sábado, 18 de agosto de 2012

Problemas terrenos na Igreja Católica americana: aqui se faz, aqui se paga (financeiramente, pelo menos)

De todas as organizações que ajudam os pobres nos EUA, poucas fazem um trabalho melhor que o da Igreja Católica: suas escolas e seus hospitais são uma tábua de salvação para milhões. Mesmo levando em conta essas virtudes, as finanças da Igreja Católica nos EUA são uma bagunça profana. Os pecados envolvidos em sua contabilidade não são tão intensos ou grotescos como aqueles à mostra nos vários casos de abuso sexual, que já custaram à igreja americana mais de US$ 3 bilhões até agora [o que evidencia duas características no mínimo bizarras para uma instituição religiosa: sua fantástica riqueza e a extensão da depravação de seus pregadores formais]. Porém, a má administração financeira e práticas financeiras questionáveis [como as da Igreja] teriam provocado renúncias várias no alto comando de qualquer outra instituição pública.

Os escândalos de abuso sexual dos últimos 20 anos trouxeram vergonha para a Igreja ao redor do mundo. Nos EUA, eles trouxeram também tensões financeiras. A The Economist tentou quantificar os danos, estudando documentos legais de casos de falência, examinando arquivos públicos, requisitando documentos de governos municipais, estaduais e federal, bem como conversando confidencialmente com padres e bispos.

O quadro resultante não é lisonjeiro. As finanças da Igreja parecem ser coordenadas deficientemente, considerando-se sua complexidade (ou talvez por causa dela). A gestão do dinheiro é geralmente desleixada. E algumas partes da Igreja condescenderam em contorções financeiras desastradas, em alguns casos -- alega-se -- tanto para desviar fundos para objetivos não pretendidos pelos doadores, como para prejudicar credores portadores de demandas legítimas, incluindo seus próprios padres e freiras. As dioceses que pediram falência podem não ser típicas da Igreja como um todo mas, tendo em conta a falta geral de transparência, não há como saber até que ponto elas são casos marginais, ou não.

Milhares de demandas decorrentes de casos de abusos sexuais, que tipicamente custam à Igreja mais de US$ 1 milhão por vítima, de acordo com advogados neles envolvidos, geraram uma crise de liquidez [eis mais um retrato em branco e preto da Igreja Católica Apostólica Romana]. Isso parece ter encorajado uma tendência preexistente, no sentido de substituir dólares dos fiéis com dívida  pública, como um modo de financiar o negócio da Igreja. Esta, por outro lado, está cada vez mais ávida em defender seu acesso a subsídios do atendimento público de saúde, enquanto alega o direito de não prover certos serviços médicos para os quais tem objeção, como o de contracepção por exemplo. Essa crescente dependência em relação a contribuintes [= pagadores de impostos] não tem sido compensada com maior transparência e mais responsabilidade. A Igreja, como outros grupos religiosos nos EUA, não está sujeita às mesmas exigências de abertura e divulgação de suas contas como outras entidades sem fins lucrativos ou privadas.

Pouco se sabe sobre as finanças da Igreja Católica fora dos EUA. O JP Morgan Chase, recentemente, fechou as contas do Vaticano por pressão do Tesouro americano [eis uma notícia importante que a mídia brasileira nos sonegou!]. A Santa Sé tem se esforçado para ser incluída em listas de jurisdições consideradas como possuidoras de controles rígidos contra lavagem de dinheiro. Isso pode refletir uma organização ruim, em vez de uma tentativa orquestrada para esconder alguma coisa, embora documentos vazados pelo ex-mordomo do Papa Bento XVI para um jornalista italiano sugiram que a má administração no Vaticano vai além da simples negligência. Mas os EUA,  graças particularmente aos seus procedimentos relativos a falências, permitem uma visão ligeiramente mais clara sobre as finanças da Igreja. E os EUA são tão importantes para a Igreja, que merecem um exame particularizado. Apenas três países -- Brasil México e Filipinas -- têm mais católicos que os EUA, e em nenhum outro lugar a minoria católica é maior que a americana.

[...] A The Economist estima que os gastos totais da Igreja e de entidades de que é proprietária foram de cerca de US$ 170 bilhões em 2010 (a Igreja não divulga tais cifras). Acreditamos [leia-se "a revista acredita"] que, desse total, 57% vão para redes de assistência médica e 28% para o ensino, com as operações do dia a dia de paróquias e dioceses consumindo apenas 6% e atividades de caridade de âmbito nacional respondendo por apenas 2,7% (ver gráfico). No total, as instituições católicas empregam mais de 1 milhão de pessoas, calcula Fred Gluck, um ex-sócio dirigente da McKinsey e cofundador da Mesa Redonda Nacional de Lideranças sobre Gestão da Igreja (tradução livre para National Leadership Roundtable on Church Management), uma organização laica que busca melhorar o modo pelo qual a Igreja é administrada.  Para fins de comparação com atividades seculares, em 2010 a receita da General Electric foi de US$ 150 bilhões e a Walmart empregava cerca de 2 milhões de pessoas.

Muitas mansões - Gastos da Igreja Católica americana - 2010 ou ano mais recente disponível, estimativas, em bilhões de dólares - (Gráfico: The Economist - clique na imagem para ampliá-la).

Legendas da figura: Atendimento de saúde: $ 98,6 bi -- Colégios/universidades: $ 48,8 bi -- Paróquias/dioceses * (* = inclui escolas): $ 11,0 bi -- Caridades: $ 4,7 bi -- Outros: $ 8,5 bi

A estrutura da Igreja Católica (ver figura):

34 províncias metropolitanas administradas por bispos, contendo 196 arquidioceses e dioceses administradas por 270 bispos.
Estas últimas são subdivididas em 17.958 paróquias, administradas por 39.466 padres e 16.921 diáconos casados.
Cada bispo é independente em sua própria diocese, subordinado ao arcebispo metropolitano da província em questões limitadas, mas responde principalmente perante o Vaticano.
A Conferência de Bispos Católicos dos EUA, presidida pelo Cardeal Timothy Dolan, coordena o trabalho dos bispos em âmbito nacional e provê uma voz única em assuntos de política pública.
18 dos 212 cardeais vivos são americanos (todos são bispos de distinção especial que, enquanto abaixo de 80 anos, votam para a eleição do Papa e mantêm também posições na Igreja global).

A Igreja Católica é, isoladamente, a maior instituição de caridade nos EUA. Catholic Charities USA (Caridades Católicas EUA, em tradução livre) é sua principal entidade do gênero no país, e suas subsidiárias têm mais de 65.000 participantes remunerados e atende a mais de 10 milhões de pessoas. Essas organizações distribuíram US$ 4,7 bilhões aos pobres em 2010 -- 62% desse montante vieram de agências de governos municipais e estaduais, e do governo federal.  

A Igreja católica americana pode ser responsável por nada menos que 60% da riqueza global da Igreja. [...] É difícil dizer de onde vem esse dinheiro (a Igreja também não divulga esses números). [...]

Salários e pecado

O molestamento e estupro de crianças por padres nos EUA resultaram em mais de US$ 3 bilhões em acordos legais nos últimos 15 anos, dos quais US$ 1,3 bilhão na Califórnia [considerando o mínimo de US$ 1 milhão por vítima, conforme dito mais acima, teríamos cerca de 3.000 abusados sexuais "compensados" financeiramente pela Igreja, o que certamente -- pelo que se lê -- é uma parcela pequena do universo das vítimas sexuais de padres e bispos católicos nos EUA]. Há probabilidade de que esse total aumente, com mais estados seguindo o exemplo da Califórnia e de Delaware, que relaxaram as limitações [de prazo] para esse tipo de crime -- a maioria dos abusos foram denunciados muito tempo depois de sua ocorrência. Para uma organização com receita de US$ 170 bilhões, isso poderia parecer administrável, mas os acordos são feitos individualmente por dioceses e ordens religiosas, cujos bolsos são mais rasos do que os da Igreja como um todo.

O fato de que cada vez menos católicos estão respondendo ao chamado para se tornarem freiras, monges e padres (os seminários menores, antes o primeiro passo do processo de recrutamento, estão quase vazios) aumenta a pressão sobre a Igreja, porque significa a perda de mão de obra treinada e barata e a necessidade de contratar pessoas pagas para ter o serviço feito.

[...] Nos últimos oito anos, essa pressão levou oito dioceses -- incluindo San Diego, Tucson e Milwaukee -- a declarar falência, assim como o braço americano dos Irmãos Irlandeses Cristãos e um ramo regional dos jesuítas. [...]

O clero e seus credores

O princípio da separação entre Igreja e Estado nos EUA faz com que grupos religiosos não tenham que preencher declarações para o Fisco, relacionar seus ativos ou divulgar fatos básicos sobre suas finanças [a mesma mamata que aqui]. Efetivamente, algumas dioceses publicam suas contas, mas isso tende a gerar um quadro incompleto da situação. Embora os advogados de dioceses falimentares lutem para manter secretos os documentos financeiramente mais críticos, o processo de falência tem obrigado a Igreja a fazer aberturas inusitadas sobre suas contas.

[...] A contabilidade adotada pela maioria das dioceses dificulta a identificação e separação de ativos em caso de falência.

O contribuinte vira bom samaritano

As crescentes pressões financeiras tem encorajado a Igreja a substituir as doações de fiéis por dívida. De acordo com números fornecidos pela Comissão Municipal de Regulação de Valores Mobiliários relativos à última década, administrações estaduais e municipais emitiram bônus municipais em benefício de pelo menos 50 dioceses em quase 30 estados, para pagar a expansão e renovação de instalações que anteriormente teriam sido pagas, em grande parte, por doações de fiéis. O débito geral municipal da Igreja cresceu cerca de 80% naquele período. Pelo menos 736 desses bônus estão hoje pendentes de pagamento pela Igreja [é bastante "cristã" essa prática da Igreja: o crente deixa de doar diretamente à Igreja, mas o faz indiretamente através dos impostos que lastreiam os bônus municipais -- se a Igreja não paga o bônus no vencimento, o fiel se ferra, com a graça de Deus ... Daí a ironia do "bom samaritano".].

[...] Bônus municipais são geralmente isentos de impostos para os investidores, assim o custo para tomar empréstimo é inferior ao que seria no caso de um investimento tributável. Em outras palavras, a Igreja desfruta de um subsídio que é mais comumente associado com governos municipais e projetos de serviço público. Se a Igreja tiver emitido mais dívida, em parte para saldar os compromissos financeiros gerados pelos escândalos, então o contribuinte americano indiretamente ajudou a mitigar as perdas [da Igreja] decorrentes dos acordos judiciais. Os contribuintes podem igualmente pagar a conta de outros custos. Por exemplo, um acordo [ou mais de um] sobre centenas de possíveis casos de abuso em Nova Iorque pode provocar o fechamento de escolas católicas cidade afora.
Cardeal Timothy Dolan, Arcebispo de Nova Iorque, o maior latifundiário de Manhattan - (Foto: Alamy).


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