[O artigo traduzido abaixo foi publicado no dia 30/3, no jornal espanhol El País. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]
A estabilidade democrática e a prosperidade econômica da América Latina nas últimas duas décadas permitiram que ela deixasse de ser considerada o "quintal" dos Estados Unidos. Boa parte dessa pujança econômica se deve à crescente presença comercial da China nos países da região. O paulatino impulso do gigante asiático nessa área pode ameaçar a relação privilegiada que os EUA ainda mantêm com seus vizinhos do sul -- os americanos, aparentemente, só parecem preocupados com que essa expansão comercial não ultrapasse as fronteiras políticas.
"A economia crescente do país asiático o obriga a buscar novos mercados, uma necessidade que também é compartilhada pela América Latina, pelos mesmos motivos. Isso é bom para a região e, portanto, também é bom para os EUA", observa Daniel P. Erikson, assessor do Escritório para o Ocidente do Departamento de Estado. A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) estima que em 2015 a China substituirá a União Europeia (UE) como segundo principal investidor na América Latina, abaixo dos EUA. A força econômica da China teve um impacto profundo nos países da região. Esse país asiático é o principal parceiro comercial de Brasil, Chile e Peru, e o segundo destino das exportações de Argentina, Costa Rica e Cuba, segundo a CEPAL.
A China não apenas está reduzindo o protagonismo econômico dos EUA no hemisfério sul do continente americano -- ela passou a ser o principal parceiro comercial de muitos desses países -- como também está ganhando a batalha da percepção de seu peso na região. Segundo um estudo do Barômetro das Américas, elaborado pela Universidade de Vanderbilt, e o Projeto de Opinião Pública da América Latina, 68,2% dos cidadãos da América Latina e do Caribe consideram que a influência do gigante asiático na zona é positiva, enquanto que apenas 62,2% dizem o mesmo em relação aos EUA. Além disso, um de cada cinco entrevistados considera que a China já é o país mais influente, à frente de Japão, Índia e EUA.
Liu Kang, professor de Estudos Culturais Chineses do Departamento de Estudos Asiáticos e diretor do Centro de Pesquisas sobre a China da Universidade de Duke (EUA), justifica essa impressão positiva pela "diplomacia pragmática" que o governo chinês optou por desenvolver na região. "O investimento da China na América Latina não está baseado na ideologia, essa política de não intervenção demonstrou-se mais eficaz que a desenvolvida no Oriente Médio ou na África, que suscitou muito mais controvérsia". Kang ressalta, como exemplo dessa falta de implicação política, que as relações comerciais chinesas já não se condicionam ao reconhecimento ou não de Taiwan por parte de alguns países da região [esse professor certamente é de origem chinesa e se deixa levar um pouco demais pelos olhos do coração -- é evidente e natural que a presença comercial chinesa no mundo seja parte de uma estratégia geopolítica de poder, como acontece com os EUA, o Reino Unido, etc, com a forte diferença de que a economia chinesa é predominantemente estatal e altamente centralizada. O Estado está por trás de tudo -- basta ver, por exemplo, a guerra da União Europeia contra os fabricantes chineses de painéis fotovoltaicos suspeitos de serem deslealmente subsidiados pelo governo chinês, o dumping nos preços de tudo que a China vende, etc -- o Brasil, por exemplo, questionou na Organização Mundial do Comércio (OMC) os maciços subsídios ilegais do governo chinês para seus diversos setores industriais e agrícolas.]
As estatísticas ajudam a ilustrar o impacto transformador da presença chinesa na América Latina. De acordo com o Ministério de Comércio chinês, a região é o segundo destino de investimentos do país depois da Ásia. Em 2000, Pequim investiu US$ 10 bilhões na região, em 2009 foram US$ 100 bilhões, e dois anos mais tarde, em 2011, superavam os US$ 245 bilhões de acordo com o Centro Woodrow Wilson. Esses investimentos foram determinantes para que a América Latina evitasse o impacto da recessão econômica de 2009. Nesse ano, as exportações da região para os EUA e a Europa diminuiram em 26% e 28%, respectivamente, ao passo que as destinadas à China aumentaram em 5%.
Os EUA abordam também de maneira empírica o peso crescente da China no continente americano. Washington, entretanto, alerta sobre as práticas comerciais da China, as condições de seu mercado de trabalho -- com uma mão de obra mais barata que permite baixar os custos de produção -- e a falta de garantias em relação aos direitos humanos como fatores que favorecem as relações comerciais dos países emergentes da região mais com os EUA, por suas afinidades político-econômicas, que com Pequim.
Essa linha de pensamento poderia explicar porque Brasil, Chile, Argentina ou México são os países que, apesar de terem na China um de seus principais parceiros econômicos, têm uma visão mais negativa de sua influência de acordo com o Barômetro das Américas. Do mesmo modo, apesar do inapelável êxito do modelo econômico chinês, 27,5% dos consultados preferem o sistema americano, contra 16,3% que se encantam pelo chinês, seguidos do japonês (12,4%), brasileiro (7%), venezuelano (2,1%) e mexicano (1,7%). [Apesar disso, em meados de 2011 se constatava uma crescente dependência do Brasil em relação à China, com o nosso país ajustando "passivamente" sua economia às demandas da China.]
Outro dos problemas que se esboça a médio prazo é a possível competição entre a China e os países emergentes da América Latina, como Brasil ou México. De fato, em ambos esses países já se começou a sentir a inevitável rivalidade decorrente de sua pujanças econômicas. Mauricio Mesquita Moreira, economista do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), assegurou em 2011 que a China era a "principal ameaça" para a expansão industrial do Brasil, já que ambos produzem bens similares [ver postagem anterior]. A diferença entre as políticas trabalhistas e o relacionamento de certas empresas chinesas com o meio ambiente também provocaram atritos com alguns governos latino-americanos.
A relação com o México é um sintoma da crescente rivalidade econômica entre os dois países. A China se converteu em um dos principais competidores do México no mercado americano. Em 1980, o governo mexicano começou a adotar medidas protetoras, em resposta à proliferação de produtos chineses de baixo custo dentro de suas fronteiras. A reestruturação do mercado trabalhista chinês, que resultou em um aumento salarial para os trabalhadores, permitiu o renascimento das indústrias automobilística e aeronáutica mexicanas, em competição direta com as contrapartes chinesas. Apesar de tudo, a posição do México deve ser de cautela, já que os produtos que exporta têm uma forte dependência das importações chinesas.
A dependência da economia da América Latina em relação à China é importante: para cada 1% de crescimento do PIB chinês há um crescimento de 0,4% no PIB da região, para cada 10% de crescimento chinês crescem em 25% as exportações da região para o gigante asiático. A presença da China no hemisfério sul-americano contribuiu para garantir a estabilidade econômica da região.
Ainda que vigiem para que essa influência não ultrapasse a fronteira da política, os EUA parecem aceitar no momento a expansão comercial chinesa. Desde 2006, os dois países mantêm um diálogo periódico para trocar ideias sobre a região. Desde que Barack Obama está na Casa Branca, esse fórum se reuniu em 2010 e 2012 e está prevista outra reunião no final deste 2013. A existência da Aliança Transpacífica (TPP, em inglês), da qual fazem parte Chile, EUA, Peru ou México -- China não -- ou a Aliança do Pacífico, da qual participam México, Chile, Colômbia e Peru como membros plenos -- nem China nem EUA participam -- dá uma ideia da importância dada pela América Latina às suas relações com o Pacífico Sul. [Ver postagem anterior sobre a Aliança do Pacífico.]
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