quinta-feira, 15 de março de 2012

Palhaçadas de deputados garantem vida longa para o circo no Brasil

O circo, essa deliciosa instituição milenar que tem alegrado gerações infindáveis através dos séculos, ganhou há 52 anos em Brasília, pelas mãos de Oscar Niemayer, uma versão futurista e arrojada com a construção do complexo do Congresso Nacional. Em dois picadeiros que, juntos, abrigam quase seiscentas pessoas (só na arena), essa versão em concreto, só destrutível por um gesto de extrema violência da Mãe Natureza, garante a perpetuidade física do circo no país. Além disso, louve-se o empenho de deputados e senadores que, com seus diversificados dotes culturais e cênicos, suprem o indispensável lado humano dessa instituição, garantindo ao Brasil um lugar vitalício no cenário internacional do circo. Chega a ser comovente o empenho com que deputados e senadores se revezam para propiciar aos brasileiros cenas inesquecíveis que, sem jamais embaçá-la, lembram a figura imortal do palhaço Piolim.

A contribuição mais recente dessa trupe vem da Câmara dos Deputados, e está relatada na revista Piauí (cuja leitura recomendo fortemente a quem se interessar pelo mosaico cultural brasileiro) n° 66, que está nas bancas, em saboroso artigo de Plínio Fraga, intitulado "Filósofos do PAC", que reproduzo a seguir.

O que têm em comum João Havelange, Carlos Alberto Torres, Bernardo Cabral, Michel Temer e Ellen Gracie? O ex-presidente da Fifa, o capitão da seleção tricampeã em 1970, o ex-ministro da Justiça de Collor, o atual vice-presidente da República e a ex-presidente do STF foram, todos, agraciados com o título de doutor honoris causa pela Academia Brasileira de Filosofia. Também foram homenageados pela mesma instituição os ministros Edison Lobão, José Eduardo Cardozo e Alexandre Padilha, e o presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia. Mas estes receberam uma distinção menor – o título de “membros honoris causatout court, sem o grau de doutor. Pelos critérios insondáveis da Academia, Temer filosofa melhor que Lobão, e o boleiro Carlos Alberto ocupa um lugar mais elevado entre os herdeiros de Sócrates (o filósofo) do que o ministro da Saúde.

Mas não é só. Por obra da Academia, tramita no Congresso um projeto de lei – número 2533/11 – proposto pelo deputado federal Giovani Cherini, do PDT gaúcho, que pretende regulamentar a profissão de filósofo no Brasil. Se for aprovado, grandes obras, como a transposição das águas do São Francisco, o trem-bala Rio–São Paulo ou a modernização do Maracanã, podem mobilizar não apenas arquitetos, engenheiros, advogados e outros especialistas, mas também... filósofos.

Em seu artigo terceiro, o projeto de lei afirma que órgãos públicos e entidades privadas, “quando encarregados da elaboração e execução de planos, estudos, programas e projetos socioeconômicos ao nível global, regional ou setorial, manterão, em caráter permanente ou enquanto perdurar a referida atividade, filósofos legalmente habilitados em seu quadro de pessoal ou em regime de contrato para prestação de serviços”. O mesmo projeto define a Academia Brasileira de Filosofia, fundada em 1989 e sediada no Rio de Janeiro, como “a representante da filosofia e língua filosófica nacionais”.

A entidade é presidida por João Ricardo Moderno, 58 anos, artista plástico e fotógrafo – sem carteirinha. “Fui eu que escrevi o projeto de lei”, assumiu Moderno, sem nenhum constrangimento. “Na realidade, nem escrevi. Só copiei a regulamentação da profissão de sociólogo, sancionada pelo presidente João Figueiredo em 1981. Como já somos parceiros do deputado Cherini na comissão de Meio Ambiente da Câmara, ele se dispôs a apresentar como seu o projeto por mim redigido.” Em seu currículo, Moderno se define como militante dos movimentos de vanguarda da arte brasileira.

A regulamentação da profissão de filósofo pode ser aprovada com o voto de apenas algumas dezenas de parlamentares. A Constituição confere poder às comissões do Congresso Nacional para que elas apreciem – em alguns casos, com poder decisivo – projetos de lei em substituição ao plenário da Câmara e do Senado.

Quando tomou conhecimento do projeto, o professor emérito da Universidade de São Paulo José Arthur Giannotti gargalhou: “É um absurdo. O Brasil não é mais o país da piada pronta, é a própria piada.” Renato Janine Ribeiro, professor titular de ética e filosofia política na mesma USP, tampouco viu sentido na proposta. “Regulamentar a profissão de filósofo, um pensador, é como regulamentar a profissão de poeta ou romancista. Não precisa regulamentar para aqueles que querem lecionar filosofia porque o Ministério da Educação já o faz por uma simples portaria”, disse.

Giannotti e Janine Ribeiro estão entre os 1 706 signatários de uma petição de repúdio ao projeto, lançada pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia. “Cursos de filosofia formam professores de filosofia, que podem ou não ser filósofos”, afirma a carta aberta divulgada pela Associação. “Assim também, cursos de literatura formam professores de literatura, que podem ou não ser literatos. Finalmente, há filósofos e literatos sem titulação acadêmica".

A carta ironiza ainda a entidade que está por trás do projeto. “Causa-nos estranheza a prerrogativa que o projeto pretende dar à Academia Brasileira de Filosofia, que qualifica como filósofos João Havelange e Carlos Alberto Torres, capitão da Seleção de futebol de 1970. Trata-se de uma associação absolutamente inexpressiva no que concerne aos estudos, projetos de pesquisa e ensino da filosofia em nível universitário".

A Academia Brasileira de Filosofia funciona na Casa de Osório, um prédio tombado pelo patrimônio histórico nacional na rua do Riachuelo, região central do Rio. Ali residiu e morreu o marechal Manuel Luís Osório, herói militar do Império. A entidade vive de doações e eventos para cobrir seus custos de 8 mil reais ao mês. Em sua página na internet, informa que seu espaço pode ser alugado para “festas, reuniões, coquetéis, formaturas, palestras, seminários, eventos de empresas, desfiles em geral, aniversários de 15 anos, casamentos”.

O presidente da Academia foi rápido e sincero ao responder sobre a importância que pode ter um filósofo em obras como a transposição do rio São Francisco: “Não sei.” Refletindo um pouco mais, Moderno disse o que um discípulo de Platão poderia agregar às obras: “Maior racionalidade, logicidade às ações.” E explicou: “Engenheiro entende de obra, mas muitas vezes não sabe lidar com questões de ordem moral, porque não tem conhecimento de filosofia, ética. Nas coisas imateriais, na discussão conceitual de natureza ética, o filósofo pode ser muito importante.” E arrematou: “Um filósofo ligado à estética pode ajudar no embelezamento da obra.” Nem Adorno tinha pensado nessa função decorativa da profissão.

Transpondo as fronteiras nacionais, Moderno protocolou uma carta em Oslo propondo a candidatura de João Havelange ao Prêmio Nobel da Paz. “Existe alguém que fez mais pela paz do que ele?”, pergunta Moderno, citando como exemplo “o apoio à expansão do esporte pelo mundo e em especial pela África”.

Havelange é acusado de receber dinheiro ilegal de empresas que negociavam com a Fifa, o que ele nega. Questionado se a denúncia não poderia macular a integridade ética do candidato ao Nobel, o acadêmico filosofa: “Dizem que ele teria recebido 1 milhão de dólares de propina. Você acha que Havelange, um homem que já é rico, se sujaria por tão pouco?” 

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