[Vejam postagem anterior, com a Parte II da série publicada pela Spiegel Online.]
Parte III: A Itália se afasta da austeridade
Muitos sabiam que as cifras [italianas] haviam sido maquiadas, e que dificilmente representavam uma redução real da dívida. Mas, ninguém se atreveu a explicitar as consequências. Kohl confiava nas reiteradas alegações de Ciampi de que os italianos continuariam no "cammino virtuoso" (caminho virtuoso) em que haviam se engajado e seriam "incansáveis nos esforços para sanear o orçamento". O governo em Roma previu que seu nível de dívida baixaria para 60% do PIB no mais tardar em 2010.
Não foi isso o que ocorreu. Tão cedo quanto abril de 1998 -- ou seja, antes da decisão oficial sobre quais países fariam parte do euro -- houve sinais crescentes de que parceiros da coalizão de Prodi, os neocomunistas, estavam apenas esperando para retornar aos seus velhos hábitos. Em 3 de abril, a embaixada alemão em Roma advertiu que esse risco "não devia ser ignorado".
Três meses mais tarde, quando a Itália havia assegurado sua participação no euro, o problema chegou a um ponto em que algo tinha que ser feito. Em 10 de julho de 1998, o embaixador Kastrup externou às autoridades em Bonn sua preocupação com a Itália, que estava seriamente afetada de "estagnação" e "esgotamento" e o governo em Roma estava "fazendo uma pausa após seu esforço extraordinário para satisfazer os critérios de Maastricht". A pausa tornou-se a situação vigente. No início de agosto, o ministro das Finanças italiano admitiu que o deficit orçamentário havia sido mais alto nos sete primeiros meses do que no mesmo período do ano anterior -- um período que havia sido crítico para a aceitação da Itália no clube do euro.
Stephan Freiherr von Stenglin, o adido financeiro da embaixada alemã em Roma, ainda não havia perdido completamente a crença na vontade da Itália em cortar custos. "Uma falha em alcançar neste ano a meta do deficit provavelmente causará um dano considerável à credibilidade da política de consolidação italiana", escreveu Stenglin.
"Um desvio qualitativo"
Nesse meio-tempo, entretanto, havia começado a fase mais intensa da campanha para a eleição geral alemã. A disputa entre Kohl e seu desafiante Schröder se concentrava na política doméstica, não no euro. Isso não se alteou após a eleição, não importando quantas mensagens alarmantes o adido financeiro Stenglin enviara a Bonn. Em 1° de outubro, ele apresentou uma análise dura e sem cerimônias da política fiscal italiana, que ele escondeu sob o inofensivo título: "Governo italiano aprova minuta para o orçamento de 1999". Stenglin, que havia sido enviado a Roma a partir de sua posição no Bundesbank (Banco Federal da Alemanha), percebeu que o desenvolvimento da situação na Itália estava se movendo na direção completamente errada. A minuta de orçamento do governo italiano, ele informou a Bonn, significava um "desvio qualitativo na política orçamentária".
De acordo com Stenglin, o orçamento mostrava as cifras mais baixas de cortes de gastos desde o início do caminho da consolidação no começo dos anos 1990s. Receitas adicionais oriundas de impostos, observou ele, não seriam mais usadas unicamente para reduzir o deficit mas também para pagar novos gastos, particularmente em programas sociais. O governo, escreveu Stenglin, não podia evitar dar a impressão de que estava "mais interessado em afastar-se do estrito caminho de consolidação de anos recentes, do que fazer todo o possível para eliminar dúvidas relativas à sustentabilidade das finanças públicas da Itália".
Quando Prodi foi substituído pouco tempo depois pelo ex-comunista Massimo d'Alema, a situação se deteriorou ainda mais. D'Alema propôs que se financiasse um programa de estímulo econômico europeu através de eurobônus, e não se incluíssem nos deficits nacionais os gastos aí associados. O novo governo de coalizão alemão SPD - Partido Verde, liderado por Schröder, rejeitou essa proposta. Contudo, a nova abordagem se estabeleceu em Roma, como escreveu Stenglin para Bonn em 18 de novembro. Ele assinalou que membros do governo estavam exigindo que a consolidação orçamentária fosse expandida, o pacto de estabilidade fosse interpretado mais flexivelmente e a Itália fosse libertada "das algemas do Tratado de Maastricht".
O Turbilhão da Crise
Poucas semanas antes do lançamento da moeda comum europeia, a avaliação de Stenglin sobre a situação assumiu um tom dramático quando ele escreveu: "a questão que se apresenta é se um país com nível de dívida extremamente alto não arrisca jogar fora o êxito de seus esforços de consolidação até então, prejudicando assim não apenas a si próprio mas também a união monetária". Foi uma observação profética. No outono de 2011, quando o país foi levado ao turbilhão da crise, o nível da dívida havia novamente subido a mais de 120% do PIB.
Kurt Biedenkopf, um membro do partido de centro-direita União Democrática Cristã (CDU), predisse, antes até da introdução do euro, o dilema em que se encontra hoje a união monetária. Na época, Biedenkopf era governador do estado da Saxônia (leste da Alemanha) -- e foi o único governador a votar contra a união monetária no Bundesrat [Conselho Federal], o órgão legislativo que representa os estados alemães. "A Europa não estava pronta para aquele passo naquele momento histórico", diz hoje Biedenkopf, observando que, individualmente, os países diferiam de maneira muito ampla em termos de desempenho econômico [bingo! - o óbvio ululante]. "A maioria dos políticos na Alemanha pensava que o euro funcionaria mesmo sem instituições e sem transferências financeiras. Aquilo era ingenuidade".
Enquanto isso, líderes europeus estão tentando corrigir os defeitos da fase de criação do euro. Medidas de austeridade e reforma estão sendo implementadas em grandes partes da Europa, e todos os países apoiam a ideia de responsabilidade conjunta pela moeda. Entretanto, a nova arquitetura do euro não difere tanto da velha.
Quando o euro foi inicialmente idealizado, o governo em Bonn acreditava que era suficiente estipular regras de dívida estritas em um acordo e confiar em que os países membros iriam, de forma responsável, implementar as reformas estruturais necessárias [esta ingenuidade, tratando-se de alemães, é espantosa, para dizer o mínimo]. Hoje, o novo pacto fiscal da Europa visa a ensinar aos países membros uma sólida gestão orçamentária e estimular neles uma vontade de produzir reformas. Em outras palavras, o procedimento original, que foi incapaz de sobreviver ao seu primeiro teste de estresse, foi apenas ligeiramente modificado. Não há ainda uma instituição central que possa, à força, impor a disciplina necessária. Infratores continuarão ainda a julgar/criticar outros infratores dentro do círculo de chefes de governo europeus.
Sem solução, ainda
Os arquivos governamentais da fase de criação da união monetária revelam que essa construção não consegue funcionar. A mensagem que os documentos transmitem é que o oportunismo político prevalecerá, no final das contas. Uma união monetária significa mais do que transferir vários bilhões de euros de um lado para o outro. É também uma comunidade de destinos/sinas. Dinheiro compartilhado exige política [lato sensu] compartilhada e, afinal, instituições compartilhadas.
O euro está hoje em seu 14° ano de existência e, após dois anos de crise ininterrupta, há uma percepção crescente em Berlim e em outras capitais de que a situação vigente não pode persistir [já era tempo ...]. Todos os esforços reformistas ainda se assemelham a pequenos passos rumo a lugar algum e, ao mesmo tempo, os políticos estão começando a pensar em termos mais amplos à medida que lidam com a crise. O novo pacto fiscal não está ainda gerando uma solução rápida e, como resultado, políticos europeus estão desenvolvendo visões novas enquanto velhos tabus estão caindo.
Enquanto os países do sul e a França estão aceitando e chegando a um entendimento quanto a um freio na dívida com base no modelo alemão, o governo alemão não tem mais quaisquer objeções contra uma governança econômica dentro da zona do euro, uma ideia francesa que já teve uma firme oposição da Alemanha. O ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble, por seu lado, está cogitando de elevar o comissário financeiro da UE à posição de uma espécie de ministro europeu das Finanças, que monitoraria os orçamentos dos países membros da eurozona e teria igualmente o poder de interferir, se necessário [esse super ministro com esse poder, se confirmado, seria mais uma impressionante demonstração de cessão de soberania dos participantes da zona do euro].
Todas essas medidas têm como característica principal os países individualmente renunciarem a ter mais autoridade e, em troca, o governo central em Bruxelas ter mais poder. Se os membros da união monetária se esforçarem para compensar rapidamente o que negligenciaram antes de embarcar na aventura do euro, o projeto do século pode ainda ser bem sucedido. Mas, quanto mais atraso sofrerem as reformas necessárias, mais onerosa se tornará a jornada para cada país.
(Traduzido do alemão para o inglês por Christopher Sultan).
Comentário recebido por email:
ResponderExcluirAmigo VASCO:
Desculpe por não ter tido a competencia de postar esse comentário junto aos artigos citados acima.
Evidentemente, não sou nenhum especialista em Politica Exterior, nem mesmo em História Contemporãnea, mas não vou me furtar de apresentar alguns comentários aos
assuntos tratados, como sempre, brilhantemente por você.
Vou me permitir falar um pouco mais do passado, até mesmo retrocedendo no tempo em que o Homem passou a ser Gregário, abandonando o estilo Nômade..
Conceitos como TERRA, ÁREA, PROPRIEDADE, Etc., começaram a aparecer. As populações (pequenas e tribais, em sua natureza) não conseguiam produzir tudo de que necessitavam, mas também produziam itens que eram muito mais do que também
necessitavam.
A proximidade de tais comunidades, em épocas passadas, levou ao estabelecimento de um
mecanismo de intercambio entre essas populações (pequenas) na base da TROCA.
Isso passou para a História como ESCAMBO (um mecanismo de troca, onde o valor era
arbitrado pelos envolvidos na operação).
Seguramente, esse mecanismo de TROCA se estendeu para outros setores, além da troca simples de mercadorias e bens dos participantes interessados em fazê-los. Invadiu a modalidade SERVIÇOS, onde uma atividade deveria ser remunerada por algum BEM.
Parece simples, mas a idéia é de que só existem duas modalidades de produção: BENS e SERVIÇOS.
A dificuldade em valorar cada uma delas levou ao conceito de MOEDA, onde se atribui um determinado
valor de um BEM ou SERVIÇO a um certo valor em MOEDA, um ente abstrato que se tornou real.
As MOEDAS proliferaram, com cada entidade (seja tribo, estado, depois pais, etc.) criando a sua própria, que circulavam internamente, intermediando as trocas de BENS e SERVIÇOS.
As dificuldades começaram a aparecer quando da troca com outras entidades de moedas diferentes.
Havia que estabelecer uma EQUIVALÊNCIA entre o valor de, digamos, um BOI com outras entidades diferentes, de tal maneira que satisfizesse ambas as partes em uma possível negociação.
E daí para a frente.
(cont.)
Comentário recebido por email (parte II):
ResponderExcluirO mundo assistiu a uma tentativa de unificação das diversas moedas, após a Segunda Guerra Mundial, com a criação do Padrão Dolar com moeda equivalente de trocas, enganosamente lastreado nas reservas de ouro dos países.
Aparentemente, isso explica o "sucesso" do Plano MARSHALL aplicado à Europa no pós-guerra. Quem emitia os dólares eram os ESTADOS UNIDOS que assim estabeleceram um patamar para a troca de BENS e SERVIÇOS, nem sempre um acôrdo de equivalencia entre as moedas negociadas.
Tudo isso para dizer que a criação de uma MOEDA ÚNICA é, a meu ver, INVIÁVEL.
Acho que vai levar algum tempo para que os países descubram isso, até porque a moeda única significa, em síntese, uma TUTELA de um país (ou grupo de países) sobre outros. Nessa linha de raciocínio, isso explica a não-adoção da INGLATERRA ao Padrão EURO.
Mas, em minha opinião, os problemas da Europa, unida ou não por uma moeda única, é mais sério.
Diversos países europeus foram colonizadores de regiões ao longo do mundo, principalmente a ÁFRICA.
Os movimento de independência que se observou nas últimas décadas, levou a população desses países, "emancipados" à situações de extrema pobreza. Mas essas populações se acham no direito `uma cidadania, a mesma dos seus antigos colonizadores.
Isso gerou um movimento de migração, e de procura de igualdade de direitos, que hoje afeta vários países europeus. Não parece haver solução para tal situação.
Mais uma questão que afeta países da Europa e alguns da Asia. Muitos foram constituidos artificialmente pela união de várias "tribos" que se conflitaram por séculos, como a antiga Tcheco-eslovaquia e a Iugoslávia (hoje, desaparecidas). Até mesmo na região entre Espanha e França ainda existe conflito com os Bascos. Na Irlanda, os conflitos eram religiosos.
Esses conflitos são, em minha opinião, muito mais sérios dos que os criados pela existência de uma moeda única em uma região, mesmo que não envolvam algumas dessas regiões em permanente conflito, pela simples razão de que não há UNIDADE DE PENSAMENTO.
Essa (des)união tribal se observa em outras partes do mundo, como Afeganistão, Iraque, Paquistão, e até na China, com a exclusão do Tibet. São essas as razões, sob meu ponto de vista, que levam ao fracasso de qualquer tentativa de UNIFICAR o que não pode ser UNIFICADO.
Abraços - LEVY