sábado, 7 de maio de 2011

O aquecimento global e o vinho (1)

Tenho visto em todas as mídias muita coisa sobre os efeitos do aquecimento global sobre a vida no planeta Terra em geral, e já fiz mais de uma postagem sobre o tema (ver, por exemplo, aqui e aqui). Não me lembro porém de ter visto nenhuma ênfase sobre tais efeitos em relação ao vinho, e como sou um apaixonado por essa bebida e, além disso, como a produção de vinho é de enorme importância econômica e cultural para vários países, resolvi pesquisar e divulgar um pouco sobre isso.

Pude verificar que é impressionante o que tem sido feito sobre esse tema e, evidentemente, é mínimo o espaço de um blogue para abrigar a abrangência desse assunto, por isso o dividirei em mais de uma postagem, sem ter a mínima pretensão de esgotar o assunto. O primeiro estudo que abordarei é um feito na França, sobre os efeitos das mudanças climáticas nos vinhos da Alsácia, região produtora de renomados vinhos brancos (ler aqui). O ponto de partida para a análise é o conceito, válido para basicamente todos os produtos agrícolas, de que as uvas são climaticamente adaptadas às regiões onde são produzidas -- embora óbvio, ele nem sempre nos vem à mente.  Na Alsácia, por exemplo, as uvas riesling, pinot gris e gewurztraminer, cepas ou castas "frias" por excelência, se desenvolvem perfeitamente no clima da região, enquanto a grenache e a syrah, cepas "quentes", são adaptadas às condições meteorológicas do sul do país.

Tendo em vista o aquecimento global, como reagirão as cepas frias face a uma temperatura crescente? Quais serão as consequências disso sobre a qualidade físico-química e organoléptica dos vinhos originários de tais uvas? Quais as soluções que devem ser visualizadas para fazer frente a essa lenta mas real alteração?

Do ponto de vista meteorológico, a Alsácia vem passando desde 1972 por um aumento médio de temperatura de 0,06˚C/ano. Segundo Eric Duchêne, pesquisador do Inra (Instituto Nacional de Pesquisa Agrícola, em francês) de Colmar, nesse ritmo a cidade de Colmar em 2030 terá um perfil de temperatura semelhante ao de Lyon hoje e, em 2060, ao de Montpellier. Se olharmos o mapa da França, são significativas as distâncias geográficas dessas cidades em relação a Colmar. As rielings, pinots gris e gewurztraminers vão progressivamente perder sua tipicidade, e seu perfil aromático será alterado de maneira "singular" (as aspas são minhas). As rieslings, por exemplo, poderiam perder sua característica floral e apresentar bem rápido um gosto pronunciado de hidrocarbonetos.

Essa degradação qualitativa obviamente não afetará apenas a Alsácia, todas as regiões vinícolas do mundo passarão pelo mesmo problema. Pesquisadores americanos das universidades de Oregon, de Utah, do Colorado e de Connecticut apresentaram um estudo em 2005 mostrando a relação entre a mudança climática e a qualidade dos vinhos em escala mundial. Partindo da hipótese de que condições climáticas benéficas são favoráveis à qualidade de um vinho, e que esta qualidade pode ser avaliada pelas notas de degustação dos vinhos, os autores do estudo compararam, ano a ano, as notas atribuídas pela Sotheby's com a média das temperaturas medidas durante o período de crescimentos das vinhas correspondentes.

Quer seja na Alsácia, em Bordeaux, na Itália, ou alhures, todas as curvas apresentam o mesmo perfil (gráfico 1): a qualidade de um vinho aumenta com a temperatura até um certo teto e, a partir daí, diminue. Assim, e tendo por base o estudo de cinquenta safras "millésimes",  pode-se determinar, de maneira teórica, uma temperatura média ótima para a qualidade dos vinhos de uma região. Na Alsácia, por exemplo, ela é de 13,7˚C para os vinhos brancos, é de 16,7˚C para os vinhos brancos açucarados do Vale do Loire, e de 17,3˚C para os vinhos de Bordeaux, Médoc e Graves. Leia mais.
Na França, em 2006, o Médoc e a Alsácia tinham acabado de ultrapassar o teto de sua temperatura ideal. Na mesma época, a região de Champagne vivia seu momento mais favorável, pois sua temperatura ótima coincidia com a temperatura local. Por outro lado, o ótimo ainda não havia sido atingido no Vale do Loire.

No entanto, em 2050, todas as regiões francesas e estrangeiras terão ultrapassado com folga o teto de sua temperatura ótima, e algumas delas serão mais atingidas que outras. Na França, as regiões de Bordeaux e do vale do Reno serão as mais afetadas (gráfico 2), enquanto o Vale do Loire será o menos afetado (leia mais). Estudos como esse são um excelente alerta para aqueles que gostam de investir em vinhos de safras futuras.
Gráfico 2: Desvio entre a temperatura ótima e a temperatura estimada em 2050. Nas ordenadas temos as diferentes regiões vinícolas da França, e no eixo das abscissas o desvio das temperaturas (Fonte: referência citada no texto da postagem -- clicar na imagem para aumentá-la).

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