No art. 5°, inciso LVIII, da Constituição Federal está consagrado o princípio de presunção (ou estado) de inocência, assim caracterizado: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória". Inovador como poucos países no mundo, o Brasil criou, por prática e consenso, no Congresso Nacional o princípio de presunção (ou estado) de pilantragem -- temos nas duas casas do nosso Poder Legislativo numerosos, reiterados e reincidentes casos de congressistas que se têm destacado por um comportamento sistematicamente amoral e/ou aético, cidadãos indiciados por crimes diversos que são protegidos quase que única e exclusivamente pela extrema e irritante lentidão de nossa Justiça. A mais recente (e, certamente, jamais a última) demonstração disso é a composição simplesmente bizarra (p'ra dizer o mínimo) do Conselho de "Ética" (as aspas são minhas) do Senado, em que foram colocados ou reconduzidos membros que têm mais que o rabo preso em matéria de ética. -- Mesmo correndo o risco de ter uma postagem de texto um tanto ou quanto longo, reproduzo a seguir o trecho da coluna de Dora Kramer "Conceito de Ética", publicada no Estadão de ontem, referente a esse assunto.
Conceito de ética -- Dora Kramer
Seria impreciso dizer que o Senado chegou ao fundo do poço quando decidiu constituir um Conselho de Ética ao arrepio do decoro indispensável à atividade parlamentar. Isso porque o poço em que o Poder Legislativo resolveu já há algum tempo jogar sua credibilidade parece não ter fundo.
Entra ano, sai ano, entra escândalo, sai escândalo, os acontecimentos bizarros não têm fim, medida nem limites.
A presença de oito processados na Justiça entre os 15 titulares do conselho soa como uma contradição em termos. Agride à lógica da vida normal, mas está absolutamente de acordo com as regras do Congresso.
Mais: compõe perfeitamente o cenário da degradação. Todos os integrantes do conselho destinado a zelar pela ética na Casa são tão senadores quanto qualquer outro. A partir do momento em que seus pares não impuseram reparos a condutas julgadas no passado e os eleitores lhes confiaram delegação, podem participar de todas as atividades sem restrição.
A questão não é o que Renan Calheiros, que trocou a renúncia à presidência do Senado pela absolvição em processos por quebra de decoro, ou Gim Argello, investigado pela Polícia Federal e obrigado recentemente a renunciar à relatoria do Orçamento da União por suspeita de desvios na distribuição de emendas, estão fazendo no Conselho de Ética.
A pergunta correta é o que esses e outros estão fazendo no Senado e o que o Senado faz consigo ao, entre outras façanhas, reconduzir à presidência da Casa José Sarney e seu manancial de escândalos, cuja mais recente leva data de dois anos atrás.
Esse episódio do conselho ganhou repercussão, é tratado como um grande problema, mas é apenas parte do infortúnio que assola o Parlamento e, em boa medida, a sociedade que não exerce ela mesma o voto limpo enquanto não se institui de vez a obrigatoriedade legal da ficha limpa: a indiferença à ética, ao conjunto de valores que disciplinam o comportamento humano como atributo essencial à vida civilizada. Pública ou privada.
Embora a completa ausência de pudor, ainda que em grau apenas suficiente para a manutenção das aparências em colegiado presumidamente ético, fira os espíritos mais sensíveis, não se configura uma novidade em face da revogação geral de quaisquer valores balizadores de condutas.
Em ambiente onde um senador pode roubar um gravador - como fez Roberto Requião ao surrupiar o equipamento pertencente à rádio Bandeirantes e apagar do cartão de memória uma entrevista que não lhe interessava ver divulgada - e ainda assim ser defendido pelo presidente da Casa, não há poço que seja fundo o bastante para delimitar a fronteira entre a civilidade de fachada e a selvageria total.
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