O circo, essa deliciosa instituição milenar que tem alegrado gerações infindáveis através dos séculos, ganhou há 52 anos em Brasília, pelas mãos de Oscar Niemayer, uma versão futurista e arrojada com a construção do complexo do Congresso Nacional. Em dois picadeiros que, juntos, abrigam quase seiscentas pessoas (só na arena), essa versão em concreto, só destrutível por um gesto de extrema violência da Mãe Natureza, garante a perpetuidade física do circo no país. Além disso, louve-se o empenho de deputados e senadores que, com seus diversificados dotes culturais e cênicos, suprem o indispensável lado humano dessa instituição, garantindo ao Brasil um lugar vitalício no cenário internacional do circo. Chega a ser comovente o empenho com que deputados e senadores se revezam para propiciar aos brasileiros cenas inesquecíveis que, sem jamais embaçá-la, lembram a figura imortal do palhaço Piolim.
A contribuição mais recente dessa trupe vem da Câmara dos Deputados, e está relatada na revista Piauí (cuja leitura recomendo fortemente a quem se interessar pelo mosaico cultural brasileiro) n° 66, que está nas bancas, em saboroso artigo de Plínio Fraga, intitulado "Filósofos do PAC", que reproduzo a seguir.
O que têm em comum João Havelange, Carlos Alberto Torres, Bernardo
Cabral, Michel Temer e Ellen Gracie? O ex-presidente da Fifa, o capitão
da seleção tricampeã em 1970, o ex-ministro da Justiça de Collor, o
atual vice-presidente da República e a ex-presidente do STF foram,
todos, agraciados com o título de doutor honoris causa pela
Academia Brasileira de Filosofia. Também foram homenageados pela mesma
instituição os ministros Edison Lobão, José Eduardo Cardozo e Alexandre
Padilha, e o presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia. Mas estes
receberam uma distinção menor – o título de “membros honoris causa” tout court,
sem o grau de doutor. Pelos critérios insondáveis da Academia, Temer
filosofa melhor que Lobão, e o boleiro Carlos Alberto ocupa um lugar
mais elevado entre os herdeiros de Sócrates (o filósofo) do que o
ministro da Saúde.
Mas não é só. Por obra da Academia, tramita no Congresso um projeto de
lei – número 2533/11 – proposto pelo deputado federal Giovani Cherini,
do PDT gaúcho, que pretende regulamentar a profissão de filósofo no
Brasil. Se for aprovado, grandes obras, como a transposição das águas do
São Francisco, o trem-bala Rio–São Paulo ou a modernização do Maracanã,
podem mobilizar não apenas arquitetos, engenheiros, advogados e outros
especialistas, mas também... filósofos.
Em seu artigo terceiro, o projeto de lei afirma que órgãos públicos e
entidades privadas, “quando encarregados da elaboração e execução de
planos, estudos, programas e projetos socioeconômicos ao nível global,
regional ou setorial, manterão, em caráter permanente ou enquanto
perdurar a referida atividade, filósofos legalmente habilitados em seu
quadro de pessoal ou em regime de contrato para prestação de serviços”. O
mesmo projeto define a Academia Brasileira de Filosofia, fundada em
1989 e sediada no Rio de Janeiro, como “a representante da filosofia e
língua filosófica nacionais”.
A entidade é presidida por João Ricardo Moderno, 58 anos, artista
plástico e fotógrafo – sem carteirinha. “Fui eu que escrevi o projeto de
lei”, assumiu Moderno, sem nenhum constrangimento. “Na realidade, nem
escrevi. Só copiei a regulamentação da profissão de sociólogo,
sancionada pelo presidente João Figueiredo em 1981. Como já somos
parceiros do deputado Cherini na comissão de Meio Ambiente da Câmara,
ele se dispôs a apresentar como seu o projeto por mim redigido.” Em seu
currículo, Moderno se define como militante dos movimentos de vanguarda
da arte brasileira.
A regulamentação da profissão de filósofo pode ser aprovada com o voto
de apenas algumas dezenas de parlamentares. A Constituição confere poder
às comissões do Congresso Nacional para que elas apreciem – em alguns
casos, com poder decisivo – projetos de lei em substituição ao plenário
da Câmara e do Senado.
Quando tomou conhecimento do projeto, o professor emérito da Universidade
de São Paulo José Arthur Giannotti gargalhou: “É um absurdo. O Brasil
não é mais o país da piada pronta, é a própria piada.” Renato Janine
Ribeiro, professor titular de ética e filosofia política na mesma USP,
tampouco viu sentido na proposta. “Regulamentar a profissão de filósofo,
um pensador, é como regulamentar a profissão de poeta ou romancista.
Não precisa regulamentar para aqueles que querem lecionar filosofia
porque o Ministério da Educação já o faz por uma simples portaria”,
disse.
Giannotti e Janine Ribeiro estão entre os 1 706 signatários de uma
petição de repúdio ao projeto, lançada pela Associação Nacional de
Pós-Graduação em Filosofia. “Cursos de filosofia formam professores de
filosofia, que podem ou não ser filósofos”, afirma a carta aberta
divulgada pela Associação. “Assim também, cursos de literatura formam
professores de literatura, que podem ou não ser literatos. Finalmente,
há filósofos e literatos sem titulação acadêmica".
A carta ironiza ainda a entidade que está por trás do projeto.
“Causa-nos estranheza a prerrogativa que o projeto pretende dar à
Academia Brasileira de Filosofia, que qualifica como filósofos João
Havelange e Carlos Alberto Torres, capitão da Seleção de futebol de
1970. Trata-se de uma associação absolutamente inexpressiva no que
concerne aos estudos, projetos de pesquisa e ensino da filosofia em
nível universitário".
A Academia Brasileira de Filosofia funciona na Casa de Osório, um prédio
tombado pelo patrimônio histórico nacional na rua do Riachuelo, região
central do Rio. Ali residiu e morreu o marechal Manuel Luís Osório,
herói militar do Império. A entidade vive de doações e eventos para
cobrir seus custos de 8 mil reais ao mês. Em sua página na internet,
informa que seu espaço pode ser alugado para “festas, reuniões,
coquetéis, formaturas, palestras, seminários, eventos de empresas,
desfiles em geral, aniversários de 15 anos, casamentos”.
O presidente da Academia foi rápido e sincero ao responder sobre a
importância que pode ter um filósofo em obras como a transposição do rio
São Francisco: “Não sei.” Refletindo um pouco mais, Moderno disse o que
um discípulo de Platão poderia agregar às obras: “Maior racionalidade,
logicidade às ações.” E explicou: “Engenheiro entende de obra, mas
muitas vezes não sabe lidar com questões de ordem moral, porque não tem
conhecimento de filosofia, ética. Nas coisas imateriais, na discussão
conceitual de natureza ética, o filósofo pode ser muito importante.” E
arrematou: “Um filósofo ligado à estética pode ajudar no embelezamento
da obra.” Nem Adorno tinha pensado nessa função decorativa da profissão.
Transpondo as fronteiras nacionais, Moderno protocolou uma carta em Oslo
propondo a candidatura de João Havelange ao Prêmio Nobel da Paz.
“Existe alguém que fez mais pela paz do que ele?”, pergunta Moderno,
citando como exemplo “o apoio à expansão do esporte pelo mundo e em
especial pela África”.
Havelange é acusado de receber dinheiro ilegal de empresas que
negociavam com a Fifa, o que ele nega. Questionado se a denúncia não
poderia macular a integridade ética do candidato ao Nobel, o acadêmico
filosofa: “Dizem que ele teria recebido 1 milhão de dólares de propina.
Você acha que Havelange, um homem que já é rico, se sujaria por tão
pouco?”
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