rudimentares do multiculturalismo pós-moderno.
Os exames, especialmente suas seções de ciências humanas, parecem
emanar de um acordo de partilha territorial firmado entre os arautos
acadêmicos do cortejo de ONGs e "movimentos populares" associados ao
governo. Contudo, mesmo sobre esse deplorável pano de fundo, exigir que
milhões de jovens estudantes repitam como autômatos as sílabas, palavras
e frases escritas pelo Palácio do Planalto equivale a ultrapassar a
fronteira da obscenidade.
Meu avô materno, um antifascista perseguido pelo regime de Mussolini,
deixou a Itália com a esposa e dois filhos pequenos na hora da eclosão
da guerra mundial. No Brasil, beneficiando-se de uma bolsa de estudos
baseada no mérito, minha mãe pôde ser matriculada no prestigioso Dante
Alighieri, que era um colégio da comunidade italiana de São Paulo. Por
uma dessas amargas ironias, durante dois anos, até a declaração
brasileira de guerra ao Eixo, ela tinha a obrigação, compartilhada com
todos os colegas, de fazer a saudação ao Duce à entrada da escola. A
exposição a desenhos animados violentos não transforma crianças em
adultos assassinos. A rotina da saudação diária a Mussolini em nada
reduziu o desprezo devotado por minha mãe ao fascismo. Os estudantes não
aderirão ao credo identitário do racialismo por serem compelidos a
pagar pedágio à verdade ideológica oficial no Enem. Mas a democracia
brasileira fica um pouco menor quando o ministro da Educação veste a
fantasia do Duce.
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