quarta-feira, 9 de maio de 2012

Crônica para um rei manco

Em meados de abril passado o rei Juan Carlos, da Espanha, fraturou a bacia em uma queda quando caçava elefantes em Botsuana e teve que ser hospitalizado em seu país. O fato causou enorme revolta entre os espanhóis, primeiro porque a viagem era secreta e ninguém fora do círculo familiar do monarca sabia dela, e segundo porque teria custado 40.000 euros (30 mil teriam sido só pela licença para matar elefantes), num momento de seríssima crise social, econômica e financeira no país. A imprensa caiu de bordoada no rei, que teve que se desculpar publicamente.

Entre as manifestações da imprensa espanhola sobre a caçada do rei houve uma que achei primorosa, escrita por Maruja Torres com o título "Ni uno más" ("Nenhum a mais", em tradução livre) e publicada no jornal El País de 19 de abril e que traduzo a seguir. Mantive, na tradução, o tratamento formal respeitoso adotado pela autora.

Nenhum a mais

Maruja Torres (EL País, 19/4/12, pág. 56)

[O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Queridas viúvas e órfãos da selva, das savanas, das estepes e dos demais enclaves naturais onde costumais buscar sobreviver à maldade dos homens prepotentes e estúpidos: por absoluta falta de transparência, devido a razões óbvias, careço de dados para definir o elenco de baixas que a mais alta autoridade institucional deste país causou deliberadamente a vossas famílias. Sei de ursos, de elefantes, de bisões, de búfalos, de tigres ... Não tenho, porém, a lista completa, ainda que possa imaginá-la.

Dada a idade avançada do cidadão, que começou a atirar muito jovem, e de quem não se conhecem erros desde aquele em que eliminou seu irmão [em março de 1956, o irmão mais novo de Juan Carlos, Alfonso, faleceu devido a um acidente envolvendo arma de fogo, e a imprensa divulgou que a arma havia sido manuseada por Juan Carlos], é muito possível que enquanto nós, aqui, nos debatemos em uma crise terrível, vós, aí, ainda sigais chorando o desaparecimento, por um tiroteio criminoso e covarde, de vossos entes queridos.  Sobretudo vós elefantes, que tendes tão boa memória. Sabei que a maioria dos espanhóis sofre por vossas perdas.

Sabei também que não nos causa o menor alívio o fato de que a última caçada dos vossos [irmãos] pelo nosso monarca titular -- não o é moralmente: esta não é a selva, nem ele é o Rei Leão -- foi custeada por um milionário saudita de origem síria, pertencente a essa outra fauna de gentes endinheiradas que ele frequenta, neste caso sacrificando-se estritamente pela Espanha! Sabei que estamos envergonhados, indignados e saturados de tanta miséria ética e estética, e que vos acompanhamos em vosso sentimentos.

Vos pedimos desculpas. Se a caça devia ter desaparecido com o Neolítico, a monarquia deveria desaparecer agora. Faremos o possível. Enquanto isso, é melhor que vos ponhais a salvo quando divisardes um ancião louro e coradinho, que manca. Ele é letal e está armado.

Um comentário:

  1. Vasco, se assim se chamas, após tão pertinente comentario sôbre as farras da matança realizadas por El Rey, deveria mesmo chamá-lo Botafogo !!

    Rei louro, e armado...tens razão.
    Abraços, Janjão

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