domingo, 7 de outubro de 2012

O documentário que deve envergonhar todo israelense decente

[O texto traduzido abaixo é da autoria de Gideon Levy e foi publicado no dia 05/10 no  jornal israelense Haaretz. É um libelo israelense contra o que Israel está fazendo na margem esquerda do rio Jordão. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.] 

Não há momentos de alívio no documentário "5 Broken Cameras" [5 Câmeras Quebradas", em tradução literal] feito por Emad Burnat e Guy Davidi, que relata o conflito e a luta na cidadezinha palestina de Bil'in, na margem esquerda [do rio Jordão].
A margem esquerda do rio Jordão (em verde), ocupada por Israel - (Fonte: Google).

Os soldados chegam na calada da noite. Eles chutam, agridem violentamente e destroem. Arrombam a casa, acordando todos que lá estão, incluindo crianças e bebês. Um oficial puxa um documento minucioso e diz: "Esta casa é declarada 'zona militar fechada'". Ele lê a ordem -- em hebreu e em voz alta -- para a família atordoada, vestida com roupa de dormir. Esse jovem completou com sucesso seu treinamento de oficial. Talvez ele até acredite, profundamente, que alguém tem que fazer esse trabalho sujo. E lê a ordem em voz alta apenas para justificar porquê o chefe da família, Emad Burnat, está proibido de filmar o que acontece com sua própria câmera de vídeo.

Não há momentos de trégua e alívio no documentário investigativo "5 Broken Cameras", que foi apresentado, entre outros locais, na Cinemateca de Tel Aviv na semana passada, depois de receber vários prêmios internacionais e ser mostrado no Canal 8. Esse documentário deve fazer todo israelense decente envergonhar-se de ser um israelense. Ele deveria ser mostrado em aulas de cidadania (civics classes) e de herança cultural (heritage classes). Os israelenses, afinal, deveriam saber o que está sendo feito em seu nome cada dia e cada noite nesta época sem terrorismo ostensivo. Mesmo numa cidadezinha da margem esquerda como Bil'in, que fez da não violência o seu lema.

Os soldados -- amigos de nossos filhos e filhos de nossos amigos -- arrombam e invadem casas para sequestrar crianças pequenas, suspeitas de atirar pedras. Não há como descrever isso. Prendem também dezenas de organizadores dos protestos populares semanais em Bil'in. E isso acontece toda e cada noite.

Tenho estado frequentemente nesse vilarejo, em seus protestos e em seus enterros. Uma ou duas vezes juntei-me aos seus protestos das sextas-feiras contra a cerca de separação construída em seu território [alguma semelhança com o muro de Berlim?...], para permitir que [as cidades israelenses de] Modi'in Ilit e Kyriat Sefer cresçam sobre seus olivais. Cheirei gás lacrimogênio e o fedorento gás "gambá". Vi as balas de borracha, que ferem e às vezes matam, e o comportamento violento dos soldados e da polícia contra os manifestantes.

Ainda assim, no entanto, o que vi nesse filme me chocou mais do que tudo [o que vi] nessas rápidas visitas. Os prédios de apartamentos de Modi'in estão engolindo, destruindo o vilarejo, exatamente como o muro que foi construído em suas terras. Os habitantes decidiram entrar em luta por suas propriedades e suas existências. Com um misto de ingenuidade, determinação e coragem -- e, de vez em quando, com algum teatralismo exagerado -- os habitantes utilizam vários truques e estratagemas, com o auxílio de muitos israelenses e voluntários internacionais.

Essa luta conseguiu até uma vitória parcial: apenas no seu surgimento é que a Alta Corte de Justiça determinou a demolição do muro e sua transferência para outro lugar [por que a Justiça israelense manteve o muro, ainda assim?!]. Mesmo a Alta Corte, que geralmente aceita automaticamente as posições do sistema de segurança [do Estado], compreendeu que havia um crime sendo cometido aqui. Junto com Bil'in, e em grande parte inspiradas por ela, mais cidades começaram a fazer às sextas-feiras uma luta determinada -- que continua até hoje -- contra o muro, a meia hora de carro de nossas casas.

Esse documentário prova que, para os habitantes locais, não existe a chamada luta não violenta. Para ciência daqueles que pregam a não violência (pelos palestinos): os soldados das Forças de Defesa e da Polícia de Fronteira de Israel irão garantir que isso se  torne violento. Apenas uma pedra atirada, apesar dos pedidos [contra isso] dos organizadores das demonstrações, será suficiente; apenas uma discussão verbal será igualmente suficiente para abrir o arsenal de armas mais avançadas do mundo  -- para puxar o pino, liberar o gás, a bala de borracha e o gás de gambá -- e, algumas vezes, armas de fogo reais, para eliminar o sonho impossível de uma luta sem violência. Qualquer um que veja esse filme compreenderá que é muito difícil enfrentar o muro, o projeto de assentamento e os soldados -- todos gritando "violência"-- e permanecer não violento. É quase impossível.

Em cinco vezes as câmeras de Burnat foram destruídas. Três vezes por soldados, uma vez em um acidente de trânsito em frente ao muro separatório e uma vez pelos assentados israelenses, ultraortodoxos e violentos -- a "juventude do topo da colina" ["hilltop youth", em tradução livre] -- que invadem casas, mesmo que isso seja proibido pela Justiça. "Você não tem permissão para estar aqui", diz um assentado ultraortodoxo a um morador local que tenta chegar à terra que lhe foi roubada. A verdade é que as câmeras de Burnat foram danificadas muito mais vezes, o filme retrata apenas aquelas em que o equipamento ficou completamente inutilizado.

Mas, algo mais profundo quebrou-se aqui. Uma realidade foi devassada pelas câmeras quebradas. Essas câmeras documentaram uma realidade que não é familiar à maioria dos israelenses. Documentaram uma fatia da vida da qual a maioria dos israelenses prefere não ter consciência. Fazendo isso, elas provaram também que, em um local em que dificilmente qualquer jornalista corajoso permanece, há pelo menos documentários corajosos e impressionantes.   [...] Qualquer um  que quiser saber o que estava acontecendo aqui durante essas décadas malditas dificilmente encontrará o que procura nos arquivos de jornais e televisões. Ele o encontrará no arquivo de filmes documentários, que estão resgatando a honra de Israel.

[...] Entretanto, o que é tão estarrecedor no filme não é a rotina de morte, letal. Aqueles que nele destruíram as câmeras são destruidores da lei e da democracia. O primeiro ministro Benjamin Netanyahu, que tem se gabado de quão isento e compreensivo é Israel, aparentemente não viu esse filme. Caso contrário, ele não seria capaz de falar dessa maneira. [...] Qualquer um que souber do que está acontecendo em Bil'in e outros vilarejos entenderá que um Estado que se comporta dessa maneira não pode ser considerado democrático, compreensivo e isento.  Alguém tem que fazer com que Netanyahu veja esse filme, assim ele compreenderá o que está acontecendo. 

[...] A cerca de segurança foi substituída por um muro de concreto alto, mas este foi deslocado várias centenas de metros para o oeste. Atrás dele, guindastes continuam a construir Kyriat Sefer (também conhecida como Dvir). Na faixa de terra liberada, já se está construindo um minúsculo playground para as crianças do vilarejo. Apenas os restos de pneus queimados e dezenas de fragmentos de invólucros de bombas de gás das Forças de Defesa de Israel  sobre o chão, resultantes das demonstrações semanais que aqui acontecem, testemunham que a luta não terminou. Ela não foi ainda completamente bem sucedida, mas se houvesse alguma justiça já teria sido.


Um comentário:

  1. Baixar o Documentário - Cinco Câmeras Quebradas - http://mcaf.ee/6rjba

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