sábado, 24 de março de 2012

Os espermatozoides sabem calcular

 [O texto traduzido a seguir é de Pierre Barthélémy, responsável pelo blogue Passeur de Sciences -- "Barqueiro da Ciência", em tradução literal, ou "Vetor da ciência", em tradução livre -- do jornal francês Le Monde, publicado em 22/3/12.]

Se, na natureza, existem verdadeiros mísseis de ogiva rastreadora, este é bem o caso dos espermatozoides. Alvo: o óvulo. Muitos são "convocados", mas só um eleito ... ou simplesmente nenhum. No corpo humano, seu caminho é todo planejado  e se parece com o percurso de um combatente, como escrevi em um blogue anterior ("Por que os homens produzem tantos espermatozoides?"): "As células masculinas da reprodução têm de enfrentar o meio ácido da vagina, o labirinto mortal do colo do útero, os glóbulos brancos femininos, não se perder no caminho nem gastar muita energia, chegar à trompa de Falópio certa no tempo certo e, sobretudo, ter sorte". No corpo de uma espécie bem diferente, como o do ouriço do mar Arbacia punctulata, que há um século serve de modelo para os estudos de embriogênese e dos espermatozoides, a rota é menos balizada porque esses animais liberam seus gametas na água do mar. Isso acontece aleatoriamente? Não completamente.

Nos dois casos, tanto no corpo humano como no do equinodermo, cada espermatozoide nada na direção de seu alvo agitando seu flagelo [espécie de "cauda" ondulante, um filamento móvel, que serve como seu órgão locomotor]. Os gametas masculinos seguem assim, muitas vezes, uma trajetória mais ou menos helicoidal. Na realidade, o flagelo não serve apenas como órgão propulsor:  trata-se também de uma antena que capta os indícios químicos liberados pelo óvulo, que sinaliza assim a sua presença. Esses produtos químicos, ao aderirem aos receptores localizados na superfície do flagelo, dão início a uma cascata de reações bioquímicas que levam a um pico de íons de cálcio no flagelo e aos movimentos desse "mini-leme". O "x" da questão é saber como o espermatozoide é informado da direção a ser tomada. Durante muito tempo os biólogos pensaram que o gameta se deslocava em linha reta enquanto a taxa de cálcio fosse baixa e que ele se punha a rodopiar ou girar, uma excelente maneira de "esquadrinhar o terreno" e se precipitar sobre o óvulo, gerando o ovo [ou zigoto]. Mas, as observações contrariaram essa teoria: o espermatozoide poderia também girar no primeiro caso, e seguir em linha reta no segundo ...

Uma equipe internacional acaba de resolver em grande parte o mistério,  e relatou sua descoberta em um estudo publicado no The Journal of Cell Biology. Para chegar a isso recorreram a uma astúcia, mergulhando os espermatozoides do Arbacia punctulata em um meio em que haviam colocado os famosos sinais químicos de maneira sutil: as moléculas não estavam acessíveis livremente, mas encapsuladas em recipientes que só se dissolviam sob o efeito da luz. Iluminando esse dispositivo, os pesquisadores podiam liberar essas substâncias à sua vontade e, em seguida, acompanhar o comportamento e a trajetória dos espermatozoides em função da maior ou menor concentração de sinais [químicos] no ambiente, medindo o tempo todo, graças a um marcador fluorescente, a taxa de cálcio nos flagelos.

Essa equipe teve assim a surpresa de verificar que, efetivamente, não era a concentração de cálcio que colocava o espermatozoide no modo "eu turbilhono porque sinto que o óvulo não está longe", mas sim a taxa de variação da concentração que o fazia movimentar-se na direção certa. Isso parecia simples, mas significava algo espantoso: os gametas masculinos são capazes de calcular derivadas (o que os jovens franceses não fazem no ginásio) em um tempo extremamente curto, já que as reações dos espermatozoides são da ordem do segundo, ou mesmo menos. É a partir do resultado desses cálculos que eles alteram ou não sua trajetória. Um resultado que foi confirmado em duas outras espécies de ouriço, e na ciona intestinalis, um outro animal marinho.

Como acontece muitas vezes na ciência, resolver uma questão gera outras: com que mecanismo os flagelos efetuam esse cálculo? Os autores do estudo levantaram a hipótese de que os íons de cálcio, que servem de mensageiros da informação no flagelo, são detetados em velocidades diferentes por duas proteínas, uma rápida e outra mais lenta. Entre as duas detecções o espermatozoide traça seu caminho, e é comparando as taxas de cálcio nesses dois captores que ele "saberá" se está na direção certa ou se é preciso mudar de rumo. Os pesquisadores se perguntam também se o fenômeno se dá igualmente com os espermatozoides dos mamíferos. A mesma indagação se aplica aos micronadadores dotados de flagelos ou cílios vibráteis, com é o caso de algumas algas verdes, de espécies de zooplâncton ou ainda dos paramécios. Um dos autores do estudo, Luis Alvarez, que trabalha no Caesar (sigla inglesa para Centro Europeu de Estudos e Pesquisas Avançados), me fez observar que, de uma maneira mais geral, "os cílios estão presentes por todo lugar, e notadamente no corpo humano: eles limpam nossas vias respiratórias, eles fazem a diferença entre a esquerda e a direita do nosso corpo quando da embriogênese -- o que, por exemplo, ajuda nosso coração a estar no lugar certo. Os cílios também empurram o óvulo nas trompas de Falópio, e têm inúmeras outras funções. Posso perfeitamente imaginar que esse tipo de cálculo, em resposta a estímulos, esteja também presente em alguns desses cílios".

Um espermatozoide - (Foto: Le Monde).

Um comentário:

  1. Vasco
    Você está se tornando um grande pesquisador,ou melhor, um grande "garimpeiro" de notícias e artigos excêntricos (quiçá eróticos).
    Um artigo que discorre sobre pesquisas de espermatozoides calculistas!
    Isto me reporta aos tempos de faculdade onde aprendíamos Calculo I e II e imagino tudo aquilo nas cabeças dos pobres espermatozóides, quase sempre expelidos sem esta intenção, coitados...
    Gostei muito do artigo e vou mantê-lo registrado em minhas memórias, pessoal e de meus computadores.
    Grande abraço
    Cupolillo

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