[Traduzo a seguir uma reportagem do jornal britânico The Guardian, relativa a uma entrevista com Noam Chomsky. Linguista, filósofo e ativista político, Chomsky é professor de Linguística no famoso Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT) -- considerado um dos mais importantes intelectuais da atualidade, ele é famoso também por suas posições de esquerda e de ferrenho crítico da política externa americana. A frase título desta postagem, com a qual concordo integralmente, é dele. Sou seu admirador de carteirinha. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]
Este texto é adaptado de "Revoltas" (Uprisings), um capítulo de "Power Systems: Conversations on Global Democratic Uprisings and the New Challenges to US Empire" ["Sistemas de Poder: Conversas sobre Revoltas Globais Democráticas e os Novos Desafios ao Império Americano", em tradução direta], o livro recente de Noham Chomsky com entrevistas com David Barsamian (com agradecimentos à editora, Metropolitan Books). As perguntas são de Barsamian e as respostas, de Chomsky.
Os EUA possuem ainda o mesmo grau de controle sobre as fontes de energia do Oriente Médio como já tiveram antes?
Os principais países produtores de energia estão sob firme controle das ditaduras apoiadas pelo Ocidente. Assim, na realidade, o progresso feito pela primavera árabe é limitado, mas não é insignificante. O sistema ditatorial controlado pelo ocidente está sofrendo uma erosão. Na realidade, está passando por esse desgaste já há algum tempo. Por exemplo, se retrocedermos 50 anos, as fontes de energia -- a principal preocupação dos estrategistas dos EUA -- foram em sua maioria nacionalizadas. Constantemente têm sido feitas tentativas para reverter isso, mas sem êxito.
Tome a invasão do Iraque, por exemplo. Para qualquer um, exceto para um ideólogo obstinado, foi completamente óbvio que invadimos o Iraque não por nosso amor à democracia mas sim porque o país é a segunda ou terceira maior fonte de petróleo do mundo, e está bem no meio de uma região que é grande produtora de energia. Mas, não se pode dizer isso porque é considerado uma teoria conspiratória.
Os EUA foram seriamente derrotados no Iraque pelo nacionalismo iraquiano, em sua maior parte por uma resistência não violenta. Os EUA poderiam matar os revoltosos, mas não poderiam lidar com meio milhão de pessoas fazendo demonstrações nas ruas. Pouco a pouco, o Iraque conseguiu desmantelar os controles montados pelas forças de ocupação. Por volta de novembro de 2007, foi se tornando perfeitamente claro que seria muito difícil atingir as metas dos EUA. E, naquele instante, interessantemente, esses objetivos estavam explicitamente expressos. Assim, em novembro de 2007, o governo de Bush II surgiu com uma declaração oficial sobre como como teria que ser qualquer arranjo futuro com o Iraque. Ela tinha dois requisitos principais: um, que os EUA têm que ter liberdade para executar operações de combate a partir de suas bases militares, as quais ainda retêm; - e dois, "encorajar o fluxo de investimentos estrangeiros para o Iraque, especialmente os investimentos americanos". Em janeiro de 2008, Bush deixou isso claro em uma de suas declarações assinadas. Um par de meses depois, face à resistência iraquiana, os EUA tiveram que desistir e seu controle sobre o Iraque está desaparecendo à frente de seus olhos.
O Iraque foi uma tentativa de reinstituir pela força algo como o antigo sistema americano de controle, mas isso fracassou. Acho que no geral as políticas dos EUA permanecem as mesmas, mas a capacidade de implementá-las está declinando.
Declinando por causa de fraqueza econômica?
Em parte porque o mundo está simplesmente se tornando mais diversificado, possui mais centros de poder diversificados. No final da Segunda Grande Guerra, os EUA estavam completamente no pico de seu poderio. Possuiam metade das riquezas do planeta, e cada um de seus concorrentes estava severamente prejudicado ou destruído. Desfrutavam de uma posição de inimaginável segurança, e desenvolveram planos para literalmente dirigir o mundo -- não irrealisticamente, naquele momento.
Isso foi denominado planejamento da "grande área"?
Sim. Logo após a segunda guerra mundial, George Kennan, chefe da equipe de planejamento estratégico do Departamento de Estado, e outros esboçaram os detalhes e, em seguida, eles foram implementados. O que está acontecendo hoje no Oriente Médio e no norte da África, até certo ponto, e na América do Sul remonta substancialmente aos fins dos anos 1940. A primeira grande resistência bem sucedida contra a hegemonia americana deu-se em 1949, quando se deu um evento que, interessantemente, foi chamado "a perda da China". Esta é uma expressão interessante, nunca contestada. Houve muita discussão sobre quem é o responsável pela perda da China, isto se tornou um enorme assunto interno [nos EUA]. Mas, ela é uma expressão muito interessante. Você só pode perder algo se o possuir. Teve-se então como líquido e certo: a China é nossa -- e, se ela se mover para tornar-se independente, perdemos a China. Posteriormente, surgiram preocupações com a "perda da América Latina", a "perda do Oriente Médio", a "perda de" certos países, todas elas baseadas na premissa de que somos os donos do mundo e qualquer coisa que enfraqueça nosso controle é uma perda para nós, e ficamos imaginando como recuperá-lo.
Hoje, se você ler, digamos, publicações sobre política externa ou, em uma forma cômica e ridícula, ouvir os debates dos republicanos, eles estão indagando: "Como evitar mais perdas?"
Por outro lado, a capacidade de preservar o controle reduziu-se fortemente. Por volta de 1970, o mundo já era o que se chamava tripolar economicamente falando, com um centro industrial na América do Norte baseado nos EUA, um centro europeu apoiado na Alemanha grosseiramente comparável em tamanho, e um centro no leste asiático apoiado no Japão, que era à época a região de crescimento mais dinâmico no mundo. Desde então, a ordem econômica global tornou-se muito mais diversificada. Assim, tornou-se mais difícil levar a cabo nossas políticas, mas os princípios básicos delas não mudaram muito.
Tomemos a doutrina Clinton. Ela dizia que os EUA tinham direito a recorrer a medida de força unilateral para assegurar "acesso ilimitado a mercados, suprimentos de energia e fontes estratégicas essenciais". Isso vai além do que qualquer coisa dita por George W. Bush. Mas, foi expresso de maneira calma e não foi arrogante nem rude, por isso não provocou muito alvoroço. A crença naquele direito permanece a mesma até agora, e é também parte da cultura intelectual americana.
Logo em seguida ao assassinato de Osama Bin Laden, em meio às vibrações e aplausos, houve alguns poucos comentários críticos questionando a legalidade do que fora feito. Séculos atrás, costumava existir algo chamado presunção de inocência. Se você capturar um suspeito, ele é um suspeito até ficar provado que é culpado. Ele deveria ser levado a julgamento, isto é o coração da lei americana. Você pode rastrear isso de volta até à Carta Magna. Houve então um par de vozes dizendo que talvez não devêssemos jogar fora todo o fundamento da legislação anglo-americana. Isso gerou um bocado de reações muito irritadas e furiosas, mas as mais interessantes, como sempre, foram as vindas do extremo esquerdista-liberal do espectro político. Matthew Yglesias, um comentarista da esquerda liberal muito conhecido e altamente respeitado, escreveu um artigo em que ridicularizava esses pontos de vista. Ele disse que eles eram "surpreendentemente inocentes" e estúpidos, e depois explicou porque achava isso. E disse: "Uma das principais funções da ordem institucional internacional é precisamente legitimar o uso de forças militares letais pelas potências ocidentais". É óbvio que não se referia à Noruega, ele focava os EUA. Assim pois, o princípio em que se baseia o sistema internacional é que os EUA têm o direito de usar a força conforme a sua vontade. Falar sobre os EUA estarem violando as leis internacionais, ou algo parecido, é surpreendentemente inocente e completamente estúpido. Por falar nisso, eu era o alvo dos comentários de Matthew e sou feliz por confessar minha culpa. Eu realmente acho que a Carta Magna e as leis internacionais são dignas de alguma atenção.
Mencionei isso simplesmente para ilustrar que, na cultura intelectual, os princípios nucleares da política americana não mudaram muito, mesmo no chamado extremo esquerdo-liberal do espectro político. Mas, a capacidade de implementá-los diminuiu drasticamente. É por isso que se tem toda essa conversa sobre o declínio americano. Dê uma olhada na edição de fim de ano da "Foreign Affairs", a principal publicação do establishment. Sua vistosa primeira página primeira pergunta, em negrito: "A América está acabada?" [ou, "A América já era?"]. É uma reclamação típica daqueles que acreditam que devem ser donos de tudo. Se você acredita que deve ser dono de tudo e alguma coisa escapa de você, é uma tragégia e o mundo é visto como entrando em colapso. Então, a América já era? Há muito tempo atrás "perdemos" a China, perdemos o sudeste da Ásia, perdemos a América do Sul. Talvez percamos o Oriente Médio e os países do norte da África. A América já era? Isto é um tipo de paranoia, mas é a paranoia dos super-ricos e dos super-poderosos. Se você não possuir tudo, é um desastre.
O New York Times (NYT) descreve "o dilema de definição da política da primavera árabe como sendo a busca de como harmonizar impulsos contraditórios dos EUA, incluindo apoio para mudança democrática, um desejo por estabilidade e cautela com islamitas que se tornaram politicamente poderosos". O NYT identifica três objetivos dos EUA. O que você acha deles?
Dois deles estão corretos. Os EUA são a favor da estabilidade, mas é preciso lembrar do que significa estabilidade. Estabilidade significa concordância com as ordens dos EUA. Assim, por exemplo, uma das acusações contra o Irã, a grande ameaça na política externa, é que está desestabilizando o Iraque e o Afeganistão. Como? Tentando expandir sua influência em direção a países vizinhos. Por outro lado, nós "estabilizamos" países quando os invadimos e os destruímos.
E, ocasionalmente, citei uma das minhas maneiras favoritas de ilustrar isso, que é da autoria de um famoso e muito bom analista liberal de política externa, James Chace, um ex-editor da Foreign Affairs. Escrevendo sobre a deposição do regime de Salvador Allende e a imposição da ditadura de Augusto Pinochet em 1973, ele disse que tivemos que "desestabilizar" o Chile no interesse da "estabilidade". Isso não é entendido como uma contradição -- e realmente não é. Tivemos que destruir o sistema parlamentar chileno para ganhar estabilidade, isto significando que fariam o que mandássemos que fizessem. Assim, pois, somos a favor da estabilidade nesse sentido técnico.
Preocupação com o Islã político é simplesmente igual à preocupação com qualquer desenvolvimento independente. Você tem que se preocupar com qualquer coisa que seja independente, porque ela pode destruir você aos poucos. Na realidade, isso é um pouco paradoxal porque tradicionalmente os EUA e o Reino Unido têm, geralmente, prestado forte apoio ao fundamentalisno islâmico radical, não ao Islã político, como uma força para bloquear o nacionalismo secular, que é a preocupação real de ambos. Assim, por exemplo, a Arábia Saudita é o estado mais extremadamente fundamentalista no mundo, um estado islâmico radical -- tem um zelo missionário, está levando o islamismo radical ao Paquistão e está financiando o terror, mas, é o baluarte da política dos EUA e do Reino Unido, que o têm apoiado de forma consistente do Egito de Gamal Abdel Nasser ao Iraque de Abd al-Karim Qasim, entre muitos outros. Mas, ambos não gostam do Islã político porque ele pode tornar-se independente. [A mais recente novidade nessa relação espúria é a descoberta de uma base secreta de Vants (Veículos aéreos não tripulados, os drones) dos EUA na Arábia Saudita.]
O primeiro dos três pontos, nosso anseio por democracia, está mais ou menos no mesmo nível de Joseph Stalin falando sobre o compromisso russo com autodeterminação, democracia e liberdade para o mundo. É o tipo de declaração da qual você ri quando a ouve da boca de comissários [no sentido soviético ou russo da palavra] ou clérigos iranianos, mas para a qual você acena polidamente com a cabeça, e talvez até com admiração, quando a ouve das contrapartes ocidentais.
Se você observar os registros históricos, o anseio por democracia é uma piada de mau gosto. Isto é reconhecido até por acadêmicos de ponta, embora não o façam dessa maneira. Uma das maiores autoridades acadêmicas na denominada promoção de democracia é Thomas Carothers, que é bastante conservador e tido em alta conta -- um neo-reaganista, não um liberal inflamado. Ele trabalhou no Departamento de Estado de Reagan e escreveu vários livros analisando o curso da promoção de democracia, que ele leva muito a sério. Ele diz ok, isso é um ideal americano profundamente arraigado, mas tem uma história engraçada. A história é que todo governo dos EUA é "esquizofrênico". Eles apoiam a democracia apenas quando ela está de acordo com certos interesses estratégicos e econômicos. Ele descreve isso como uma patologia estranha, como se os EUA necessitassem de tratamento psiquiátrico ou algo parecido. Obviamente, há outra interpretação, mas é uma que não pode ser lembrada se você for um intelectual bem-educado e bem comportado.
Vários meses após a derrubada do presidente Hosni Mubara no Egito, ele estava sendo julgado e enfrentando acusações de crimes e prisão. É inconcebível pensar-se que líderes dos EUA sejam alguma vez detidos para responder por seus crimes no Iraque ou alhures. Isso mudará em algum futuro próximo?
Esse é basicamente o princípio Yglesias: a base fundamental da ordem internacional é que os EUA tenham o direito de usar a violência à sua vontade. Se é assim, como é que se pode acusar alguém?
E ninguém mais tem esse direito [do uso indiscutível da força]?
Claro que não. Bem, talvez nossos clientes o tenham. Se Israel invadir o Líbano, matar 1.000 pessoas e destruir metade do país, OK, está tudo bem. É interessante. Barack Obama foi um senador antes de ser presidente. Não fez muito como senador, mas fez um par de coisas, incluindo uma da qual se sente particularmente orgulhoso. De fato, se você olhasse em seu website antes das primárias veria que Obama destacava o fato de, durante a invasão do Líbano por Israel em 2006, ter co-patrocinado uma resolução do Senado demandando que os EUA não fizessem nada para impedir as ações militares de Israel até que elas tivessem atingido seus objetivos, e censurando o Irã e a Síria porque estavam apoiando a resistência contra a destruição do sul do Líbano por Israel. Por sinal, pela quinta vez em 25 anos. Assim, eles herdaram o direito [do uso da força à sua vontade]. Outros clientes também.
Mas, na realidade, esse direito tem sede em Washington. Isso é o que significa ser dono do mundo. É como o ar que você respira, você não pode questioná-lo. O principal fundador da teoria contemporânea das RI (Relações Internacionai), Hans Morghentau, era na realidade uma pessoa bastante decente, um dos raros cientistas políticos e especialistas em assuntos externos a criticar a guerra do Vietnam sob o ponto de vista moral, não tático. Algo muito raro. Ele escreveu um livro chamado "O Objetivo da Política Americana" (The Purpose of American Politics). Você já sabe o que ele traz. Outros países não têm objetivos. O objetivo da América, por outro lado, é "transcedental" -- levar liberdade e justiça para o resto do mundo. Mas, ele [Morghentau] é um bom acadêmico, como Carothers. Então, vasculhou os arquivos. Ele disse que, quando você examina esses arquivos, é como se os EUA não vivessem à altura de seus objetivos transcendentais. Mas, diz ele então, criticar nossos objetivos transcendentais é "cair no erro do ateísmo, que nega a validade da religião com base nas mesmas razões" -- que é uma boa comparação. É uma crença religiosa profundamente arraigada -- tão profundamente, que será difícil desemaranhá-la. E se alguém questionar isso, gera-se uma quase-histeria e, frequentemente, acusações de antiamericanismo ou de "ódio à América" -- conceitos interessantes que não existem em sociedades democráticas, mas em regimes totalitários e aqui [nos EUA], onde são simplesmente considerados como indiscutíveis.
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