domingo, 20 de maio de 2012

Facebook, GPS, smartphone -- como conciliar coleta de dados e vida privada (I)

[Traduzo a seguir, em duas partes, dada sua extensão, um interessante artigo publicado pelo prestigioso jornal francês Le Monde no dia 16 de maio sobre o que já vem sendo feito na internet com os nossos dados pessoais -- e o que ainda está por vir -- muitas vezes sem que saibamos. A questão do direito à privacidade na internet é cada vez mais premente, enquanto as pessoas ridícula e perigosamente expõem suas vidas privadas de maneira cada vez mais absurda nas redes sociais. Já abordei em outras postagens essa questão cada vez mais atual e angustiante da invasão de privacidade na internet: em 29/11/11, em 01/12/11, em 17/1/12 (este relata um caso emblemático), em 31/1/12, em 01/3/12, em 02/3/12, em 13/4/12, etc.]

Já são agora duas décadas que teclamos em nossos computadores, telefones, smartphones e, de agora em diante, tablets. Mais de oito em dez internautas no mundo são filiados a uma rede social. Os mais "ligados" -- 200 milhões de pessoas segundo a ComScore, especializada em medição de audiência na internet -- tuítam informações e estados de espírito em tempo real.

Timidamente ou avidamente, trocamos emails íntimos ou profissionais, falamos de tudo ao telefone, nas ruas ou nos transportes sem distinção, seguimos no carro as instruções de um GPS, multiplicamos as aplicações em nossos smartphones ... E, na maioria das vezes, aceitamos as condições gerais de utilização dessas novas ferramentas sem sequer lê-las.

Essa aceitação, porém, equivale frequentemente a um "abre-te sésamo" para o compartilhamento de dados de cuja existência sequer suspeitamos. Na realidade, um smartphone é um computador. "Um iPhone é mais poderoso que o computador da espaçonave Apollo dos anos 1970", define o especialista em informática Jean-Pierre Bourdais, fundador da empresa de segurança na internet Ixxo. Ele é igualmente um sensor ultrassensível, que pode transmitir nossa localização graças ao seu GPS ou nossa velocidade de deslocamento com a ajuda de seu acelerômetro. Seu microfone pode registrar os sons, seu software pode entender nossos emails ou nossos tweets ...

O volume de dados dobra a cada 18 meses

Todas essas informações são dados numéricos concentrados nos "big data", bases de dados gigantescas. O volume desses dados no planeta dobra a cada 18 meses, e só em 2011 se armazenou mais dados que entre o início do século XX e 2010.

E se grandes máquinas conseguissem absorver, digerir, analisar e interpretar tudo isso? Tornar-se-ia então possível conhecer e prever a circulação nas cidades, nossos deslocamentos, nossos hábitos de consumo, nossos pontos de interesse e até mesmo nossas opiniões ... Você não está sonhando, isso já está acontecendo, ou quase. Esse tratamento estatístico maciço tornou-se possível pela "nuvem", palavra poética que designa grandes "fazendas" informáticas, situadas um pouco por toda parte sobre o planeta e capazes de armazenar o que se lhes demandar.

Essa realidade numérica é ilustrada pela entrada em Bolsa do Facebook, prevista para o dia 18 de maio [ontem -- o artigo que traduzo do Le Monde é do dia 16]. Se essa rede social mundial, criada há apenas oito anos, está avaliada entre 75 e 95 bilhões de dólares [na realidade,no lançamento em Bolsa seu valor chegou a US$ 104,6 bilhões], isto se deve a cada um de nós. Nós, os 850 milhões de membros que [ali] nos abrimos nas noites de melancolia, compartilhamos nossas fotos de aniversários, destilamos nossos comentários raivosos ou inflamados quando de eleições presidenciais. Nossas vidas íntimas e complexas fazem o valor do Facebook. E a exploração estatística dessa massa de informações, que envolve um oitavo dos habitantes do planeta, excita a imaginação do mundo econômico.

[Vejam o vídeo SPRING SPREE — spending patterns in Spain during easter 2011 , que mostra as compras realizadas na Espanha durante a Páscoa. Para fazer essa representação espaço-temporal, em 2011, o Senseable City Lab fechou uma parceria com um grupo bancário.]

Os primeiros exemplos de utilização dos "big data" mostram o campo de suas possibilidades. Com rapidez maior que os dados de campo da Organização Mundial da Saúde (OMS), a ferramenta gratuita Google Flu Trends (Tendências da Gripe - Google) acompanha "quase em tempo real a propagação mundial do vírus da gripe, baseando-se nas solicitações dos internautas", explica Johanna Wright, chefe de produto do Google.

O aplicativo Google Insights for Search permite, de fato, visualizar mês a mês os interesses dos internautas. Assim, por exemplo, os termos "démocratie" e "democracy" em queda de uso a partir de 2004 se estabilizam a partir de 2010. Os resultados podem ser afinados por país, e o Google sinaliza até mesmo qual poderia ser sua tendência futura.

Na nossa vida quotidiana, já podemos seguir os passos de nossos filhos -- portando smartphones -- por meio do mapmymobile.com . A partir de agora, podemos rastrear grupos ou multidões. Em Nova Iorque, o aplicativo Cabsense analisa as dezenas de milhões de dados GPS dos táxis para poder nos ajudar a encontrar um. Na França, a empresa Visibrain examina minuto a minuto a "twittosfera": são propostos estudos de marketing e avaliações de campanhas publicitárias. É feita a localização das pessoas mais influentes na rede.

Isso é apenas o começo. A fascinação planetária pelos smartphones -- em 2011 suas vendas, junto com as dos tablets, superaram as dos computadores -- estimula as pesquisas como um doping. Essas pequenas máquinas estão muito bem informadas a nosso respeito. Tanto os gigantes (Facebook, Google, Apple, IBM, Nokia, etc) como as pequenas empresas inventivas da internet cobiçam a exploração desses dados para fins comerciais: previsão de modelos societários, direcionamento de marketing aos consumidores, para propor-lhes produtos adaptados [ao seu perfil] e serviços inovadores.

"Existe uma guerra entre as operadoras telefônicas, os fabricantes de telefones e os criadores de aplicativos", confirma Alexandre Bayen, responsável pelo laboratório Mobile Milennium na Universidade de Berkeley. "Centenas de criadores de aplicativos dispõem de dados fragmentados, mas muito poucos têm uma massa de informações como o Google, o Facebook ou a Apple".

"Você não é o consumidor: você é o produto vendido"

Como avaliar tais riquezas? É difícil dizer, mesmo que o valor bursátil anunciado para o Facebook indique os valores extremos com os quais os mercados as avaliem. Alexandre Bayen foi comissionado pelo poder público americano exatamente para estimar seu valor. Esse pesquisador descreve as espantosas trocas realizadas pelos atores do mercado: "Certas empresas, como a Waze (criadora de um aplicativo GPS gratuito, telecarregável em smartphones), negociam dados sobre a circulação automotiva com os fabricantes de veículos, em troca de um equipamento do aplicativo colocado nas viaturas". Informações sobre nossos deslocamentos versus o ganho de fatias do mercado! Como o resume o blogueiro americano Andrew Lewis: "se você não pagar por um serviço na net, é porque você não é o consumidor -- você é o produto vendido".

É exatamente sobre a circulação de veículos que o tratamento dos "big data" vem aportar sua primeira grande contribuição: a partir de agora compreendemos melhor como se formam e se dissolvem os engarrafamentos. Um belo avanço, pois 80% das emissões de CO₂ provêm das zonas urbanas. A IBM comercializa algoritmos para otimizar a circulação em Londres, Estocolmo, Tóquio, informa Chid Apte, diretor de pesquisas analíticas para o fabricante. O laboratório Senseable City Lab, do Massachussetts Institute of Tecnology (MIT), trabalha com Moscou, Rio, Copenhague e Nova Iorque, informa seu diretor Assaf Biderman.

Em Cingapura, um verdadeiro laboratório tecnológico planetário, "prevemos com 80% de precisão, uma hora antes, a círculação de veículos", explica Sébastien Blandin, pesquisador da IBM nessa cidade-estado. Primeira a colocar em prática um pedágio urbano, nos anos 1970,  Cingapura quer a partir de agora utilizar os "big data" para suprimir os postos de pedágio -- os motoristas, seguidos via GPS, pagarão por seu trajeto real. A IBM se interessa também pelos pedestres de Cingapura, "para saber o que fazem, uma vez estacionado seu carro numa garagem ou saltado de um ônibus", acrescenta Blandin. Para seguí-los, os cientistas projetam colocar câmeras e sensores nas infraestruturas urbanas.

Na França, o MIT trabalha com a SNCF [a estatal ferroviária francesa] sobre um aplicativo, telecarregável em smartphone, que calcularia nosso balanço de carbono ao longo de um trajeto. "Os sensores múltiplos do telefone determinam automaticamente se a pessoa tomou um ônibus, um trem ...", explica Assaf Biderman.

Meios "eficazes" para sondar o público

E as pesquisas continuam. Nova cornucópia ou fonte de abundância: as redes sociais e a massa de informações privadas, espelhos de nossas personalidades, que elas veiculam. "A web 2.0 está ultrapassada, estamos agora na web social", comenta Alexandre Bayen, da Universidade de Berkeley. A IBM busca explorar "os dados não estruturados" ou seja, tudo aquilo que não é facilmente enquadrável: vídeos, blogues, tweets ou SMS produzidos por cada um de nós. O objetivo? Propor serviços inovadores e remuneradores. Desse modo, eis um aplicativo já sob a forma de protótipo na IBM: "Pela análise semântica de seus tweets você verifica que uma pessoa está no aeroporto", explica Rick Laurence, pesquisador de informática na IBM Research. "Você identifica pelo GPS que ela passa pela zona de controle -- o aplicativo calcula o tempo de passagem pela segurança". E assim se pode, portanto, orientar um outro viajante que esteja chegando a esse aeroporto.

A IBM está igualmente atenta ao tratamento informático do sentido dos "250 milhões de tweets diários que são outro tanto de instantâneos dos interesses da nossa sociedade", acrescenta Rick Laurence. Política, consumo, opinião: para tratar informaticamente a linguagem falada, a IBM utiliza a Wikipedia. Se alguém fala de Myst e de Riven, a máquina entenderá que esses dois termos estão conectados e se referem ao jogo de vídeo. O cientista admite ter sido contatado por equipes de políticos americanos na busca de meios "eficazes" para sondar o público.

Na mesma linha, a start-up [empresa iniciante em determinado ramo] Windward cartografa as correntes de pensamento mundiais, por meio de "árvores" impressionantes que conectam os temas abordados nos tweets (uma versão de teste está disponível em http://labs.windward.net ). "Quando tivermos bastante dados históricos, determinaremos as tendências prospectivas", explica o especialista em informática En-Jay Hsu.


(cont.)




















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