sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Pré-sal pode trazer para o Brasil a "doença holandesa"

Vale muito a pena ler esse interessantíssimo artigo da revista Piauí que está nas bancas (n° 63), que transcrevo parcialmente a seguir.


A prospecção, transporte, refino e venda do petróleo que se encontra na camada do pré-sal significam muito mais que a continuação mecânica do trabalho em águas profundas, que a Petrobras conhece bem. O óleo bruto agora se encontra abaixo de 2 mil metros de água e de outros 5 mil de rocha, em média. Essa imensa fronteira energética exigirá a montagem de equipes de centenas de pessoas ainda não treinadas, tecnologias há pouco inventadas, equipamentos desconhecidos e toda uma infraestrutura marítima inexistente.

O americano Norman Gall, diretor-executivo do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, de São Paulo, levantou os dados e chegou à seguinte conclusão: nos próximos anos, o Brasil deverá gastar 1 trilhão de dólares em custos operacionais para retirar petróleo do pré-sal. A soma equivale a quase metade do Produto Interno Bruto nacional do ano passado. Para suprir essas carências, a Petrobras anunciou investimentos de 224 bilhões de dólares para o período 2010-2014. O Brasil é hoje o maior mercado do mundo para bens e serviços no setor, sendo a Petrobras o maior cliente individual. Torres, navios, portos, bombas de sucção, computadores, fábricas de maquinário, a formação de milhares de doutores em dezenas de áreas – tudo ainda está por fazer.

“Desde a primeira descoberta, sempre tratamos o petróleo como problema”, disse Øystein Kristiansen na sede da Diretoria Norueguesa de Petróleo, na cidade de Stavanger. Alto e simpático, Kristiansen trabalha há mais de vinte anos na Diretoria, que é o equivalente norueguês à Agência Nacional do Petróleo no Brasil: o órgão regulador do setor. Ela está instalada em dois edifícios baixos e ecologicamente sustentáveis ligados por passagens cobertas, uma vez que chove ou neva mais de 200 dias por ano na cidade. Stavanger, um porto pesqueiro até o início dos anos 70, em questão de décadas virou um polo da indústria naval de plataformas de petróleo.

Øystein Kristiansen é diretor de projetos internacionais da Diretoria Norueguesa de Petróleo. Começou a aprender português porque uma de suas funções é assessorar o governo de Moçambique, que em outubro anunciou a descoberta de expressivas reservas de gás em alto-mar. Sabe dizer “bom-dia”, “obrigado” e algumas outras palavras que, por enquanto, ainda soam como norueguês a ouvidos brasileiros.

Seu objetivo é ajudar Moçambique a escapar da “doença holandesa”. Criada pela revista The Economist, em 1977, a expressão se refere ao súbito desequilíbrio, e piora geral, de uma economia nacional quando ela é beneficiada pela descoberta de um recurso natural valioso. O nome vem do processo aberto pela descoberta, em 1959, de enormes campos de gás na Holanda, que no curto prazo causou dificuldades.

As consequências da riqueza súbita em um país despreparado costumam ser nefastas. A repentina entrada de fundos estrangeiros provoca, na regra, a supervalorização da moeda local, causando inflação e sufocando o desenvolvimento de outros setores da economia. Há o risco do que os economistas chamam de desindustrialização. Como se não bastasse, os novos investimentos favorecem a corrupção e estimulam a cobiça nos grupos dominantes, o que pode levar a disputas que no limite transformam-se em guerra civil.

No caso da Holanda, a exportação de gás supervalorizou a moeda, diminuindo a competitividade da indústria local, que começou a encolher. Houve queda significativa nas exportações, que levaram dez anos para voltar a crescer. Como o país já possuía uma base industrial, um setor de exportações robusto e marcos institucionais sólidos, a economia se recuperou do choque e a Holanda, ironicamente, tornou-se um dos poucos países a não sucumbir à doença holandesa. Mesmo assim, o nome pegou. E a doença se manifestou no Oriente Médio e na África.

A Noruega, com reservas de petróleo e gás maiores que as da Holanda, escapou da maldição. E mais: virou local de peregrinação para todos os países que descobriram gás e petróleo na quadra final do século XX. Confrontados com uma repentina fartura de recursos naturais, é comum que muitos desses governantes agora falem em adotar o “modelo norueguês”.  Para Øystein Kristiansen, tal modelo não existe. O que existe é uma abordagem norueguesa, adaptada às circunstâncias ao longo dos anos, que se baseia numa ideia surpreendente: descobrir petróleo é uma roubada.

Foi Farouk al-Kasim, um geólogo iraquiano, o principal responsável por implantar a ideia na cabeça dos noruegueses. Ele não gosta de revelar a idade exata, mas tem mais de 70 e parece dez anos mais novo. Considerado o homem que salvou a Noruega da doença holandesa, Farouk – os colegas escandinavos o chamam sempre pelo primeiro nome – teve papel decisivo na formulação da política norueguesa de gestão de recursos petrolíferos.

O Iraque é um exemplo extremo da moléstia [a "doença holandesa"]: jamais conseguiu desenvolver outros setores da economia, teve no governo corrupção, desmandos e cobiça, e viu explodirem revoluções, golpes e contragolpes ao longo de toda a sua história. A riqueza proporcionada pelo petróleo facilitou a ascensão, em 1979, de Saddam Hussein, que a empregou para massacrar a oposição, desorganizar a sociedade, incitar disputas sectárias, provocar guerras com os vizinhos e erguer palácios dignos de inimigo de James Bond.

A invasão americana em 2003 foi o capítulo mais recente das agruras sofridas pelo Iraque desde as primeiras descobertas de petróleo, nos anos 20 do século passado. Vivendo em cima de uma das maiores reservas do mundo, os iraquianos mal têm energia elétrica, quanto mais hospitais, escolas, segurança e democracia estável.

Exemplo mais próximo do Brasil, a Venezuela também garantiu vaga no ambulatório de doentes holandeses. As estimativas de reservas comprovadasvariam enormemente, mas qualquer lista sempre dá pódio aos venezuelanos. Segundo a Opep, por exemplo, a Venezuela, com 296 bilhões de barris, ocupa o primeiro lugar, à frente da Arábia Saudita. Já a CIA coloca os sauditas em primeiro, com 262 bilhões, e os venezuelanos em segundo, com 221 bilhões. Como termo de comparação, o Brasil tem hoje reservas comprovadas de 15 bilhões de barris, e as estimativas mais otimistas para o pré-sal chegam a 70 bilhões.

No ano passado, a produção industrial brasileira cresceu cerca de 10%, enquanto a da Venezuela diminuiu 3% – ou seja, o país está sofrendo desindustrialização, sintoma clássico de doença holandesa. Outro indício exemplar é a inflação, que lá chegou a 28% no ano passado. O rodízio do poder também anda abalado: na Presidência desde 1999, Hugo Chávez disse recentemente que pretende ficar no cargo até 2030.

“A Noruega em 1968 era um país pobre”, disse Marit Engebretsen, diretora-geral de Clima, Indústria e Tecnologia do Ministério do Petróleo e Energia, com sede em Oslo. “Ainda sentíamos os efeitos da ocupação nazista e nossa economia era muito básica, com apenas um setor de relevância internacional: o naval.” A indústria da pesca era praticamente só para consumo interno e o turismo internacional, inexistente. Mesmo hoje, com 5 milhões de pessoas, a Noruega tem menos gente do que a cidade do Rio. Há quarenta anos, tinha apenas 3,8 milhões.

Até o início dos anos 60, disse Hans Borge [diretor do Departamento de Tecnologia do Petróleo da Noruega], havia muitos noruegueses morando em barracas de acampamento porque não havia casas para todo mundo: “Nada foi construído e muito foi destruído em bombardeios durante a guerra. O país não tinha dinheiro para a reconstrução. Com o baby boom do pós-guerra, o déficit habitacional aumentou.” Quando Farouk teve seu primeiro encontro com os três colegas no Ministério da Indústria, a situação melhorara e todos tinham onde morar, mas ainda era bem presente a lembrança dos anos difíceis.

Desde o início, Farouk insistia que era indispensável e urgente criar uma agência reguladora. A essa altura, já fora autorizado a contratar e treinar um pequeno grupo de pessoas, para o caso de se realizarem suas previsões de riqueza petrolífera. Em 1973, mudou-se de Oslo para Stavanger e virou diretor de Gestão de Recursos da recém-nascida agência reguladora, cargo que ocupou por quase duas décadas. Øystein Kristiansen é uma de suas crias. Outras trabalham na Norad, a Agência Norueguesa de Cooperação para o Desenvolvimento. Na DNP, elas levam adiante o modelo Farouk de gestão de recursos para a Noruega; na Norad ajudam a exportar o modelo para outros países.

Segundo Farouk, a fórmula é a seguinte: “O governo deve se concentrar em estabelecer as políticas para o setor: administração, planejamento estratégico, legislação, essas coisas. Fora isso, é necessário ter uma agência reguladora que seja competente não apenas em leis e regulações, mas em tecnologia, para tratar com as petroleiras de igual para igual. É preciso que o regulador seja respeitado por todos, esteja livre de pressões políticas, do lobby da indústria e, o que é muito importante, da influência da companhia nacional de petróleo, que tende a se tornar poderosa demais e a formar um governo dentro do governo.” Outro conselho: é importante não ir com muita sede ao pote. Farouk recomenda “extrair o petróleo com calma, para dar tempo de a economia se ajustar”.

A exploração de petróleo na Noruega funciona pelo regime de concessão de licenças, como no Brasil antes do pré-sal. A diferença é que as petroleiras não competem em leilão pelos blocos destinados à exploração. Também não há bônus de assinatura nem royalties. Marit Engebretsen, do Ministério do Petróleo e Energia, explicou: “Não há dinheiro envolvido no processo de licenciamento. Os vencedores são escolhidos em função de sua solidez financeira e da experiência e capacidade técnica para atuar no tipo específico de exploração exigido por determinado bloco.” Há outro ponto crucial – se a empresa tiver um histórico de contratação de bens e serviços no país, aumentam suas chances de ganhar a licença.

A receita do petróleo chega ao governo de três formas principais: uma alíquota de 78% sobre o lucro das petroleiras; dividendos da Statoil, gigante do setor que tem o Estado como acionista majoritário; e o lucro do SDFI (State’s Direct Financial Interest), um fundo de participação do Estado. Através do SDFI, o governo investe diretamente em alguns projetos de exploração. O lucro obtido é administrado por uma empresa 100% estatal, a Petoro.

Uma vez licenciada, a empresa que investir em pesquisa e treinamento na Noruega pode abater a despesa do imposto devido. Como a taxação é alta, muitos fornecedores de bens e serviços, como as americanas Schlumberger e Halliburton, preferiram montar laboratórios na Noruega, a maioria deles em Stavanger. Eles trabalham em parceria com universidades e centros de pesquisa financiados pelo governo, que investe bastante no setor. O know-how gerado internamente é exportado para todo o mundo.

Farouk gosta de usar um triângulo para ilustrar seu modelo de gestão de recursos naturais. Governo, companhias de petróleo e sociedade são as três pontas. “É importante entender que as companhias de petróleo não são mal-intencionadas nem chegam para roubar a riqueza da nação”, disse. “Querem ganhar dinheiro, claro, e têm esse direito, mas vão também contribuir para o crescimento da economia. Os acordos têm de ser feitos pensando na criação de valor para todos os interessados".

Se o governo é o único favorecido, não atrai as melhores empresas, condição fundamental para o bom aproveitamento dos recursos e para garantir a transferência de tecnologia de ponta. Se as vantagens se acumulam todas do lado das empresas, a consequência será a doença holandesa. “O país e a sociedade só se beneficiam se as companhias de petróleo também estiverem lucrando”, explicou Farouk. “Já o contrário não é verdadeiro: é perfeitamente possível as petroleiras ganharem dinheiro sem que a população veja um centavo".

Nos primeiros anos de exploração do petróleo, a Noruega decidiu que todo o ganho seria reinvestido no setor sob a forma de subsídios à pesquisa, de treinamento de mão de obra, melhoria da infraestrutura e pagamento da dívida externa. Em 1996, quitada a dívida, o governo passou a colocar toda a receita líquida do petróleo num fundo soberano, chamado Fundo de Pensão Público Global. Esse fundo tem hoje o equivalente a 100 mil dólares para cada homem, mulher e criança noruegueses. O objetivo é garantir o padrão de vida da população quando o petróleo acabar. A produção já está caindo, apesar da descoberta recente de um grande reservatório e do crescimento da produção de gás. Mesmo assim, a Noruega se prepara para o fim da era do petróleo. A matriz energética já é quase 100% hidrelétrica.

O Estado só pode utilizar 4% do ganho financeiro do fundo, mesmo que no ano o ganho tenha sido maior. Assim, em tempos de vacas magras, como na crise mundial de 2008, o governo tem como tapar buracos no orçamento. Quando as vacas voltam a engordar, o bolo fica lá, crescendo. Como a Noruega não é uma federação e esses 4% entram a título de orçamento do Estado, as regiões não têm como brigar por uma fatia maior do bolo. Não há também desigualdade extrema de renda, nem entre regiões, nem entre classes sociais, nem entre zona rural e zona urbana. Os 10% mais ricos detêm 20% da riqueza nacional. No Brasil, os 10% mais ricos ficam com 75% da riqueza.

Outro elemento importante, e pelo qual Farouk é em grande parte responsável, é o alto nível de recuperação de óleo nos campos da Noruega”, disse Martin Sandbu, do Financial Times. A maior parte do petróleo encontrada no mundo nunca chega a ser produzida. Cerca de 75% ficam, literalmente, no fundo do poço. Marit Engebretsen, do Ministério do Petróleo e Energia, concorda com Sandbu a propósito de Farouk: “Ele instituiu a cultura da última gota, que prevalece até hoje, mais de dez anos depois de ele ter deixado o governo.” A taxa de recuperação na Noruega se mantém entre 45% e 50%.

Aos 55 anos, Farouk achou que era hora de tentar a vida fora do governo. Com alguns sócios, fundou uma empresa de engenharia de reservatório. “Eu não tinha um tostão, naturalmente, mas tinha muitas ideias”, explicou. “Eles me deram ações da companhia, que foi vendida em 1995. Hoje tenho um padrão de vida confortável. Não preciso me preocupar com o meu futuro nem com o dos meus filhos".

Isso permite que Farouk se dedique à outra empresa de consultoria que fundou, a Petroteam. Esta, numa continuação da missão que escolheu aos 32 anos, ajuda outros países a administrar seus recursos petrolíferos. E o projeto do coração de Farouk é uma fundação criada pelo governo para transferir conhecimento e treinar técnicos do setor energético em outros países. Duas vezes por ano, essa fundação recebe em Stavanger quarenta alunos para um curso de gestão de recursos com duração de oito semanas. O grupo de 2011 incluiu alunos de 24 países. Há engenheiros, geólogos, economistas, contadores, advogados, todos funcionários públicos em seu país ou vinculados às companhias nacionais de petróleo. A fundação também dá cursos e consultorias in loco. A ideia é treinar quadros técnicos que no futuro possam ter uma atuação-chave no desenvolvimento das políticas nacionais. Mais de 13 mil pessoas passaram pelos programas.

Em 2004, logo após a invasão americana, Farouk foi chamado pelo governo em formação para preparar um projeto de lei para o setor petrolífero do Iraque. Mas constatou que os iraquianos “não conseguem se entender para aprovar qualquer legislação. O país é governado por grupos mafiosos que só se preocupam em defender os próprios interesses. Me disseram que as coisas estão melhorando, e eu espero que seja verdade, mas desisti de tentar ajudar”.

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