segunda-feira, 14 de maio de 2012

Documentos alemães recentemente revelados mostram falhas na criação do euro (II)

[Ver primeira parte do artigo, tradução texto publicado na Spiegel Online de 8 de maio.]

Parte 2: "Não sem os italianos"

Horst Köhler escreveu para o chanceler em meados de março. Inicialmente o principal negociador alemão nas negociações do Tratado de Maastricht, Köhler havia se tornado presidente da Associação Alemã de Bancos de Poupança. Anexo à sua carta havia um estudo pelo Instituto de Economia Internacional de Hamburgo, que concluía que a Itália não havia preenchido as condições "para uma redução permanente e sustentável do deficit e da dívida" e que ela representava um "risco notável" para o euro. Mas, Kohl desconsiderou seu ex-auxiliar de confiança. Obviamente, os europeus teriam que continuar suas reformas estruturais, contestou ele, mas confiava em que os governos fariam frente ao desafio "nos anos vindouros".

Em uma reunião de cúpula especial da União Europeia em Bruxelas no início de maio de 1998, Kohl sentiu o "peso da História" e, imediatamente, garantiu seu apoio sem reservas. "Não sem os italianos, por favor. Este era o lema", diz Joachim Bitterlich, conselheiro de Kohl em política externa.

Os documentos liberados agora indicam que a administração Kohl enganou tanto o povo, como a Corte Constitucional Federal da Alemanha. Quatro professores haviam na época ingressado com uma ação contra a introdução do euro. A ação era "inequivocamente sem mérito", o governo disse à corte, argumentando que ela se justificaria apenas no caso de um "desvio substancial" dos critérios de Maastricht, e tal desvio não era "nem vislumbrável, nem esperado". Verdade? Em seguida a uma reunião entre o chanceler, o ministro das Finanças Theo Weigel e o presidente do Bundesbank [Banco Federal Alemão] Hans Tietmeyer sobre o processo na Corte Constitucional Federal, o chefe da divisão de economia da Chancelaria, Sighart Nehring, registrou em meados de março de 1998 que "riscos enormes" estavam associados aos "altos níveis de dívida" da Itália. A estrutura da dívida, acrescentou Nehring, era "desfavorável", e os desembolsos e gastos subiriam consideravelmente com apenas um pequeno aumento nas taxas de juros.

Um amor pela Itália

Mas, o memo não teve repercussão. O chanceler, aparentemente, não estava muito interessado em detalhes. Houve uma "flexibilidade intrínseca" entre os políticos quando se tratou dos critérios de Maastricht, diz Dieter Kastrup, embaixador alemão na Itália na época. A Itália, afinal, era um membro fundador da União Europeia (UE), e os italianos nunca se comportaram tão inadequadamente em Bruxelas como os franceses fizeram sob a liderança de Charles de Gaulle, ou os britânicos liderados por Margareth Thatcher. E, finalmente, não havia Goethe se tornado também lírico sobre a Itália? "Nós todos compartilhávamos um certo amor pela Itália", diz Bitterlich.

Autoridades em Bonn depositavam suas esperanças em dois homens encarregados de arrumar a casa na Itália: o primeiro-ministro Romano Prodi, um calmo professor de Bolonha, e seu ascético ministro do Orçamento e Planejamento Econômico, Carlo Ciampi, que presidira o banco central italiano por muitos anos. Os dois tecnocratas chegaram ao poder depois que o velho sistema partidário italiano mergulhou num turbilhão de corrupção e de conexões com a máfia. Prodi e sua aliança de centro-esquerda "Ulivo" ("Oliveira") ganharam a eleição em 1996.

Kohl havia idolatrado o pequeno e liberal professor desde o início. Ciampi, que havia frequentado uma escola jesuíta na Toscana, também desfrutava de boa reputação com os alemães. "Sem Ciampi a Itália jamais teria conseguido estar a bordo no início da união monetária", diz o ex-ministro das Finanças, Waigel.

O país estava rumando "para a falência financeira" na ocasião, escreve o historiador Hans Woller. A excessiva burocracia envolvida na criação de uma empresa exigia mais de 60 dias para ser concluída. Os italianos não podiam comprar jornais ao meio-dia porque eles eram vendidos apenas em quiosques, que fechavam para o almoço. O número de aposentados superava o da força de trabalho, e muitas do 1,5 milhão de pessoas classificadas como severamente incapacitadas estavam no melhor de sua saúde.

Truques e boa sorte

Ciampi e Prodi foram relativamente bem sucedidos, em comparação com seus antecessores.  Através de reformas e medidas para cortes de gastos, foram capazes de reduzir a ocorrência de novos empréstimo e baixar a inflação. Mas, o país tinha problemas maiores do que isso, e o governo estava plenamente ciente deles. Na realidade, os italianos por duas vezes em 1997 propuseram o adiamento do lançamento do euro. Mas os alemães rejeitaram a ideia. Isso era um "tabu", diz o ex-conselheiro de Kohl, Bitterlich, mencionando que os alemães estavam depositando suas esperanças em Ciampi. "Todo mundo sentia que ele era o avalista da Itália, de certa maneira, e que ele arrumaria a situação".

Está também claro, obviamente, que Kohl estava determinado a concluir satisfatoriamente a união monetária antes da eleição parlamentar de 1998. Sua reeleição estava em perigo, e seu desafiante, o social-democrata Schröder, era um conhecido euro-cético.

No final, os italianos preencheram formalmente os critérios de Maastricht com uma combinação de truques e circunstâncias afortunadas. O país se beneficiava com taxas de juros historicamente baixas, e Ciampi provou ser um criativo malabarista das finanças. Ele introduziu, por exemplo, um "imposto Europa" e realizou um esperto truque contábil, que envolvia a venda das reservas nacionais em ouro para o banco central e a imposição de um imposto sobre os lucros. O deficit orçamentário encolheu, como consequência. Ainda que, no final das contas, os estatísticos da UE não reconheceram a validade desse ardil, ele simbolizava o problema fundamental dos italianos: o orçamento não estava estruturalmente equilibrado, e na realidade havia se beneficiado de efeitos especiais.

Isso não escapou da atenção de funcionários da Chancelaria. Em um memo datado de 19 de janeiro de 1998, Bitterlich assinalava que a redução do deficit [italiano] baseava-se essencialmente no imposto Europa e em taxas de juros de mercado, que haviam caído consideravelmente em comparação com as taxas de outros países. Poucas semanas depois, representantes do governo holandês contataram a Chancelaria e solicitaram uma "reunião confidencial". O secretário geral do primeiro-ministro [holandês] e um secretário de estado do Ministério de Finanças queriam pressionar Roma. "Sem medidas adicionais da Itália para fornecer uma prova confiável da longevidade da consolidação, é atualmente inaceitável o ingresso da Itália na zona do euro", argumentaram as autoridades holandesas.

A crescente dívida alemã

Preocupado com seu projeto mais importante desde a reunificação da Alemanha, Kohl rejeitou a sugestão. Ele disse aos representantes holandeses que o governo francês o havia alertado de que a França se retiraria do acordo se a Itália fosse excluída.

Os alemães estavam com uma posição fraca para negociar. Quando o assunto era disciplina fiscal, eram autoritários [ah, esses eternos alemães!...] na sua abordagem com o resto da Europa, e no entanto as próprias cifras orçamentárias alemãs eram tudo, exceto exemplares. O nível da dívida soberana alemã estava ligeiramente acima da marca crítica dos 60%. O que era ainda pior é que, em contraste com quase todos os outros países que queriam ser incluídos na primeira rodada da união monetária, a dívida total da Alemanha não estava diminuindo como o tratado exigia, mas na realidade estava aumentando.

A Chancelaria estava ciente do problema. "Em contraste com a Bélgica e a Itália, o nível da dívida alemã tem aumentado desde 1994", escreveram em um memo para Kohl e para o chefe de staff Friedrich Bohl. As consequências eram desagradáveis. "Ao nosso ver, há um problema legal no caso alemão, porque o Tratado de Maastricht concede exceção apenas quando a dívida está decrescendo", prossegue o memo. Kohl e Waigel alegaram circunstâncias atenuantes. Sem a reunificação alemã, argumentaram, a relação dívida/PIB seria de apenas 45% [desculpa de João sem braço -- Kohl de um lado se ufanava da reunificação e, de outro, a usava como biombo]. A desculpa foi "aceita com compreensão" tanto pela Comissão Europeia quanto pelos países parceiros, o que foi um alívio para as autoridades alemãs.

Ainda assim, a situação tornou difícil para a Alemanha agir como juiz, especialmente devido à falta de prova formal de que a Itália violava o tratado. Na primavera de 1998, o setor de estatística da União Europeia atestou que a Itália havia atendido os critérios de deficit do Tratado de Maastricht. Isso significa que "não havia mais qualquer razão para barrar o acesso dos italianos ao euro". Depois que esse obstáculo havia sido removido para os italianos, "eles tinham uma espécie de reivindicação legal para que lhes fosse permitido ser parte do euro desde seu nascedouro", diz hoje Regling, o principal auxiliar de Waigel.

(cont.)


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