domingo, 13 de maio de 2012

Documentos alemães recentemente revelados mostram falhas na criação do euro (I)

[Na tradução abaixo, o que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade. O longo relato da Spiegel Online sobre os bastidores da criação do euros, visto do front alemão, com base em documentos oficiais alemães até então confidenciais, revelam de maneira inequívoca a enorme responsabilidade da Alemanha nos erros de criação do euro, que ainda persistem. Esse relato, a meu ver, explica em grande medida e justifica em parte, sob a ótica alemã, a obsessão da Alemanha de hoje, via Angela Merkel, em impor um austeridade autofágica à zona do euro -- parece-me, agora, nítida a intenção de Merkel de tentar corrigir os erros da Alemanha do chanceler Helmut Kohl.]

Documentos do governo alemão recentemente liberados revelam que muitos na chancelaria de Helmut Kohl tinham profundas dúvidas sobre uma moeda única europeia, quando ela foi introduzida em 1998. Primeiro e acima de tudo, especialistas apontaram a Itália como sendo o elo fraco do euro. As falhas iniciais precisam ainda ser corrigidas.

Foi pouco antes de sua partida para Bruxelas que o chanceler foi dominado pela inequívoca magnitude do momento. Helmut Kohl disse que o "peso da História" se tornaria palpável naquele fim de semana; a decisão de estabelecer a união monetária, ele disse, era motivo para uma "alegre celebração". Logo depois, em 2 de maio de 1998, Kohl e suas contrapartes chegaram a uma séria e importante decisão. Onze países se tornariam parte da nova moeda europeia, incluindo Alemanha, França, os países do Benelux [Bélgica, Holanda e Luxemburgo] e ... a Itália.

Hoje, 14 anos depois, o peso da História tornou-se realmente extraordinário. Mas, ninguém está mais com ânimo para comemorar. Na realidade, o clima era completamente sombrio quando a atual chanceler Angela Merkel encontrou-se com sua contraparte italiana, Mario Monti, em Roma há seis semanas atrás. Ainda quando os mercados estavam prematuramente celebrando o fim da crise do euro, a chanceler alertou: "A Europa ainda não ultrapassou o ponto crítico". Ela observou também que novos desafios surgiriam constantemente nos anos vindouros. Seu anfitrião reconheceu que seu país não havia ainda sequer superado a fase mais crítica, e que a luta para salvar o euro permanecia um "desafio ainda presente". 

Não durou muito para que as preocupações dos dois líderes se mostrassem justificadas. A economia espanhola continua em seu declínio, as taxas de juros para os bônus governamentais  dos países do sul da Europa estão subindo novamente, e os resultados das eleições tanto na França quanto na Grécia mostraram que os cidadãos estão cansados de programas de austeridade. Em poucas palavras, ninguém pode estar seguro de que a união monetária sobreviverá no longo prazo.

Muitos dos problemas do euro remontam a seus defeitos de origem. Por razões políticas, países foram incluídos [na zona do euro] sem estarem prontos para isso. Além disso, uma moeda comum não consegue sobreviver no longo prazo se não for respaldada por uma união política. Ainda quando o euro nascia, muitos especialistas advertiram que não havia coesão entre os membros da união monetária. Mas, não apenas especialistas pensavam assim. Documentos da administração Kohl, mantidos secretos até agora, indicam que os fundadores do euro estavam bem cientes de suas deficiências, mas levaram adiante o projeto mesmo assim.

Em resposta a uma solicitação da [revista alemã online] Spiegel, o Governo alemão, pela primeira vez, liberou centenas de páginas de documentos do período 1994 a 1998 sobre a introdução do euro e a inclusão da Itália na eurozona. Tais documentos incluem relatórios da embaixada alemã em Roma, memos e cartas governamentais internos, e atas manuscritas de reuniões do chanceler. Os documentos comprovam o que até  agora era apenas suposto: a Itália nunca deveria ter sido aceita na zona de moeda comum. A decisão de se convidar Roma para se juntar ao grupo baseou-se quase exclusivamente em considerações políticas, em detrimentos dos critérios econômicos. Isso criou também um precedente para um erro muito maior dois anos mais tarde, que foi a inclusão da Grécia na zona do euro.

Em vez de esperar até que os requisitos econômicos para uma moeda comum estivessem preenchidos, Kohl quis demonstrar que a Alemanha, ainda mais após sua reunificação, continuava profundamente europeia em sua orientação.  Ele até referiu-se à nova moeda como uma "parcela de garantia de paz". Obviamente, dados financeiros não têm muita importância quando se trata de guerra e paz. A Itália tornou-se um exemplo perfeito da firme crença dos políticos de que o desenvolvimento econômico acabaria por adequar-se às visões dos líderes nacionais.

A administração Kohl não pode, porém, alegar ignorância. Na realidade, os documentos evidenciam que ela estava extremamente bem informada sobre o estado das finanças italianas. Muitas medidas de austeridade eram simplesmente "enfeites de bolo" -- ou eram truques contábeis, ou eram imediatamente minimizadas quando a pressão política acalmava. Era uma situação paradoxal. Enquanto Kohl pressionava pela moeda comum contra todas as resistências, seus especialistas confirmavam, na essência, a avaliação de Gerhard Schröder, o candidato a chanceler na época pelo centro-esquerdista Partido Social Democrático (SPD) que chamava o euro de "bebê prematuro doentio". [Vejam as recentíssimas sugestões do mesmo Schröder para soluçao da crise do euro.]

A operação "auto-engano" começou em dezembro de 1991, em um prédio de escritórios na cidade holandesa de Maastricht, a capital da província de Limburg, no sudeste do país. Os chefes de Estado e de Governo europeus se reuniram para tomar a decisão do século, a introdução do euro em 1999. Para garantir a estabilidade da nova moeda, foram acordados critérios estritos de acesso [à zona do euro]. Para serem aceitos, os países postulantes precisavam ter empréstimos novos reduzidos e seus níveis de dívida sob controle. A Comissão Europeia e o Instituto Monetário Europeu ficaram responsáveis pelo monitoramento do desenvolvimento do processo, e os líderes europeus deveriam chegar à decisão final na primavera de 1998.

Fortuitamente, a Itália preenchia todos os requisitos quando a data se aproximou -- surpreendentemente, porque ela havia adquirido uma reputação de apresentar orçamentos ostensivamente desequilibrados. Mas, o país havia passado por uma cura milagrosa -- pelo menos no papel. Funcionários da chancelaria alemã em Bonn tinham suas dúvidas. Em fevereiro de 1997, em seguida a uma reunião germano-italiana, um funcionário chamou atenção para o fato de que o governo em Roma havia subitamente anunciado, "para grande surpresa dos alemães", que seu deficit orçamentário era menor do que o que havia sido indicado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pela Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE). Pouco antes da reunião, um funcionário sênior alemão havia escrito em um memo que novas regras de lançamento de juros haviam, por si só, resultado em uma redução de 0,26% no deficit orçamentário italiano.

Poucos meses depois, Jürgen Stark, um secretário executivo no Ministério de Finanças alemão, relatou que os governos da Itália e da Bélgica "haviam pressionado os presidentes de seus bancos centrais, contrariamente à prometida independência dos bancos centrais". Supunha-se aparentemente que os principais banqueiros assegurariam que os inspetores do FMI "não adotariam tal abordagem crítica" aos níveis de dívida dos dois países. No início de 1998, o Tesouro italiano publicou cifras tão positivas sobre a situação financeira do país que até mesmo um porta-voz da instituição as descreveu como "surpreendentes".

Em Maastricht, Kohl e outros líderes haviam acordado que a dívida total de um país candidato ao euro não poderia exceder 60% de seu PIB anual, "a menos que essa relação esteja declinando suficientemente e esteja rapidamente se aproximando do valor de referência". Mas, o nível da dívida da Itália era o dobro desse valor, e o país estava se aproximando apenas a passo de cágado do valor de referência. Entre 1994 e 1997, sua relação dívida/PIB decresceu ao todo três pontos percentuais. "Um nível de endividamento de 120% significava que aquele critério de convergência não poderia ser satisfeito", diz hoje Stark. "Mas, a questão política relevante era: membros fundadores da Comunidade Econômica Europeia podem ser excluídos?".

Especialistas do governo sabiam da resposta há muito tempo."Até bem tarde em 1997, nós no Ministério das Finanças não acreditávamos que a Itália seria capaz de satisfazer os critérios de convergência", diz Klaus Regling, naquela época Diretor-General para Relações Financeiras Europeias e Internacionais no Ministério das Finanças. Atualmente, Regling é o principal executivo do fundo temporário de resgate do euro, o European Financial Stability Facility (EFSF).

O ceticismo é refletido nos documentos. Em 3 de fevereiro de 1997, o Ministério das Finanças alemão registrou que em Roma "importantes medidas estruturais de redução de custos foram quase completamente omitidas, desconsiderando o consenso social". Em 22 de abril, notas dirigidas ao chanceler afirmavam que "quase não havia chance" de que a "Itália preenchesse os requisitos" [de convergência]. Em 5 de junho, o departamento de Economia da chancelaria informava que a perspectiva de crescimento da Itália era "moderada" e que o progresso na consolidação era "superestimado".

Em 1998, o ano decisivo para a introdução do euro, nada em relação a essa avaliação havia mudado. Preparando-se para uma reunião com uma delegação do governo italiano em 22 de janeiro, o Secretário de Estado Stark comentou que "a longevidade de finanças públicas sólidas não estava ainda garantida".


(cont.)




Nenhum comentário:

Postar um comentário