segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Pompeia - uma arte de viver

Aproveito a recente notícia sobre mais um lamentável desmoronamento de ruína em Pompeia para escrever sobre uma interessantíssima exposição sobre essa cidade, que estará no Museu Maillol de Paris de 21 de setembro de 2011 a 12 de fevereiro de 2012. Ver também o site em português sobre a exposição. A maior parte do texto abaixo foi retirada do catálogo da exposição, o restante do site do museu.

Enquanto os monumentos públicos do império romano -- teatros, anfiteatros, termas, templos -- são numerosos e muitas vezes em bom estado de conservação, as residências privadas, exceto as encontradas cobertas de cinzas pelo Vesúvio no ano 79 DC em Campania, são muito raras e jamais encontradas íntegras em outros lugares. Essas casas e vilas de Pompeia continuam a nos maravilhar pelo seu estado de conservação. Suas infraestruturas, a água corrente, a distribuição do calor, o sistema de esgoto, a integração dos espaços verdes e as formas dos objetos de uso diário são de uma modernidade espetacular.

Uma domus pompeiana -- uma casa pompeiana -- é evocada em suas peças mais célebres e tradicionais: o átrio, o triclínio [sala de jantar da antiga Roma, com três ou mais leitos inclinados, ao redor da mesa, sobre cada um dos quais se podiam recostar três convivas], a cozinha, o peristilo [pátio rodeado por colunas] em torno do jardim, o banheiro, e o venereum ou aphrodisium [aposento secreto, destinado às orgias]. De origem etrusca, a casa tinha uma área que podia variar de 300 a 3.000 m². A exposição apresenta duzentas peças, vindas de Pompeia e de outro locais vesuvianos.

Frequentemente, a queda de uma civilização é sinônimo de esquecimento. Desse ponto de vista, o caso do império romano é pelo menos inusitado: graças ao precioso trabalho dos copistas nos monastérios medievais, várias fontes escritas chegaram até nós. Pode-se assim reconstituir a história, a vida política e as conquistas de Roma, a pequena cidade transformada na capital do mundo mediterrâneo, o centro de um império que se estendeu do Atlântico até os confins da Mesopotâmia e do muro escocês de Adriano até o Sudão.

Esse conhecimento por escrito refere-se, entretanto, sobretudo aos eventos públicos, às batalhas, aos triunfos, ou ainda às grandes obras e aos princípios do direito. Quando se trata da vida privada quotidiana, as fontes antigas não fornecem senão informações escassas. Na realidade, a maior parte do que sabemos da vida quotidiana dos antigos romanos provém das escavações iniciadas há dois séculos e meio nas cidades costeiras do golfo de Nápoles, sepultadas pelas cinzas do Vesúvio no ano 79 DC em seguida a uma terrível erupção que, em poucas horas, extinguiu ali toda a vida existente. Esse terrível acontecimento foi, no entanto, como diria Goethe, uma grande fonte de alegria para a posteridade, graças às descobertas arqueológicas reveladas pelas escavações.

Ainda hoje, em uma época em que a arqueologia fez imensos progressos sobre toda a extensão do mundo romano, e assim sabemos de tantas coisas sobre sítios antigos tão numerosos, Pompeia conserva um valor de ponto de referência, um momento precisamente datável, dando a medida de todas as descobertas que se fazem no domínio da antiguidade romana.

A partir das primeiras investigações arqueológicas em meados do século 18, as atenções se concentraram nos numerosos vestígios da vida quotidiana. Ninguém havia jamais visto uma casa conservada por inteiro. Não se sabia o que era o atrium, o peristilo ou o tablinum [aposento situado imediatamente atrás do atrium, abrindo-se para o jardim]. Vendo as casas em Pompeia, os visitantes ficavam impressionados com a abundância de decorações pintadas e de mosaicos, pela variedade de objetos, pelas pequenas dimensões das construções e pelo refinado modo de viver. [A pequena dimensão é uma constante que chama a atenção na exposição, como por exemplo de uma banquinho para se sentar e de uma banheira, ou das estátuas em tamanho natural de homens e mulheres]. Isso fascinou os jovens arquitetos europeus, que iam adquirir seu "bom gosto" nas academias estabelecidas em Roma. Além dos usuais desenhos de planos e elevações, esses arquitetos realizavam trabalhos de "restauração", que devolviam cor e vida à paisagem de ruínas nuas a que, com as escavações, haviam se tornado Herculano e Pompeia.

Com o tempo, os arqueólogos aprenderam a escavar em detalhes a casa pompeiana, diferenciando os tipos de planimetria, as épocas de construção e os modos de decoração. Puderam distinguir os diferentes estratos sociais da população: cidadãos, escravos libertados, escravos ou mesmo as mulheres. É esse conhecimento que torna sempre mais interessante a visita a Pompeia, a Herculano, ou ao museu de Nápoles.

Em um momento difícil para a conservação dessas cidades antigas, a exposição do museu Maillol sobre um tema tão importante como a casa pompeiana remete a Europa de volta à sua dívida cultural com Pompeia. Assim, essa cidade tornou-se um patrimônio mundial da UNESCO por seu papel de testemunha única do mundo antigo.

A descoberta dos corpos  das vítimas da erupção, ao lado de alguns objetos preciosos que levavam em sua fuga, produz uma emoção muito viva. Contrariamente às arvores e outros elementos perecíveis, os corpos deixavam marcas muito precisas nas cinzas, antes de se desintegrar. Em meados do século 19 o romance Arria Marcella. Souvenir de Pompéi (1852), de Teófilo Gautier, celebrizou um fragmento de cinza solidificada que trazia a marca de um seio de uma adolescente, descoberto em 1772 na vila de Diomede. Esse fragmento foi levado ao museu de Nápoles, onde foi objeto da maior curiosidade antes de se desagregar e desaparecer.


Em 1863, o novo diretor das escavações, Giuseppe Fiorelli, conseguiu obter moldes das vítimas, derramando gesso no vazio deixado pelas partes moles ou macias dos corpos. Esse método impressiona ainda hoje, porque fixa o instante da catástrofe vesuviana e mostra os habitantes presos pela agonia.


A religião dos habitantes de Pompeia derivava da mistura de antigas divindades latinas, gregas e etruscas, entronizadas depois de longo tempo no panteão romano. Cada casa reflete a pietas (devoção) de seu dono. O lararium ou santuário toma muitas vezes a forma de um pequeno templo, no qual são colocadas as estatuetas dos Lares, dois jovens que dançam com um balde e um chifre para beber, simbolizando o espírito dos antepassados. Eles são frequentemente associados ao culto dos Penates, deuses do lar entre romanos e etruscos, protetores da casa e de seu patrimônio.

As crenças não se limitavam ao universo dos deuses. A superstição e a magia jogavam igualmente um grande papel, como testemunham inúmeros objetos: amuletos de pedras talhadas  ou gravadas em forma de serpente, de falo, de mãos de dedos cruzados, que eram usados como proteção contra o mau-olhado ou os espíritos malignos.

A reputação "licenciosa" de Pompeia provém das cenas de sexo pintadas nos bordéis e também em certas peças das casas particulares. Essas pinturas são o fruto de uma tradição plurissecular profundamente enraizada, popularizada pela nova literatura amorosa romana, de Catulo a Ovídio, em Ars amandi ou A arte de amar. Ela é lida nas paredes pintadas de Pompeia, onde sátiros, mênades (bacantes), hermafroditas, Marte e Vênus multiplicam os abraços e contam histórias que remontam à época de Homero.

As centenas de grafites descobertos em Pompeia nos ensinam por outro lado que o prazer se conjugava no masculino. Fala-se com razão de "sexualidade do estupro". Não é senão nas classes superiores e, ainda assim, em casos raros, que a ideia de paridade dos sexos no direito ao prazer fazia lentamente seu progresso. [A exposição do Maillol tenta, textualmente, tirar do visitante a impressão de que Pompeia fosse uma cidade devassa ou licenciosa, mas a meu ver não consegue esse objetivo. A própria existência, em inúmeras residências, de um aposento destinado a orgias como o "venereum", assim como a abundância de desenhos, objetos, estatuetas, etc, com o símbolo fálico, como se vê na exposição, parecem apontar em sentido contrário].


Pompeia permanece uma chave fundamental para a compreensão de nosso passado remoto. A comparação incessante entre o nosso modo de vida atual e o dos habitantes daquela cidade antiga tem pelo menos uma virtude maior, a de nos forçar a considerar com mais tolerância e modéstia certos aspectos do presente.
Vaso azul jaspeado - Pompeia, século 1 DC (Foto: Museu Maillol).

Cofre-forte em bronze - Pompeia, século 1 AC - século 1 DC (Foto: Museu Maillol).

Estatueta de um hermafrodita, em mármore branco - Pompeia, século 1 DC (Foto: Museu Maillol).

Estátua em tamanho natural de uma jovem, em mármore com traços de policromia - Pompeia, era Julio-Claudiana (Foto: Museu Maillol).

Cratera [espécie de jarro, semelhante a uma ânfora, ou taça de grandes dimensões, para levar vinho ou água à mesa], em bronze fundido damasquinado - Pompeia, era augustana (Foto: Museu Maillol).



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