Há escândalos, e há escândalos alemães. Um escândalo foi a trama de financiamento ilegal que em 1999 derrubou os patriarcas democrata-cristãos Helmut Kohl e Wolfgang Schäuble. [Por ironia do destino e da política, Schäuble, depois de forçado a renunciar à presidência da União Cristã-Democrata (CDU, em alemão) em fevereiro de 2000, voltou a ocupar posições de destaque no governo da chanceler Angela Merkel, sendo seu ministro do Interior de 2005 a 2009 e seu ministro das Finanças desde 2009, desempenhando papel central nas negociações para debelar a crise que atinge pelo menos desde 2008 a zona do euro.] - Isso teria sacudido qualquer partido, em qualquer democracia. Entretanto, foi um escândo tipicamente alemão o que custou a perda da pasta da Educação para Annette Schavan, aliada política e amiga pessoal da chanceler Merkel.
Schavan se demitiu depois que a Universidade de Düsseldorf lhe confiscou o título de doutora, por plágios em tese defendida em 1980 aos 24 anos. Não foi o primeiro caso. Dois anos antes, o ministro da Defesa Karl-Theodor zu Guttenberg se demitiu também por perder seu título de doutor em caso similar [ver postagem anterior a respeito]. As evidências contra ele se acumularam graças a informações anônimas em página na Internet aberta à participação pública [ver postagem anterior sobre os caçadores de plágios na Alemanha].
Se confirmam assim duas velhas características alemãs: 1) a mania inquietante de dar lição ou advertência ao próximo, por qualquer excesso que este cometa, e 2) a paixão arrebatadora por títulos acadêmicos. [É interessante registrar que essa visão dos alemães aparece no principal jornal da Espanha, país que está no olho de nova onda de crise econômica da eurozona e está submetido ao controle implacável da troica (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional), da qual a Alemanha é o principal suporte.]
Os buscadores de plágios dizem que não caçam, mas sim documentam. Em 2011 se organizaram em torno da GuttenPlag ["Plágio de Guttenberg"], uma página da Internet que funciona como o sistema wiki: qualquer um pode participar e escrever. Com esse método, foram preenchendo vazios da tese de doutorado que o barão de Guttenberg, estrela conservadora da União Social Cristã (CSU, em alemão) bávara no governo de Merkel, havia terminado em 2007. Começaram quando um jurista descobriu 24 plágios na tese, mas ainda não se conhece o verdadeiro fundador da página, que atende pelo pseudônimo de PlagDoc. Em pouco tempo, o enxame de caçadores havia encontrado plágios em 94% das páginas da tese.
Ao recordar o fato, o catedrático berlinense Gerhard Dannemann ria na sexta-feira, entre dois exames orais da Universidade Humboldt: "Era tremendo, estava tudo plagiado, usava qualquer coisa alheia". Entretanto, "o par de frases que colocava entre plágio e plágio, isso sim, correspondia ao estilo de escrever e até de falar de Guttenberg". Quem já ouviu pessoalmente algum dos discursos afetados do "TVgênico" [o fotogênico da TV] barão pode ter uma ideia do que se trata.
Dannemann é uma das raras caras que se pode associar à VroniPlag, a wiki herdeira da que derrumbou Guttenberg. Quase todos os demais de seus participantes se mantêm no anonimato. O administrador da web, um matemático quarentão que usa o apelido Hindemith, explica que todos trabalham "em seu tempo livre, perdendo dinheiro". Hindemith compreende que, visto de fora, do estrangeiro, "tudo isso é difícil de se entender", mas, sem sombra de querer ser pretensioso, explica por telefone que "é importante combater a ciência vista como espetáculo ou como entretenimento". Também um doutor, defende que "a ciência esteja comprometida com a verdade". Por isso, "vê como muito mais graves os plágios cometidos por acadêmicos e cientistas, que dificultam a busca da verdade". Nada em suas explicações calmas soa a fanatismo ou afã denunciador: os plagiários lhe dão "certa pena, mas um trabalho é publicado para que esteja aberto à crítica e ao exame".
Dannemann concorda em que os mais perigosos são os cientistas plagiários, mas assinala que "na Alemanha esses títulos têm uma relevância social que para a ciência é irrelevante, ou até nociva: um número excessico [de pessoas] obtém doutorado sem ter pretensões científicas ou acadêmicas". É aqui que se encaixam os Guttenberg, pessoas que fizeram de suas teses uma plataforma para uma carreira política ou empresarial.
A Alemanha é o país dos doktoren, em que a abreviatura "Dr." aparece em seus cartões de visita, nas caixas de correio ou até na carteira de identidade e nos passaportes. "E a maioria solicita figurar assim ao ser recenseado ou registrado", disse um alto funcionário de Berlim. A cada ano, 25.000 alemães recebem o título de doutor. [Lembro-me de quando estagiei na Alemanha e na Suécia, da enorme diferença de tratamento e formalismo entre os dois países. Enquanto a placa de identificação na porta da sala de cada engenheiro alemão era quase um minicurrículo ("Herr Prof. Dr. Phil. ...", "Senhor Prof. Dr. PhD ...") e ele só podia ser acessado via secretária, os principais engenheiros da ASEA tinham apenas uma singela plaqueta com seu nome profissional ("Skoglund") na sua porta, e bastava bater e pedir licença para entrar.]
Dos 30 presidentes das corporações cotadas na Bolsa de Frankfurt, 18 são doutores. Um ou outro é, além disso, "Prof." ou seja, professor ou catedrático. Angela Merkel possui também o título de doutora, o mesmo acontecendo com o vice-chanceler Philipp Rösler e boa parte de seus ministros. O chefe da Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano, Hermann Parzinger, exagera nas tintas com o "Prof. Dr. Dr. h.c. mult." que enfeita sua biografia na Internet [essa sopa de letras significa "Prof. Dr. Dr. honoris causa multiplex" = "Professor Dr. Dr. honoris causa por várias universidades" -- que tal?!]. É espantoso, mas não é um caso isolado. Mais que um enfeite para os vaidosos, o doutorado é um trampolim muito útil para as alturas políticas e empresariais.
O doutorado é também a prova do triunfo contundente da burguesia alemã, mais nacionalista que liberal, sobre as elites aristocráticas e clericais. O historiador Manfred Görtemaker lembra que a impressionante classe social que transformou a Alemanha na potência industrial, militar e científica que causava assombro ao mundo no início do século XX "se impôs à velha nobreza com seus próprios títulos, frutos de esforço pessoal e não do berço".
O caso de Zu Guttenberg é ilustrativo das prioridades alemãs: o barão bávaro, casado com uma condessa, era muito popular entre os eleitores e um herói das revistas românticas. Mas, a perda da sua tese o fez enfrentar-se com a imprensa conservadora culta que, capitaneada pelo Frankfurter Allgemeine Zeitung, não lhe deu trégua até que deixou o cargo. Que um milionário aristocrata como ele jogasse a carreira por ser chamado de doktor, dá bem uma ideia da relevância social de que fala o professor Dannemann.
Os participantes da VroniPlag querem, insistem, "conscientizar os estudantes da importância do que fazem, e também que as universidades aumentem o controle e a informação". A controvérsia atual fará com que muitos comecem a se questionar sobre o que é um doutorado e para quê serve. Alguns propõem reformas legais para retirar o título do documento de identidade. Dannemann acredita que, "ainda assim, seriam necessárias duas gerações" para que a Alemanha perca suas paixões doutorais.
Os plagiários pilhados
Karl-Theodor zu Guttenberg -- Ex-ministro da Defesa, membro da União Social-Cristã da Bavária (CSU, em alemão). Perdeu o título de Doutor em Direito em fevereiro de 2011. Plagiou 94% das páginas de sua tese.
Veronica Sass -- Seu caso em maio de 2011 deu origem ao nome do movimento VroniPlag -- Vroni é o diminutivo de Veronica no dialeto bávaro. A advogada é filha do ex-primeiro-ministro da Bavária, Edmund Stolber (CSU). Plagiou 54% das páginas de sua tese de Direito.
Silvana Koch-Merin -- Uma das estrelas ascendentes do Partido Democrata Liberal (FDP, em alemão), no qual renunciou a todos os cargos depois de perder o título acadêmico. É deputada no Parlamento Europeu, mas anunciou que não se candidatará novamente em 2014. Plagiou 34% das páginas de sua tese.
Jorgo Chatzimarkakis -- Do FDP. Julho de 2011. Outro eurodeputado liberal caçado. Não renunciou.
Bijan Djir-Sarai -- Também do FDP. Março de 2012. Deputado do Bundestag (Parlamento Alemão). Não renunciou.
Annette Schavan -- Democrata-cristã, ministra da Educação até a semana passada. Plagiou 29% de sua tese.
Perderam ainda seus títulos acadêmicos os seguintes políticos: Matthias Pröfrock (democrata-cristão da CDU), Uwe Brinkmann (ex-membro do SPD), Margarita Mathiopoulos (FDP), Siegfried Haller (SPD).
Annette Schavan, ministra da Educação da Alemanha até a semana passada, renunciou ao cargo depois da descoberta de plágio em sua tese de doutorado - (Foto: Google).
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