quinta-feira, 14 de julho de 2011

Questionando o Paradoxo Inca

Quando o professor de história da Universidade de Yale Hiram Bingham III encontrou as ruínas de Machu Picchu no Peru há 100 anos atrás, em 24/7/1911, arqueólogos e exploradores em todo o mundo, incluindo o próprio Hiram, ficaram chocados por nunca ter visto uma referência escrita a essa cidade imperial feita de pedras. No entanto, a ausência de tais registros históricos não era em si mesma uma surpresa. A civilização inca, uma cultura tecnologicamente sofisticada que reuniu o maior império do hemisfério ocidental, tem sido considerada de longa data a única grande civilização da Idade do Bronze que não conseguiu desenvolver um sistema de escrita -- uma fraqueza ou falha intrigante, que hoje é chamada de "O Paradoxo Inca".

Os incas também nunca desenvolveram o arco arquitetônico -- outro marco comum de uma civilização -- no entanto, os templos de Machu Picchu, construídos em um espinhaço chuvoso no topo de duas falhas geológicas, permanecem de pé depois de mais de 500 anos enquanto a vizinha cidade de Cusco foi destruída duas vezes por terremotos. O equivalente inca para o arco arquitetônico foi uma forma trapezoidal ajustada sob medida para resistir aos requisitos de seu terreno sismicamente instável. De maneira análoga, os incas desenvolveram um sistema único e diferenciado para registrar informações, formado por cordas com nós, denominado khipus (algumas vezes escrito quipus). Em anos recentes, a questão de saber se esses khipus eram na realidade um método de escrita tridimensional que satisfazia às necessidades específicas dos incas tornou-se um dos grandes mistérios não resolvidos doa Andes.  

Ninguém discute que os incas foram grandes coletores/colecionadores de informações. Quando um batalhão de espanhóis conquistadores, liderados pelo cruel Francisco Pizarro, chegou em 1532, eles ficaram impressionados com a organização político-administrativa dos incas. As produções anuais de alimentos e têxteis eram cuidadosamente estocadas em armazéns. Para manter controle de todo esse material, o império usava khipucamayocs, uma casta formada especialmente de leitores de khipus. O grande cronista espanhol do século 16 Pedro Cieza de León lembra que esses homens eram tão peritos que "nem mesmo um par de sandálias" escapava de suas contas. Os espanhóis, que não eram eles mesmos incompetentes no departamento da burocracia -- a equipe de desembarque de Pizarro tinha 12 tabeliães -- observaram que os incas eram particularmente espertos e habilidosos com números. Por muitos anos durante o século 16, diz Frank Salomon, professor de antropologia na Universidade de Wisconsin (EUA), os khipucamayocs incas e os contadores espanhóis estiveram em disputa em processos na justiça, e as quantidades e montantes em khipu eram usualmente considerados mais precisos.

Individualmente, os khipus parecem ter variado amplamente em cor e complexidade; a maior parte dos exemplos encontrados e existentes consistem geralmente de uma corda/cordão básica da grossura de um lápis, na qual ficam penduradas várias cordas/cordões pendentes (ver figura) -- nestes últimos  são penduradas outros cordões chamados "subsidiários". Relatos de testemunhas oculares do século 16 descrevem os khipucamayocs estudando muito atentamente seus khipus para acessar quaisquer detalhes que tivessem sido gravados neles. De acordo com crônicas espanholas dos anos 1560 e 1570, alguns khipus pareciam conter informações do tipo que outras culturas haviam tipicamente preservado por escrito, tais como genealogias e canções que elogiavam o rei. Um missionário jesuíta falou de uma mulher que lhe havia trazido um khipu no qual ela tinha escrito "uma confissão de sua vida toda".

A reação institucional espanhola a esse sistema singular de registro, originalmente benigna, mudou em 1583, quando a nascente Igreja Católica peruana decretou que os khipus eram obra do diabo e ordenou a destruição de cada khipu no antigo império inca. -- Isto foi o auge da Inquisição espanhola, e a igreja estava fazendo uma forte pressão para converter os nativos que professavam a fé panteísta de seu império. -- Em meados do século 17, relatam os espanhóis, as únicas fontes históricas disponíveis daquele tempo, começaram a lançar dúvidas sobre a ideia de que os khipus tivessem sido alguma vez "lidos" como textos. Em vez disso, os khipus vieram a ser vistos como sugestões mnemônicas análogas às contas dos rosários católicos, sugestões ou "dicas" que supostamente tinham ajudado os khipucamayocs a se lembrarem de informações que já haviam armazenado. Alguns eruditos argumentaram que um khipu poderia ter sido entendido apenas pelo mesmo khipucamayoc que o havia feito. Culturas andinas continuaram a usar, secretamente, cordas com nós para registrar informações até boa parte do século 20, mas os vínculos entre as cordas modernas e os khipus incas não são claros. O que é inequívoco é que ninguém na história recente foi capaz de entender e interpretar completamente um khipu inca.

A teoria mnemônica dos conquistadores predominou por três séculos, e foi reforçada em 1923 quando o antropólogo L. Leland Locke analisou 42 khipus no Museu Americano de História Natural em Nova Iorque. Locke demonstrou como os khipus representavam os resultados de tabulações. Essas figuras baseavam-se no sistema decimal (dezenas, centenas, milhares) e, assim, eram análogas às contas de um ábaco. Apesar da evidência de relatos de testemunhas oculares do século 16, a comunidade acadêmica aceitou a hipótese de que os incas, que haviam construido o maior sistema de estradas do mundo e erradicado a fome em um império com mais de 10 milhões de pessoas, jamais conseguiram expressar seus pensamentos na forma escrita.

Em 1981, entretanto, a dupla de marido e mulher Robert e Marcia Ascher, arqueólogo e matemática, colocou em dúvida o Paradoxo Inca. Analisando detalhadamente a posição, o tamanho e a cor dos nós em 200 khipus, demonstraram que cerca de 20% deles mostravam propriedades "não aritméticas". Esses cordões, argumentaram os Aschers, pareciam ter sido codificados com números que poderiam também representar outras informações -- possivelmente alguma forma de narrativa.

A questão com a qual especialistas nos Incas têm lidado é se os khipus constituem ou não o que os linguistas chamam de um "glotográfico" ou um "verdadeiro sistema de escrita". Na escrita verdadeira/real, um conjunto de sinais (por exemplo, as letras G-A-T-O) combina ou "casa" com o som da fala (a palavra falada "gato"). Esses sinais têm que ser facilmente decodificados não apenas pela pessoa que os escreve, mas por qualquer outra pessoa capacitada a ler naquela linguagem. Nenhum elo desse tipo foi encontrado até agora entre um khipu e uma única sílaba do quéchua, a língua nativa dos Andes peruanos.

Por razões de espaço, deixo de traduzir os trechos finais do interessantíssimo artigo do site Slate sobre o denominado "Paradoxo Inca".
Detalhe de um khipu da era inca (Foto Slate).
Caixa de trabalho de um "fabricante" de khipu (Foto Slate).

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