[Traduzo abaixo a versão em espanhol feita por Juan Ramón Azaola de um interessante (porque polêmico) artigo de Thomas Weber, professor de História Moderna da Europa e Internacional na Universidade de Aberdeen (Escócia) -- "Tribunales ordinarios y criminales de guerra" -- , publicada no jornal espanhol El País de 19 de abril. Weber é autor dos livros "Lodz Ghetto Album ("O álbum do gueto de Lodz"), "Our Friend 'The Enemy'" (Nosso amigo 'O Inimigo'") e "Hitler's First War ("A primeira guerra de Hitler"). No artigo, o autor defende as Comissões da Verdade como instrumento adequado para não só elucidar crimes nazistas ainda pendentes de esclarecimento, como também para a Espanha investigar as execuções em massa e os milhares de desaparecimentos durante a guerra civil e os anos do franquismo. Ele cita como modelos as Comissões criadas na África e na América Latina. Como ficaria nesse contexto a controvertida Comissão da Verdade do Brasil, cujos componentes o governo não conseguiu ainda definir? -- O que estiver entre colchetes e em itálico no texto abaixo é de minha responsabilidade.]
Quando se comemorava o vigésimo aniversário da Conferência de Wannsee [reunião em que um grupo de oficiais nazistas discutiu sobre a "solução final da questão judaica" -- Endlösung der Judenfrage -- em 20 de janeiro de 1942, realizada no palacete de Wannsee, no sudoeste de Berlim, que levaria ao Holocausto], em janeiro de 1962, a brilhante interação dos caçadores de nazistas, das autoridades alemãs e israelenses, e dos juízes, havia conseguido levar à justiça Adolf Eichmann e um dos participantes daquela Conferência que ainda estava foragido.
Hoje, meio século depois da execução de Eichmann, todos os participantes daquela reunião [a de Wannsee] em que se planejou o genocídio dos judeus na Europa, morreram há tempo. Entretanto, inclusive agora, pouco depois do septuagésimo aniversário da Conferência de Wannsee, não cessaram os intentos de deter e processar os criminosos de guerra nazistas.
Há apenas alguns meses um tribunal alemão sentenciou a cinco anos de prisão Johnn Demjanjuk, guarda do campo da morte de Sobibor, que faleceu em 17 de março passado. De um modo semelhante, tanto as autoridades alemãs e as polonesas, como as italianas, embarcaram recentemente em uma missão direcionada a por atrás das grades o maior número possível de autores vivos de crimes nazistas. No outono recente, por exemplo, na Alemanha rural oriental o promotor público alemão Andreas Brendel bateu à porta de Willi B., de 86 anos, para informá-lo de que agora estava sob investigação por supostamente haver participado, quando tinha 18 anos, da matança de 642 civis desarmados no povoado de Oradour-sur-Glane, no centro da França, em mãos da 3ª Companhia "O Führer" do Regimento de Infantaria Blindada das SS.
É claro que devemos às vítimas de Oradour-sur-Glane, de Sobibor e de outros lugares, conhecidos ou desconhecidos, o fato de virem à luz os crimes cometidos contra elas pelo nacional-socialismo. Eu também gostaria de poder explicar à minha filha, quando ela for capaz de entendê-lo, a quem se deve o fato de que alguns de seus antepassados estão enterrados em fossas comuns no sul da Polônia. Mas, podem realmente as ferramentas legais convencionais satisfazer a todas essas expectativas 70 anos depois do Holocausto?
Se o objetivo primordial desses novos julgamentos contra homens anciãos e enfraquecidos, próximos de sua morte, é a de fazer ver ao mundo que não existe um prazo de prescrição do assassinato e de outros crimes hediondos, é inquestionável que tais julgamentos deverão prosseguir incansavelmente. No entanto, muitos observadores e grupos de vítimas deixaram claro durante o julgamento de Demjanjuk que na realidade estão interessados em duas coisas: em preservar a memória do Holocausto e em atrair a atenção e a investigação públicas sobre certos crimes nazistas menos conhecidos, tais como os cometidos em Sobibor, o campo no qual servia Demjanjuk.
Durante o tempo em que os autores dos crimes nazistas não eram ainda homens velhos e frágeis, era perfeitamente factível usar seus processos como meio de lançar luz sobre crimes do nacional-socialismo relativamente desconhecidos, e dar um impulso à lembrança das vítimas que causaram. Mas, como demonstram os casos de John Demjanjuk e Willi B., isso já não é assim. A cobertura pública do caso Demjanjuk não se concentrou em absoluto nos crimes cometidos em Sobibor. Na realidade, focou mais o estado mental e a saúde de Demjanjuk, assim como na questão da licitude ou não de se processar pessoas tão anciãs. Do mesmo modo, quando a imprensa alemã e internacional informou detalhadamente sobre a sentença do Tribunal Internacional de Justiça, segundo a qual os tribunais italianos não poderiam forçar a República Federal da Alemanha a pagar reparações de demandantes individuais, quase não houve menção alguma a que os crimes nazistas estavam na raiz do caso.
O tempo para poder julgar os crimes nazistas em tribunais ordinários se esgota rapidamente; frequentemente, os processos legais contra supostos criminosos de guerra dificultam inclusive o esclarecimento dos crimes nazistas, já que o público tende a fixar-se menos nos crimes que no estado de saúde de seus já decrépitos autores. E os acusados se negam abertamente a fornecer provas.
Não obstante, existe ainda um modo de poder utilizar os caçadores de nazistas e as autoridades legais para esclarecer os crimes que não receberam a atenção que merecem e para preservar a memória do Holocausto. É a de instituir as Comissões da Verdade para os crimes da época do nazismo, inspiradas nos modelos da África e da América Latina. Os caçadores de nazistas ou os promotores públicosa ajudariam essas Comissões da Verdade, que estariam compostas de sobreviventes e seus representantes, por advogados e por historiadores. Se lhes fosse garantida a imunidade por comparecer ante as Comissões da Verdade, os implicados em crimes de guerra do nazismo teriam uma oportunidade de falar sincera e abertamente sobre os capítulos mais obscuros de suas vidas. Isso, sem dúvida, também lhes daria mais respeito aos olhos de seus próprios filhos e netos do que sua falta de cooperação [muito estranho este raciocínio!]. Existe também a esperança de que, se se lhes desse a oportunidade de comparecer ante uma Comissão da Verdade, em lugar de apresentar-se ante um tribunal, se poderia demonstrar que muitos dos casos de perda de memória de pessoas implicadas em crimes nazistas foram simplesmente um artifício tático.
Certamente que nem todos estariam em condições de participar dessas Comissões. É possível que Demjanjuk tivesse acabado por levar para o túmulo tudo o que sabia sobre Sobibor, mesmo que se lhe tivesse sido oferecida a opção de comparecer frente a uma Comissão da Verdade. Assim como é também possível que Willi B. já não entenda o que quer dele Andreas Brendel. Mas, implicaria já um grande êxito que pessoas implicadas em crimes de guerra da época nazista cooperassem com as Comissões da Verdade. Isso permitiria ao mundo ter acesso à informação do ainda muito considerável número de homens e mulheres entre os 85 e 100 anos de idade que, durante o Holocausto, estiveram comprometidos em ações sobre as quais ainda sabemos pouca coisa. Outra vantagem das Comissões da Verdade seria a de que a atenção pública deixaria de fixar-se na questão de se os tribunais deveriam julgar anciãos que estavam no elo mais baixo da cadeia de mando nazista e que na época eram adolescentes. Em vez disso, o debate público, inclusive 70 anos depois de Wannsee, se centraria realmente nos crimes nazistas e em não esquecer as vítimas do Holocausto e dos crimes de guerra alemães em Oradour-sur-Glane e em outros lugares.
O estabelecimento de Comissões da Verdade não apenas ajudaria a Alemanha a enfrentar o capítulo mais negro de sua história, como também permitiria à Espanha superar o ponto morto criado pela Lei de Anistia de 1977 na hora de fazer face ao seu passado turbulento. Como sentenciou o Supremo Tribunal espanhol no mês passado, a tentativa do juiz Baltasar Garzón de eludir essa lei invocando o direito internacional era ilegal [salvo engano de interpretação, vejo aqui duas semelhanças com a situação brasileira: - a) a Lei da Anistia espanhola tem a mesma bizarrice da nossa, com a instituição da figura esdrúxula do criminoso legalmente impune; - b) infelizmente, parece ser juridicamente falho o ultimato da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA para que o Brasil altere sua Lei de Anistia e permita a punição dos culpados].
Apesar de reconhecer que a busca da verdade é necessária e legítima, estabeleceu [o tribunal espanhol] que há que recorrer a instituições estatais distintas das judiciais. Assim, as Comissões da Verdade se adequariam bem ao propósito da sentença lavrada pelo Supremo Tribunal. Isso tornaria possível que a Espanha investigasse as execuções em massa e os milhares de desaparecimentos ocorridos durante a Guerra Civil e os anos do franquismo, sem violar a Lei de Anistia [é simplesmente surreal o conceito aplicado a essas leis de anistia: elas são invioláveis, embora se originem de uma violação extrema, o do direito à vida!!]. Há também uma esperança real de que, se estabelecidas [as Comissões] com cuidado e respeito mútuos, as diferentes partes que se enfrentaram nos conflitos passados da Espanha participariam dessas Comissões da Verdade [o autor parte da estranha premissa de mais de uma Comissão da Verdade na Espanha, talvez devido à características jurídicas peculiares das províncias espanholas, como no caso da Catalunha, por exemplo]. Desse modo, escapariam do triste destino da Associação para a Recuperação da Memória Histórica e da Lei da Memória Histórica de que lhes sejam atribuídas intenções partidárias. Seria, portanto, um verdadeiro passo adiante na capacidade da Espanha de encarar seu próprio passado.
Bem que poderia ser essa a melhor esperança dos familiares das vítimas da guerra civil espanhola e do período subsequente, para que finalmente soubessem o que ocorreu exatamente com seus entes queridos e lhes fosse possível recuperar seus corpos.
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