terça-feira, 15 de novembro de 2011

O que faria Jesus se fosse um hacker?

Cyberteologia: quanto exatamente a doutrina cristã tem em comum com o movimento pró-software de código aberto?

"O reino dos céus pertence a criaturas como estas", disse Jesus com relação às criancinhas. Mas, pelo visto, os hackers de computadores podem fazer competição às criancinhas na disputa desse território, de acordo com o padre jesuíta italiano Antonio Spadaro. Em um artigo publicado no primeiro dia do ano na La Civiltà Cattolica, -- uma revista quinzenal que tem o respaldo do Vaticano --, intitulado "A Ética dos Hackers e a Visão Cristã" , ele não apenas elogiou os hackers mas considerou em alguns modos como divina sua abordagem da vida. -- [A revista The Economist, responsável pelo artigo/ensaio que ora traduzo, é extremamente séria e respeitadíssima internacionalmente, por isso causa-me muita estranheza a tradução que ela fez do título do artigo do padre Spadaro. O título do artigo desse religioso, publicado em 01/01/2011 no Caderno n° 3853 da revista La Civiltà Cattolica -- A Civilização Católica -- é, em italiano, "Verso una "Cyberteologia"? L' Intelligenza della Fede nel Tempo della Rete", cuja tradução livre é "Rumo a uma "Cyberteologia"? A Inteligência da Fé no tempo da Rede'", que está muito longe do título dado em inglês pela The Economist. Como no site da revista italiana há apenas um curtíssimo resumo do texto do artigo (o texto completo só está disponível mediante pagamento), não tenho condição de verificar quão fiel ou não é a tradução inglesa em relação ao original italiano. Publico, no entanto, a postagem porque o assunto me parece oportuno e interessante, o que não significa que concorde inteiramente com tudo que a The Economist e o padre dizem].

O Pe. Spadaro argumenta que hacking é uma forma de participação na obra de criação de Deus. (Ele usa a palavra hacking no seu tradicional e nobre significado dentro dos círculos informáticos, que se refere a fazer ou aprimorar códigos em vez de invadir websites. Este último tipo de atividade é conhecido como "hacking maligno" ou "cracking" -- quebra, invasão).  [Se o jesuíta realmente disse isto, mesmo com a a acepção suavizada dada pela The Economist, é uma afirmativa p'ra lá de polêmica e questionável].

O Pe. Spadaro diz que se tornou interessado no assunto quando notou que os hackers e os estudantes da cultura hacker usavam a "linguagem de valor teológico" quando escreviam sobre criatividade e codificação,  e assim ele decidiu examinar a ideia com mais profundidade. A ética hacker forjada na costa oeste dos EUA nos anos 1970s e 1980s era divertida, alegre, aberta ao compartilhamento, e pronta a desafiar modelos de controle de propriedade, de competição, ou mesmo de propriedade privada. Os hackers foram a origem do movimento de "código aberto" (ou de "software livre"), que cria e distribui software que é livre em dois sentidos: não custa nada, e seu código básico pode ser modificado por qualquer um para adaptar-se às suas próprias necessidades. "Em um mundo devotado à lógica do lucro", escreveu o Pe. Spadaro, hackers e cristãos têm "muito a dar uns aos outros", já que promovem e estimulam uma  visão mais positiva de trabalho, compartilhamento, e criatividade. 

Ele não é a única pessoas a ver uma afinidade entre o éthos hacker e o cristianismo. Defensores católicos do código aberto fundaram um grupo chamado Elètheuros, para encorajar a Igreja a apoiar esse software. Seu manifesto se refere às "fortes afinidades de ideais entre o cristianismo, a filosofofia do software livre, e a adoção de formatos e protocolos abertos". Marco Fioretti, cofundador do grupo, diz que o software de código aberto ensina "a dimensão prática de comunidade e de serviços aos próximos que já está na mensagem da Igreja". Há também motivações de natureza legal. Softwares comerciais como o Microsoft Word são amplamente pirateados em muitas partes do mundo, tanto por católicos como por outros. Fioretti defende o uso alternativo do software livre, porque não quer ver pessoas "violar a lei sem nenhuma razão real, apenas para abrir um documento da igreja".

Embora o Vaticano tenha ainda que encorajar os fieis a viver como hackers, ele tem elogiado a Internet como "verdadeiramente abençoada" por sua capacidade de conectar pessoas e compartilhar informação. O Papa até aderiu ao Twitter. Mas, o elogio tem sido sempre temperado com alertas. Tão cedo como em 2002, por exemplo, o documento "Igreja e Internet" do Vaticano alertou que "não há sacramentos na Internet" e admoestou quanto ao apelo egoísta da tecnologia. Além disso, hackers em particular têm peculiaridades problemáticas sob a perspectiva da Igreja Católica, tais como uma desconfiança em relação a autoridades e ceticismo quando à sabedoria ou conhecimento recebido. E a ideia de ajustar a fonte para satisfazer as próprias necessidades não casa bem com a ênfase católica em autoridade e tradição.

Catedrais e bazares

O Pe. Spadaro admite aexistência dessas tensões, mas as acha administráveis.  Nem todo mundo concorda. Eric Raymond, autor de um ensaio clássico sobre software de código aberto, "A Catedral e o Bazar" (The Cathedral and the Bazaar), acha difícil acreditar que alguns cristãos queiram canonizar a mentalidade hacker. Após ter sido citado no artigo do Pe. Spadaro, Raymond recorreu ao próprio site para observar que ele havia deliberadamente igualado catedrais com software proprietário, fechado, dirigido/orientado de cima, em contraste com o bazar mais caótico de [pessoas] semelhantes que produzem código aberto. "Catedrais -- edifícios religiosos verticais, centralizadores, imbuídos com uma tradição de autoritarismo e de "verdade revelada" -- são diretamente opostas à inteligência prática saudável, cética, antiautoritária, que é o cerne da cultura hacker", declarou Raymond. Quanto às ideias do Pe. Spadaro, elas têm um caráter  "especial, quase único de extrema tolice ou lunatismo".

Mas, Pe. Sparadaro é apenas o mais recente a vincular codificação com atitudes cristãs direcionadas a criatividade e compartilhamento. Don Parris, um pastor da Carolina do Norte, escreveu um artigo no Linux Journal em 2004, no qual argumenta que "software proprietário limita minha capacidade de ajudar ao meu próximo, um dos pilares da fé cristã". Larry Wall, o criador de Peri, uma linguagem de programação de código aberto, disse em uma entrevista há uma década atrás que Deus espera que os seres humanos criem -- e que ajudem os outros a fazê-lo. Wall disse que viu sua popular linguagem como um tal estímulo para criação, afirmando: "Do meu jeito modesto estou, às escondidas, ajudando as pessoas entenderem um pouco mais o tipo de gente de que Deus gosta".

Mais recentemente Kevin Kelly, cofundador da revista Wired e autor de "What Technology Wants" ("O Que a Tecnologia Quer", em tradução livre), argumentou que a criação pode ir mais além em termos de código. Enquanto um romancista pode construir, moldar um mundo novo, codificadores podem construir mundos completos com agentes artificiais que existem e evoluem fora da mente de seu criador. Kelly toma literalmente as palavras de seu amigo, Stewart Brand, cujo "Whole Earth Catalogue" ("Catálogo de Toda a Terra", em tradução livre) gracejava "Somos como deuses, e podemos também ser bons nisso". Kelly, um cristão, diz que a capacidade de criar vida artificial virá com grande responsabilidade parental e insinua que mundos artificiais necessitarão ser imbuídos de valor moral. "Isto provoca uma espécie de ressurgimento de religião",  diz ele, "porque a religião tem estado pensando sobre este tema".

Visto de fora, fazer o hacking de código de computador tem sido visto grandemente como uma disciplina técnica, não como uma visão teologicamente rica de como viver. Mas, alguns vêem um aspecto divino na programação -- pelo menos vendo-a com o olhar da fé.

O padre e teólogo jesuíta Antonio Spadaro - (Foto: Wikipedia).



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