Vale muito a pena ler esse interessantíssimo artigo da revista Piauí que está nas bancas (n° 63), que transcrevo parcialmente a seguir.
A prospecção, transporte, refino e venda do petróleo que se encontra na camada do pré-sal significam muito mais que a continuação mecânica do trabalho em águas profundas, que a Petrobras conhece bem. O óleo bruto
agora se encontra abaixo de 2 mil metros de água e de outros 5 mil de
rocha, em média. Essa imensa fronteira energética exigirá a montagem de
equipes de centenas de pessoas ainda não treinadas, tecnologias há pouco
inventadas, equipamentos desconhecidos e toda uma infraestrutura
marítima inexistente.
O americano Norman Gall, diretor-executivo do Instituto Fernand Braudel
de Economia Mundial, de São Paulo, levantou os dados e chegou à seguinte
conclusão: nos próximos anos, o Brasil deverá gastar 1 trilhão de
dólares em custos operacionais para retirar petróleo do pré-sal. A soma
equivale a quase metade do Produto Interno Bruto nacional do ano
passado. Para suprir essas carências, a Petrobras anunciou investimentos de 224
bilhões de dólares para o período 2010-2014. O Brasil é hoje o maior
mercado do mundo para bens e serviços no setor, sendo a Petrobras o
maior cliente individual. Torres, navios, portos, bombas de sucção,
computadores, fábricas de maquinário, a formação de milhares de doutores
em dezenas de áreas – tudo ainda está por fazer.
“Desde a primeira descoberta, sempre tratamos o petróleo como problema”,
disse Øystein Kristiansen na sede da Diretoria Norueguesa de Petróleo,
na cidade de Stavanger. Alto e simpático, Kristiansen trabalha há mais
de vinte anos na Diretoria, que é o equivalente norueguês à Agência
Nacional do Petróleo no Brasil: o órgão regulador do setor. Ela está
instalada em dois edifícios baixos e ecologicamente sustentáveis ligados
por passagens cobertas, uma vez que chove ou neva mais de 200 dias por
ano na cidade. Stavanger, um porto pesqueiro até o início dos anos 70,
em questão de décadas virou um polo da indústria naval de plataformas de
petróleo.
Øystein Kristiansen é diretor de projetos internacionais da Diretoria
Norueguesa de Petróleo. Começou a aprender português porque uma de suas
funções é assessorar o governo de Moçambique, que em outubro anunciou a
descoberta de expressivas reservas de gás em alto-mar. Sabe dizer
“bom-dia”, “obrigado” e algumas outras palavras que, por enquanto, ainda
soam como norueguês a ouvidos brasileiros.
Seu objetivo é ajudar Moçambique a escapar da “doença holandesa”. Criada pela revista The Economist,
em 1977, a expressão se refere ao súbito desequilíbrio, e piora geral,
de uma economia nacional quando ela é beneficiada pela descoberta de um
recurso natural valioso. O nome vem do processo aberto pela descoberta,
em 1959, de enormes campos de gás na Holanda, que no curto prazo causou
dificuldades.
As consequências da riqueza súbita em um país despreparado costumam ser
nefastas. A repentina entrada de fundos estrangeiros provoca, na regra, a
supervalorização da moeda local, causando inflação e sufocando o
desenvolvimento de outros setores da economia. Há o risco do que os
economistas chamam de desindustrialização. Como se não bastasse, os
novos investimentos favorecem a corrupção e estimulam a cobiça nos
grupos dominantes, o que pode levar a disputas que no limite
transformam-se em guerra civil.
No caso da Holanda, a exportação de gás supervalorizou a moeda,
diminuindo a competitividade da indústria local, que começou a encolher.
Houve queda significativa nas exportações, que levaram dez anos para
voltar a crescer. Como o país já possuía uma base industrial, um setor
de exportações robusto e marcos institucionais sólidos, a economia se
recuperou do choque e a Holanda, ironicamente, tornou-se um dos poucos
países a não sucumbir à doença holandesa. Mesmo assim, o nome pegou. E a
doença se manifestou no Oriente Médio e na África.
A Noruega, com reservas de petróleo e gás maiores que as da Holanda,
escapou da maldição. E mais: virou local de peregrinação para todos os
países que descobriram gás e petróleo na quadra final do século XX.
Confrontados com uma repentina fartura de recursos naturais, é comum que
muitos desses governantes agora falem em adotar o “modelo norueguês”. Para Øystein Kristiansen, tal modelo não existe. O que existe é uma
abordagem norueguesa, adaptada às circunstâncias ao longo dos anos, que
se baseia numa ideia surpreendente: descobrir petróleo é uma roubada.
Foi Farouk al-Kasim, um geólogo iraquiano, o principal responsável por
implantar a ideia na cabeça dos noruegueses. Ele não gosta de revelar a
idade exata, mas tem mais de 70 e parece dez anos mais novo. Considerado
o homem que salvou a Noruega da doença holandesa, Farouk – os colegas
escandinavos o chamam sempre pelo primeiro nome – teve papel decisivo na
formulação da política norueguesa de gestão de recursos petrolíferos.
O Iraque é um exemplo extremo da moléstia [a "doença holandesa"]: jamais conseguiu desenvolver
outros setores da economia, teve no governo corrupção, desmandos e
cobiça, e viu explodirem revoluções, golpes e contragolpes ao longo de
toda a sua história. A riqueza proporcionada pelo petróleo facilitou
a ascensão, em 1979, de Saddam Hussein, que a empregou para massacrar a
oposição, desorganizar a sociedade, incitar disputas sectárias, provocar
guerras com os vizinhos e erguer palácios dignos de inimigo de James
Bond.
A invasão americana em 2003 foi o capítulo mais recente das agruras
sofridas pelo Iraque desde as primeiras descobertas de petróleo, nos
anos 20 do século passado. Vivendo em cima de uma das maiores reservas
do mundo, os iraquianos mal têm energia elétrica, quanto mais hospitais,
escolas, segurança e democracia estável.
Exemplo mais próximo do Brasil, a Venezuela também garantiu vaga no
ambulatório de doentes holandeses. As estimativas de reservas
comprovadasvariam enormemente, mas qualquer lista sempre dá pódio aos
venezuelanos. Segundo a Opep, por exemplo, a Venezuela, com 296 bilhões
de barris, ocupa o primeiro lugar, à frente da Arábia Saudita. Já a CIA
coloca os sauditas em primeiro, com 262 bilhões, e os venezuelanos em
segundo, com 221 bilhões. Como termo de comparação, o Brasil tem hoje
reservas comprovadas de 15 bilhões de barris, e as estimativas mais
otimistas para o pré-sal chegam a 70 bilhões.
No ano passado, a produção industrial brasileira cresceu cerca de 10%,
enquanto a da Venezuela diminuiu 3% – ou seja, o país está sofrendo
desindustrialização, sintoma clássico de doença holandesa. Outro indício
exemplar é a inflação, que lá chegou a 28% no ano passado. O rodízio do
poder também anda abalado: na Presidência desde 1999, Hugo Chávez disse
recentemente que pretende ficar no cargo até 2030.
“A Noruega em 1968 era um país pobre”, disse Marit Engebretsen,
diretora-geral de Clima, Indústria e Tecnologia do Ministério do
Petróleo e Energia, com sede em Oslo. “Ainda sentíamos os efeitos da
ocupação nazista e nossa economia era muito básica, com apenas um setor
de relevância internacional: o naval.” A indústria da pesca era
praticamente só para consumo interno e o turismo internacional,
inexistente. Mesmo hoje, com 5 milhões de pessoas, a Noruega tem menos
gente do que a cidade do Rio. Há quarenta anos, tinha apenas 3,8
milhões.
Até o início dos anos 60, disse Hans Borge [diretor do Departamento de Tecnologia do Petróleo da Noruega], havia muitos noruegueses
morando em barracas de acampamento porque não havia casas para todo
mundo: “Nada foi construído e muito foi destruído em bombardeios durante
a guerra. O país não tinha dinheiro para a reconstrução. Com o baby boom
do pós-guerra, o déficit habitacional aumentou.” Quando Farouk teve seu
primeiro encontro com os três colegas no Ministério da Indústria, a
situação melhorara e todos tinham onde morar, mas ainda era bem presente
a lembrança dos anos difíceis.
Desde o início, Farouk insistia que era indispensável e urgente criar uma
agência reguladora. A essa altura, já fora autorizado a contratar e
treinar um pequeno grupo de pessoas, para o caso de se realizarem suas
previsões de riqueza petrolífera. Em 1973, mudou-se de Oslo para
Stavanger e virou diretor de Gestão de Recursos da recém-nascida agência
reguladora, cargo que ocupou por quase duas décadas. Øystein
Kristiansen é uma de suas crias. Outras trabalham na Norad, a Agência
Norueguesa de Cooperação para o Desenvolvimento. Na DNP, elas levam
adiante o modelo Farouk de gestão de recursos para a Noruega; na Norad
ajudam a exportar o modelo para outros países.
Segundo Farouk, a fórmula é a seguinte: “O governo deve se concentrar em
estabelecer as políticas para o setor: administração, planejamento
estratégico, legislação, essas coisas. Fora isso, é necessário ter uma
agência reguladora que seja competente não apenas em leis e regulações,
mas em tecnologia, para tratar com as petroleiras de igual para igual. É
preciso que o regulador seja respeitado por todos, esteja livre de
pressões políticas, do lobby da indústria e, o que é muito
importante, da influência da companhia nacional de petróleo, que tende a
se tornar poderosa demais e a formar um governo dentro do governo.”
Outro conselho: é importante não ir com muita sede ao pote. Farouk
recomenda “extrair o petróleo com calma, para dar tempo de a economia se
ajustar”.
A exploração de petróleo na Noruega funciona pelo regime de concessão de
licenças, como no Brasil antes do pré-sal. A diferença é que as
petroleiras não competem em leilão pelos blocos destinados à exploração.
Também não há bônus de assinatura nem royalties. Marit Engebretsen, do
Ministério do Petróleo e Energia, explicou: “Não há dinheiro envolvido
no processo de licenciamento. Os vencedores são escolhidos em função de
sua solidez financeira e da experiência e capacidade técnica para atuar
no tipo específico de exploração exigido por determinado bloco.” Há
outro ponto crucial – se a empresa tiver um histórico de contratação de
bens e serviços no país, aumentam suas chances de ganhar a licença.
A receita do petróleo chega ao governo de três formas principais: uma
alíquota de 78% sobre o lucro das petroleiras; dividendos da Statoil,
gigante do setor que tem o Estado como acionista majoritário; e o lucro
do SDFI (State’s Direct Financial Interest), um fundo de participação do
Estado. Através do SDFI, o governo investe diretamente em alguns
projetos de exploração. O lucro obtido é administrado por uma empresa
100% estatal, a Petoro.
Uma vez licenciada, a empresa que investir em pesquisa e treinamento na
Noruega pode abater a despesa do imposto devido. Como a taxação é alta,
muitos fornecedores de bens e serviços, como as americanas Schlumberger e
Halliburton, preferiram montar laboratórios na Noruega, a maioria deles
em Stavanger. Eles trabalham em parceria com universidades e centros de
pesquisa financiados pelo governo, que investe bastante no setor. O
know-how gerado internamente é exportado para todo o mundo.
Farouk gosta de usar um triângulo para ilustrar seu modelo de gestão de
recursos naturais. Governo, companhias de petróleo e sociedade são as
três pontas. “É importante entender que as companhias de petróleo não
são mal-intencionadas nem chegam para roubar a riqueza da nação”, disse.
“Querem ganhar dinheiro, claro, e têm esse direito, mas vão também
contribuir para o crescimento da economia. Os acordos têm de ser feitos
pensando na criação de valor para todos os interessados".
Se o governo é o único favorecido, não atrai as melhores empresas,
condição fundamental para o bom aproveitamento dos recursos e para
garantir a transferência de tecnologia de ponta. Se as vantagens se
acumulam todas do lado das empresas, a consequência será a doença
holandesa. “O país e a sociedade só se beneficiam se as companhias de
petróleo também estiverem lucrando”, explicou Farouk. “Já o contrário
não é verdadeiro: é perfeitamente possível as petroleiras ganharem
dinheiro sem que a população veja um centavo".
Nos primeiros anos de exploração do petróleo, a Noruega decidiu que todo
o ganho seria reinvestido no setor sob a forma de subsídios à pesquisa,
de treinamento de mão de obra, melhoria da infraestrutura e pagamento
da dívida externa. Em 1996, quitada a dívida, o governo passou a colocar
toda a receita líquida do petróleo num fundo soberano, chamado Fundo de
Pensão Público Global. Esse fundo tem hoje o equivalente a 100 mil
dólares para cada homem, mulher e criança noruegueses. O objetivo é
garantir o padrão de vida da população quando o petróleo acabar. A
produção já está caindo, apesar da descoberta recente de um grande
reservatório e do crescimento da produção de gás. Mesmo assim, a Noruega
se prepara para o fim da era do petróleo. A matriz energética já é
quase 100% hidrelétrica.
O Estado só pode utilizar 4% do ganho financeiro do fundo, mesmo que no
ano o ganho tenha sido maior. Assim, em tempos de vacas magras, como na
crise mundial de 2008, o governo tem como tapar buracos no orçamento.
Quando as vacas voltam a engordar, o bolo fica lá, crescendo. Como a
Noruega não é uma federação e esses 4% entram a título de orçamento do
Estado, as regiões não têm como brigar por uma fatia maior do bolo. Não
há também desigualdade extrema de renda, nem entre regiões, nem entre
classes sociais, nem entre zona rural e zona urbana. Os 10% mais ricos
detêm 20% da riqueza nacional. No Brasil, os 10% mais ricos ficam com
75% da riqueza.
Outro elemento importante, e pelo qual Farouk é em grande parte
responsável, é o alto nível de recuperação de óleo nos campos da
Noruega”, disse Martin Sandbu, do Financial Times. A maior
parte do petróleo encontrada no mundo nunca chega a ser produzida. Cerca
de 75% ficam, literalmente, no fundo do poço. Marit Engebretsen, do
Ministério do Petróleo e Energia, concorda com Sandbu a propósito de
Farouk: “Ele instituiu a cultura da última gota, que prevalece até hoje,
mais de dez anos depois de ele ter deixado o governo.” A taxa de
recuperação na Noruega se mantém entre 45% e 50%.
Aos 55 anos, Farouk achou que era hora de tentar a vida fora do governo.
Com alguns sócios, fundou uma empresa de engenharia de reservatório.
“Eu não tinha um tostão, naturalmente, mas tinha muitas ideias”,
explicou. “Eles me deram ações da companhia, que foi vendida em 1995.
Hoje tenho um padrão de vida confortável. Não preciso me preocupar com o
meu futuro nem com o dos meus filhos".
Isso permite que Farouk se dedique à outra empresa de consultoria que
fundou, a Petroteam. Esta, numa continuação da missão que escolheu aos
32 anos, ajuda outros países a administrar seus recursos petrolíferos. E
o projeto do coração de Farouk é uma fundação criada pelo governo para
transferir conhecimento e treinar técnicos do setor energético em outros
países. Duas vezes por ano, essa fundação recebe em Stavanger quarenta
alunos para um curso de gestão de recursos com duração de oito semanas. O
grupo de 2011 incluiu alunos de 24 países. Há engenheiros, geólogos,
economistas, contadores, advogados, todos funcionários públicos em seu
país ou vinculados às companhias nacionais de petróleo. A fundação
também dá cursos e consultorias in loco. A ideia é treinar
quadros técnicos que no futuro possam ter uma atuação-chave no
desenvolvimento das políticas nacionais. Mais de 13 mil pessoas passaram
pelos programas.
Em 2004, logo após a invasão americana, Farouk foi chamado pelo governo
em formação para preparar um projeto de lei para o setor petrolífero do
Iraque. Mas constatou que os iraquianos “não conseguem se entender para
aprovar qualquer legislação. O país é governado por grupos mafiosos que
só se preocupam em defender os próprios interesses. Me disseram que as
coisas estão melhorando, e eu espero que seja verdade, mas desisti de
tentar ajudar”.
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