domingo, 12 de agosto de 2012

A paranoia do direito à posse de armas nos EUA

[O artigo que traduzo a seguir, de autoria de Fareed Zakaria e publicado na semana passada pela revista Time Magazine, tornou-se mais um texto emblemático na imprensa americana não por seu tema mais do que oportuno, mas porque nele o autor cometeu um plágio  explícito que foi descoberto e que o obrigou a se retratar publicamente, e acabou causando-lhe a suspensão de suas atividades na revista e na CNN -- ver comentário da diretoria da revista em itálico no corpo do artigo. Zakaria é um premiadíssimo jornalista e escritor americano nascido na Índia. Fora a nota da Time, o que mais estiver entre colchetes e em itálico no texto abaixo é de minha responsabilidade. Plágio à parte, o artigo nos dá a oportunidade de conhecer um pouco dos bastidores da história da posse de armas nos EUA -- a história detalhada está no ensaio plagiado, de Jill Lepore. Já fiz postagens antes sobre o assunto, tanto por ocasião da tragédia da escola de Realengo no Rio, no ano passado, quanto em relação à polêmica do porte de armas nos EUA.]


O caso para o controle de armas

Fareed Zakaria - Time Magazine (atualizado em 10/8/12)

Após o horrível ato de terrorismo contra um templo Sikh em Wisconsin no dia 5 de agosto, americanos estão ponderando sobre como interromper a violência provocada por armas de fogo. Decidimos que, nas palavras do colunista David Brooks do New York Times, se trata de um problema de psicologia e não de sociologia. Estamos tentando encontrar uma explicação para a ideologia diabólica de Wade Michael Page [o atirador de Wisconsin]. Há apenas algumas semanas atrás, estávamos todos tentando entender a psicologia anormal e deturpada de James Holmes, o homem que matou 12 inocentes em um cinema em Aurora, Colorado. Antes disso, foi a psicose de Jared Loughner, que atirou na deputada Gabby Giffords no ano passado.

É claro que deveríamos tentar identificar tais pessoas e ajudar a tratá-las e rastreá-las. Mas, à parte a imensa dificuldade dessa tarefa -- há milhões de pessoas fanáticas e loucas, e muito poucas se convertem em assassinos em massa --, ela não atinge o núcleo da questão. 

A violência com armas nos EUA não tem paralelo, quando comparada com a de qualquer outro país no planeta [Fareed se esqueceu do Brasil ...]. O índice per capita de homícidios com arma nos EUA é 30 vezes maior que a da Grã-Bretanha e a da Austrália, 10 vezes a da Índia e quatro vezes a da Suiça [o autor não cita a fonte de suas estatísticas e, estranhamente, o Brasil sequer é mencionado por Fareed, mas verifiquei que ele usou a relação apresentada pelo jornal inglês The Guardian em 22 de julho passado, que dá uma relação de 3,85 entre EUA e Suiça (2,97 para 0,77 homicídios por arma de fogo por 1000.000 hab., respectivamente) e mostra o Brasil com a vergonhosa e terrível taxa de 18,1 para esse tipo de homicídio, 6 vezes maior que a dos EUA)!]. Ao ser confrontado com essa diferença, um estudioso perguntaria: os EUA têm alguma causa em potencial para isso que também não encontre paralelo com outros países? Duvido que alguém sério pense que temos 30 vezes mais pessoas insanas que a Grã-Bretanha e a Austrália. Mas, efetivamente, temos muitas, muitas armas a mais.

Há 88,8 armas de fogo por cada 100 pessoas nos EUA. Em segundo lugar vem o Iêmen, com 54,8 , depois a Suiça com 45,7 e a Finlândia, com 45,3 [o Brasil aparece na lista com 8 armas de fogo por 100 hab, mas o que essas 8 armas fazem é uma barbaridade.]. Nenhum outro país apresenta taxa acima de 40. O índice americano é 70% maior do que o do país que lhe vem logo em seguida.

O efeito da crescente facilidade com que os americanos podem comprar armas cada vez mais letais também é óbvio. Nas poucas décadas passadas o crime tem estado em declínio, exceto em um tipo. Na década desde 2000, as taxas de crime violento cairam em 20%, a de assalto com agravante em 21%, roubo de veículos em 44,5% e homicídios sem arma de fogo em 22%. Mas, o número de homicídios com arma de fogo permaneceu essencialmente o mesmo. O que pode explicar essa anomalia, senão o acesso mais fácil a armas de fogo?

Quando confrontadas com essa óbvia e contundente relação de causa e efeito, pessoas normalmente inteligentes em outras situações fecham os olhos. Denunciando qualquer esforço para o controle de armas, George Will [jornalista e escritor conservador americano] afirmou no canal ABC News que tinha "uma visão trágica da vida, segundo a qual ... por mais meticuloso que você seja para redigir qualquer tipo de estatuto, e consiga fazê-lo aprovado, o mundo permanecerá um lugar conturbado e coisas como essa continuarão a acontecer" [mais fatalista e simplista, impossível ...].  Não me lembro de ter visto Will responder com esse sentimento de "as coisas acontecem" a questões como os ataques de 11 de setembro ou qualquer outro tema de lei e ordem relativo a isso.

O outro argumento contra qualquer controle sério de armas de fogo é que isso é inconstitucional, uma tentativa de anular a história americana. Na realidade, a verdade é algo próximo ao contrário disso.

Adam Winkler, um professor de direito constitucional na UCLA [sigla para Universidade da Califórnia, Los Angeles], documenta a história real em "Tiroteio: A Batalha pelo Direito de Portar Armas nos EUA". As armas de fogo foram regulamentadas nos EUA desde os primeiros anos da República. Leis que baniam o porte de armas clandestinas foram aprovadas em Kentucky e  Louisiana em 1813. Outros estados logo adotaram o mesmo procedimento: Indiana em 1820, Tennessee e Virginia em 1838, Alabama em 1839 e Ohio em 1859. Leis semelhantes foram aprovadas no Texas, na Flórida e Oklahoma. Como explicou o governador do Texas (o Texas!) em 1893, "o objetivo de uma arma letal clandestina é assassinar. Reprimí-la é o dever de todo homem com autorespeito e cumpridor da lei".   [Este parágrafo todo foi o trecho plagiado por Fareed de um ensaio feito pela jornalista Jill Lepore na revista The New Yorker, em abril deste ano. O texto de Lepore (traduzido por mim) diz: "Como Adam Winkler, um professor de direito constitucional na UCLA, demonstra em um livro recente e extraordinariamente cheio de nuances, "Tiroteio: A Batalha pelo Direito de Portar Armas nos EUA", as armas de fogo têm sido regulamentadas nos EUA desde o início. Leis banindo o porte de armas clandestinas foram aprovadas em Kentucky e Louisiana em 1813, e outros estados logo se seguiram: Indiana (1820), Tennesse e Virginia (1838), Alabama (1839) e Ohio (1859). Leis semelhantes foram aprovadas no Texas, na Flórida e em Oklahoma. Como explicou o governador do Texas em 1893, "o objetivo de uma arma letal clandestina é assassinar. Reprimí-la é o dever de todo homem com autorespeito e cumpridor da lei". Há outras semelhanças no artigo de Fareed. Quem quiser confrontar diretamente os dois textos em inglês pode fazê-lo aqui. Apanhado praticamente em flagrante, Fareed não teve outra saída a não ser desculpar-se publicamente: "Repórteres da mídia têm chamado a atenção para o fato de que parágrafos de minha coluna na Time desta semana apresentam estreita semelhança com parágrafos do ensaio de Jill Lepore na edição de 22 de abril da New Yorker. Eles estão certos. Cometi um erro terrível. É um deslize sério, e a culpa é toda minha. Me desculpo pública e abertamente com ela [Jill Lepore], com os meus editores na Time e com meus leitores". O escritor e jornalista Jim Sleeper fez uma duríssima crítica à atitude de Fareed.]

O Congresso aprovou em 1934 o primeiro conjunto de leis para regulamentar, licenciar e tributar as armas de fogo. Isso foi contestado e levado à Suprema Corte em 1939. O procurador-geral de Franklin Delano Roosevelt, Robert H. Jackson, disse que a Segunda Emenda [da Constituição americana] garante aos cidadãos um direito "que não é um direito que pode ser utilizado para objetivos particulares, mas um único que existe onde as armas são utilizadas nas milícias ou em alguma organização militar com o resguardo da lei e visando a proteção do estado". Houve a concordância unânime da Suprema Corte.

As coisas começaram a mudar nos anos 1970, quando grupos da direita se aglutinaram para contestar o controle de armas, anulando leis em assembleias legislativas estaduais, no Congresso e em tribunais. Mas, em uma entrevista após seu termo no cargo, o presidente da Suprema Corte Warren Burguer, um conservador nomeado por Richard Nixon, descreveu a nova interpretação da Segunda Emenda "como um dos maiores exemplos de fraude -- repito a palavra fraude -- que jamais vi em toda a minha vida, aplicado ao povo americano por grupos de interesse específicos e especiais".

Portanto, quando as pessoas levantarem as mãos e disserem que não podemos fazer nada com relação a armas de fogo, diga-lhes que não estão sendo americanas nem inteligentes.

[Nota da Time, anexada ao artigo: - Na sexta-feira, 10 de agosto, Fareed Zakaria emitiu o seguinte pronunciamento sobre seu artigo: "Repórteres da mídia têm chamado a atenção para o fato de que parágrafos de minha coluna na Time desta semana apresentam estreita semelhança com parágrafos do ensaio de Jill Lepore na edição de 22 de abril da New Yorker. Eles estão certos. Cometi um erro terrível. É um deslize sério, e a culpa é toda minha. Me desculpo pública e abertamente com ela [Jill Lepore], com os meus editores na Time e com meus leitores".

Desde então, a Time emitiu seu próprio comunicado: "A Time aceita as desculpas de Fareed, mas o que ele fez viola nossas próprias normas para nossos colunistas, segundo as quais seu trabalho tem que ser não apenas factual mas original; suas opiniões têm que ser não apenas deles próprios, mas suas palavras também. Como consequência, estamos suspendendo a coluna de Fareed por um mês, até posterior análise". 


Fareed Zakaria, o plagiador - (Foto: Charles Sykes/AP).

Jill Lepore, a plagiada - (Foto: Google).



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