Paz e estabilidade são as palavras-chaves para a ascensão de ambos os países no cenário mundial. No entanto, tensões entre os dois vizinhos parecem inevitáveis: eles se miram através de uma fronteira de quase 4.000 km de extensão fortemente militarizada, e estão cada vez mais competindo entre si numa renhida disputa por recursos naturais mundo afora. Os receios da Índia com relação a projetos chineses ao longo da orla do Oceano Índico encontraram recentemente seu equivalente na ira chinesa com relação aos crescentes interesses da Índia no mar do sul da China, uma região marítima que os chineses polemicamente proclamam como sendo território de sua exclusiva esfera de influência. Apesar do senso de otimismo e ambição que move esses dois países, que juntos abarcam quase um terço da humanidade, o legado da breve guerra sino-indiana de 1962 -- um golpe humilhante para a Índia -- ainda está latente quase cinco décadas depois.
E [isso] ainda está vivo nas páginas de um recente relatório de ação política emitido pelo Institute for Defence Studies and Analyses (IDSA) em Nova Delhi, uma usina de ideias (think tank) independente associada ao ministério de Defesa da Índia [então, que "independência" é essa?!]. "A Consideration of Sino-Indian Conflict" ("Uma Reflexão sobre o Conflito Sino-Indiano", em tradução livre) dificilmente pode ser visto como um texto linha-dura -- ele advoga a política de "evitar guerra" -- mas, ao verbalizar alguns cenários concretos de como seria um conflito entre os dois países ele revela a palpável falta de confiança da parte de estrategistas tanto em Nova Delhi como em Beijing. O relatório aplaude os esforços indianos de longo prazo, em curso, para fortalecer as defesas ao longo da fronteira com a China, mas alerta que Beijing pode ainda agir:
"No futuro, a Índia pode ser objeto da atenção hegemônica da China. Como a Índia estará então melhor preparada, a China pode alternativamente desejar retardar agora esse progresso da Índia com uma guerra preventiva. Isto significa que estar preparado agora é tão essencial como a preparação para o futuro. Uma [derrota] agora terá custos políticos, internamente e externamente, tão severos quanto aqueles de 1962; pois, agora como então, a Índia ainda contempla desempenhar um papel de nível global".
Enquanto uma parcela razoável da atenção recente da mídia tem estado focada na probabilidade de enfrentamentos sino-indianos no mar, o relatório do IDSA mantém seu campo de interesse ao longo da tradicional e glacial fronteira terrestre no Himalaia, que em linguagem informal é referida como a LAC (sigla inglesa para Line of Actual Control -- que pode ser livremente traduzida como Linha de Real/Efetivo Controle, em uma das possíveis traduções). Desde a guerra de 1962, China e Índia têm ainda que resolver disputas antigas sobre vastas extensões de terra ao longo dessa linha. Essas disputas vieram novamente à tona de maneira notória em anos recentes, com a China fazendo ruídos sem precedentes, para grande alarme de Nova Delhi, sobre suas históricas reivindicações sobre a totalidade do estado indiano de Arunachal Pradesh, que os chineses consideram como "Tibete Sul". Os chineses até censuraram o primeiro-ministro indiano Manmohan Singh por ter a audácia de visitar esse estado indiano durante as eleições locais de 2009.
Não surpreendentemente, é nesse remoto canto do planeta que muitos suspeitam que se possa iniciar uma guerra, particularmente em torno da histórica cidade monastério tibetana de Tawang. A Índia reforçou sua posição em Arunachal, com mais tropas, novas defesas com mísseis, e algumas das melhores armas de ataque de sua força aérea, os novos caças russos Su-30. Depois passar décadas mantendo seu exército voltado para oeste, contra a perene ameaça do Paquistão, a Índia está tacitamente realinhando suas forças militares para leste, para enfrentar o desafio de longo prazo da China.
O relatório [do IDSA] especula que a China poderia fazer uma captura territorial específica, "por exemplo, uma tentativa de tomar Tawang". Mais a oeste, ao longo da LAC, outro ponto crítico é Kashimir. A China controla uma área de território predominantemente desabitada, conhecida como Aksai Chin, que conquistou durante a guerra de 1962. A imprensa indiana publica frequentemente histórias alarmistas sobre incursões chinesas a partir de Aksai Chin e de outros locais, e exagerando a escala dos investimentos chineses em infraestrutura no seu lado da fronteira, em forte contraste com a aparente letargia dos planejadores indianos. Parte do que alimenta a ansiedade em Nova Delhi, como observa o relatório, é a ameaça de uma ação coordenada entre China e Paquistão -- uma aliança forjada em grande parte em anos de mútua antipatia em relação à Índia. Em um cenário discutível, o Paquistão, com suas próprias forças ou com apoio de terroristas ou insurgentes, "faria movimentos diversionários" através de locais marcados com sangue como o glaciar de Siachen ou Kargil, sítio da última guerra indo-paquistanesa em 1999, enquanto uma ofensiva chinesa ataca mais a leste ao longo da fronteira.
É claro que esse tipo de manobras de jogo de tabuleiro tem pouco valor na geopolítica de hoje. Ação direta e provocativa não se encaixa em nenhum dos atores atuantes na região, particularmente quando há o fantasma do poderio americano -- uma curiosa ausência no relatório do IDSA -- pairando nas imediações. De modo intrigante, o relatório parece rejeitar a noção de que China e Índia poderiam enfrentar-se em locais considerados por terceiros como áreas de tensão óbvias para uma rivalidade -- ele diz que o reinado himalaio do Butão [pequeno reino fechado, encravado entre China e Índia] seria provavelmente tratado como uma "Suiça" neutra, enquanto que ao Nepal, um país de 40 milhões de habitantes que recebe apoio tanto de Beijing quanto de Nova Delhi, da-se uma certa garantia de que nenhum de seus vizinhos grandes arriscaria violar sua soberania no caso de uma guerra.
Além disso, o IDSA parece descartar a hipótese de cada lado encorajar ou deslocar terceiros em lutas mais clandestinas de um contra o outro. As inquietas regiões fronteiriças em ambos os lados da LAC abrigam populações minoritárias ressentidas e algumas facções de insurgentes. Índia e China -- ao contrário do Paquistão -- têm poucos precedentes em instigar grupos de militantes, e estrategistas em ambos os lados teriam zelo em não alimentar chamas de rebelião que ninguém consegue extinguir.
No entanto, o que parece alimentar as tensões militares sino-indianas -- e sombrias profecias de conflito -- são precisamente esses sentimentos de vulnerabilidade. As incertezas apresentadas pelo surpreendente crescimento econômico de ambos os países, a falta de uma comunicação e de confiança claras entre Beijing e Nova Delhi, e o forte nacionalismo subjacente à opinião pública tanto da Índia quanto da China poderiam desestabilizar esse inquieto status quo hoje existente. Gerenciar isso tudo é uma tarefa para pessoas confusas em Nova Delhi e Beijing. Mas, não fiquem surpresos se surgirem mais relatórios como esse, traçando linhas sobre o campo de batalha.