A prestigiosa revista inglesa The Economist publica a primeira de duas reportagens sobre o protecionismo na América do Sul -- a primeira aborda o caso da Argentina, a segunda terá como foco o Brasil. Segundo a revista, as duas maiores economias da América do Sul estão impondo severas restrições comerciais.
Em anos recentes, Blackberrys tornaram-se um componente essencial na "caixa de ferramentas" dos profissionais jovens em Buenos Aires. Mas, se você não conseguiu comprar um antes do inverno do hemisfério sul você pode estar abandonado pela sorte. "Temos dificuldades para conseguí-los", diz um um vendedor em uma loja de celulares da Claro no elegante bairro da Recoleta. "Não os temos há meses", é a resposta em uma loja da Personal em Palermo. A Movistar anuncia o modelo 8520 em sua home page, mas na realidade o telefone está esgotado.
No extremo sul da América do Sul, os Blackberrys inexistentes estão quase prontos para serem produzidos. No dia 3 de outubro a Brightstar, um fabricante multinacional, começará a importação de kits de peças dos telefones para a sua fábrica na Terra do Fogo, base usual de navios de cruzeiro rumo à Antárdida. Uns 300 operários enfrentarão o frígido nevoeiro austral para montar os aparelhos.
Fabricar Blackberrys ao sul do Estreito de Magalhães custará de imediato 23 milhões de dólares, mais um custo de US$ 4.500,00 a US$ 5.000,00 por operário, algo como 15 vezes os custos na Ásia. Mas o governo vende o projeto como um triunfo de sua política comercial. Ele ajudará a cortar a fatia estrangeira no mercado argentino de celularers de 96% em 2009, para um previsão de 20% no final de 2011. "Temos um mercado doméstico com demanda crescente. O objetivo é suprí-lo com mão de obra e produção locais", disse Débora Giorgi, ministra da Indústria, quando o acordo foi fechado.
Fabricantes argentinos vêm se expandindo em ritmo crescente desde a crise de 2001. Na maior parte desse período, um peso barato garantiu sua competitividade. Mas, desde 2005 a inflação tem assumido valores de dois dígitos. Com a redução do superávit comercial, a presidente Cristina Kirchner tem reforçado sua política industrial. De acordo com o Global Trade Alert, uma base de dados sobre restrições no comércio internacional, a Argentina impõe hoje mais restrições consideradas "danosas" do que qualquer outro país, exceto a Rússia.
Mesmo antes de Néstor Kirchner, o falecido marido de Cristina, tornar-se presidente em 2003 a Argentina já taxava as exportações agrícolas. Essa política fiscal visava aumentar a receita do Estado. Mas os Kirchners, mais tarde, justificaram essa política como sendo uma maneira de desencorajar a exportação de commodities a favor da indústrailização. Em 2008, Cristina provocou protestos ao tentar aumentar impostos sobre a soja, o principal produto de exportação da Argentina, e perdeu uma votação no Congresso. Desde então, o país tem restringido as exportações de milho e trigo, deixando fazendeiros com um estoque estimado de 4 milhões de toneladas de milho que não podem nem vender no país, nem exportar. As exportações de carne têm sido também limitadas pelo governo, o que fez com que criadores deixassem de criar gado e levou a uma queda na produção de couro e no consumo de carne. Muitas empresas de couro, como a italiana Italcuer, deixaram o país.
No lado importador, a Argentina não pode aumentar unilateralmente suas tarifas alfandegárias porque pertence à união aduaneira do Mercosul. Mas ela tem recorrido a armas informais. Seu principal método é o "licenciamento não-automático", uma estratégia aceita pela OMC (Organização Mundial do Comércio), que admite que um país retarde suas importações por 60 dias. A Argentina não tem esboçado nenhuma intenção de honrar este espaço de tempo. Em janeiro, aumentou de 400 para 600 o número de produtos que requerem licença. Foi uma limitação na importação de telefones que levou a Research in Motion a contratar a Brightstar a fazer Blackberrys na Argentina (incentivos fiscais levaram então a fábrica a instalar-se na Terra do Fogo). Entre outros produtos afetados estão brinquedos, ingredientes farmacêuticos, pneus, couro, e maquinaria agrícola. Em 15/9 a Argentina bloqueou as importações de livros, e mais de 1 milhão deles se acumulou nas fronteiras. As importações de motocicletas Harley-Davidson estão congelas até 2012. [Esse esdrúxulo bloqueio da importação de livros num país do alto padrão cultural da Argentina é inexplicável e ridículo].
Às empresas que se recusam (ou não podem) deslocar sua produção para a Argentina, o governo oferece outra opção: fazer acordo para exportar produtos em quantidades iguais às suas importações. Em janeiro, funcionários da alfândega suspenderam a autorização para a Nordenwagen importar Porsches -- seus carros mofaram no porto por três meses até que a empresa sucumbisse a um acordo. Como os donos da Nordenwagen são os mesmos da vinícola Pulenta Estate, eles concordaram em lançar uma nova linha de vinhos de exportação para supermercados, acabando com o déficit comercial da empresa.
Plageando o Brasil, o próximo alvo do protecionismo argentino será provavelmente a compra de terras. Em abril, o governo propôs uma lei, rejeitada pelo Congresso, limitando em 20% do território o total de terras em poder de estrangeiros, e proibindo que qualquer pessoa possa adquirir mais que 1.000 hectares (2.471 acres).
É difícil mensurar o saldo dessas medidas. Desde 2005, as importações têm crescido mais que as exportações, mas esse gap poderia ser maior sem as restrições comerciais. A ministra da Indústria diz que a Argentina substituiu US$ 5 bilhões por ano desde 2009 (1,4% do PIB). Os consumidores locais arcam com a maior parte do custo disso, embora algo caia sobre os contribuintes, agora que o governo está oferecendo empréstimos a exportadores com taxas de juros reais negativas. Marcelo Elizondo, diretor da escola de comércio da UCES - Universidade de Ciências Empresariais e Sociais em Buenos Aires, diz que as intervenções estatais têm afetado apenas levemente a balança comercial. "Mas, são restritivas", diz ele. "São uma mensagem de caráter geral para qualquer um que queira importar, que isto será caro e complicado e que é melhor não produzir aqui".
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