[No dia 20 do mês passado o jornal O Globo publicou uma reportagem que me pareceu extremamente importante e preocupante sobre o que o neurocientista alemão Manfred Spitzer denominou de "demência digital", relativo a problemas de atenção, memória e concentração passíveis de serem desenvolvidos pelos chamados "nativos digitais".
Continua ainda inconclusa e confusa a discussão sobre os efeitos do uso intensivo da Internet sobre o cérebro humano e as inúmeras possíveis consequências daí decorrentes. Naturalmente, a maior dificuldade e o maior desafio residem no que ocorrerá com a geração que está nascendo e se desenvolvendo na era do "touch screen" (ou écran tátil) -- quem tem pequerrucho de 2 anos, ou até um pouco menos, na família fica simplesmente embasbacado com a desenvoltura desses pingos de gente em manobrar a telinha. Com relação a adolescentes e adultos, há na mídia mais informação -- já fiz postagens sobre isso em 01/12/2011 ("Jogos violentos podem alterar funções cerebrais"), em 14/9/2011 ("A tecnologia da informação pode estar gerando estúpidos"), em 7/8/2011 ("O Facebook é bom ou ruim para adolescentes?"), em 7/7/2011 ("As redes sociais e as crianças: é necessário educar "digitalmente" a garotada?"), e em 29/01/2011 ("O que a Internet está fazendo com as nossas mentes?"). Vamos à citada reportagem de O Globo. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]
Jovens que aprenderam a ler no navegador da internet e a escrever
enviando e-mails são o que os especialistas chamam de nativos digitais
[segundo o site da Universidade Nacional de Cingapura, a expressão "nativo digital" surgiu pela primeira vez no trabalho "Digital Natives, Digital Immigrants" de Marc Prensky, publicado em 2001].
Dessa novíssima geração, pouco se sabe sobre como o cérebro dos que
jogam Angry Birds no tablet, passam mensagem pelo Whatsapp e assistem a
Porta dos Fundos no notebook (não raro ao mesmo tempo) vai envelhecer
com tanta informação. O neurocientista alemão Manfred Spitzer, diretor
médico do Departamento de Psiquiatria da Universidade de Ulm, na
Alemanha, dá a sentença: nativos digitais que passam a maior parte do
dia plugados são candidatos a desenvolver, desde já, problemas de
atenção, memória e concentração, mal que ele batizou como “demência
digital”.
Spitzer diz que médicos sul-coreanos já usam o termo para definir estes
sintomas há seis anos. Mês passado, jornais britânicos replicaram uma
notícia vinda da Coreia do Sul de que aumenta o número de diagnósticos
de jovens com a tal demência. O país é conhecido por ser o mais
conectado do mundo, onde 67% da população têm smartphones e, desses, um
em cada cinco fica mais de sete horas conectado
[ver, por exemplo:'Digital dementia' on the rise as young people increasingly rely on technology instead of their brain"].
No Brasil, 36% do donos
de celular têm smartphones, segundo pesquisa da Nielsen de junho.
O mais recente argumento a favor do neurocientista — cujo livro com
título em inglês de “Digital Dementia”, ainda sem tradução para o
português — vem da revista científica "Proceedings of the National
Academy of Sciences" (PNAS), uma das mais importantes do mundo.
Pesquisadores da Universidade Nacional de Cingapura estudaram nativos
digitais chineses de Pequim, Guanzou e Jining e concluíram que essas
crianças têm mais dificuldades com leitura que a média. A explicação é
que os chinezinhos digitais aprendem a escrever as primeiras palavras
usando teclado, onde as palavras se constroem por meio de fonemas, como
no alfabeto latino, e não pela associação direta entre grafia e
significado, como no mandarim. Essa confusão atrapalha o desenvolvimento
intelectual das crianças, conclui o estudo.
"Não há nada que os nativos digitais possam fazer melhor que pessoas mais
velhas", afirma Spitzer, que foi professor visitante em Harvard por
dois anos. "O estudo (de Cingapura) mostra que os dispositivos digitais
também podem apresentar efeitos colaterais".
A milhares de quilômetros de Ulm, em Los Angeles, o neurocientista Gary
Small, professor de psiquiatria da Universidade da Califórnia, concorda
que a cultura digital tem seus efeitos, mas é contra o termo “demência
digital”. Em artigo publicado este ano na revista “Internacional
Psychogeriatric”, Small conclui que as queixas de memória pioram com a
idade, mas estão mais relacionadas a hábitos saudáveis — alimentação,
atividade física e cigarro — do que ao próprio envelhecimento, o que tem
levado mais jovens a se queixarem de esquecimento. [É interessante ler a
entrevista concedida por Gary Small à revista Veja em 12/8/2009.]
"Sabemos que o cérebro é sensível a estímulos e, se um estímulo mental em
particular é extenso, os circuitos neurais que controlam a experiência
vão se fortalecer e se tornar mais eficientes", explica Small depois de
perguntado sobre os efeitos da internet em excesso. "Nativos digitais
melhoram suas habilidades com tecnologia, mas pioram na conversa
presencial, como manter um contato visual e reconhecer expressões não
verbais".
A empresária Sonia Nesi, 66 anos, é do tempo em que se decorava telefone
de cabeça e se fazia conta no lápis. As dúvidas cotidianas duravam
muito mais que dois minutos, pois não existia Google. Ela é avó de
Isadora, de 18 anos, Giovana, de 19 — que aprenderam a ler quando já
existia e-mail e sala de bate-papo na internet — e Enzo, de 10 anos, que
aprendeu as letras quando o mundo conhecia o primeiro modelo de tablet.
Quando têm qualquer dúvida, os três usam o buscador do celular. São
comunicativos, espertos, e se queixam dos colegas que mergulham no
“touch screen“ no intervalo dos estudos. Sonia conta o que observa:
"As mães que vão ao meu salão levam os filhos pequenos que, antes de
aprender a falar, já mexem nos tablets. Minha filha controla bastante o
uso da internet pelos meus netos, senão vira um vício. Aderi às máquinas
também para ter mais assunto com eles. Hoje, o computador me dá chance
de não precisar memorizar muita coisa, mas sei de cor os números das
cores das tintas de cabelo".
Jovens conectados. A empresária Sonia Nesi com os netos, Isadora, Enzo e
Giovana. Enquanto os jovens usam o Google para tirar qualquer dúvida, a
avó é conectada, mas sabe de cor números da tintas que usa em seu salão
- (Foto:
Fabio Seixo /Fonte: O Globo).
Nosso cérebro, ou dos nossos ancestrais de cinco mil anos atrás, quando
nossa espécie inventou a escrita, são rigorosamente iguais. Mas a
capacidade moldar os circuitos neurais de acordo com a necessidade é o
que se chama de neuroplasticidade. O chefe do Laboratório de
Neuroplasticidade do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, Roberto
Lent, diz desconhecer o termo criado pelo colega alemão, e explica que
toda atividade mental, seja usar internet ou tocar instrumentos, tem
seus impactos:
"Nosso cérebro é finito. Vejo o uso de dispositivos móveis como benéfico,
mas, como tudo em excesso, faz mal. A neuroplasticidade pode ocorrer
tanto para o bem quanto para o mal. Músicos que praticam à exaustão
podem desenvolver distonia focal, doença que paralisa o músculo usado
para tocar o instrumento e tem origem exclusivamente cerebral".
Sintomas
Perdas cognitivas
Em jovens, redução da memória, falta de atenção, diminuição de
concentração, sonolência e depressão por causa do excesso de tempo
conectado estão entre os sintomas da recém-descrita “demência digital”.
Olho no olho
De acordo com Gary Small, da Universidade da Califórnia, nativos
digitais tendem a ter dificuldade em manter contato visual em conversas.
O neurocientista alemão Manfred Spitzer - (Foto: Reprodução da Internet/Fonte: O Globo).
Entrevista de O Globo com o neurocientista alemão Manfred Spitzer,
publicada em 20/7:
OGLOBO: É possível dizer que o uso crescente de dispositivos de
comunicação digital está mudando, ou poderá mudar a anatomia cerebral
das próximas gerações?
MANFRED SPITZER: Sim. Como o cérebro muda constantemente com seu uso (o
termo técnico é neuroplasticidade) não há como a anatomia não mudar.
Quais habilidades dessa geração conectada podem melhorar e quais podem piorar?
MS: Há várias afirmativas de que as habilidades melhoram, mas nenhuma se
apoia em evidências. Nativos digitais não são excelentes em pesquisas
na internet, por exemplo. Em vez disso, clicam aleatoriamente e
interrompem as buscas antes de terminá-las.
Os sintomas da “demência digital” são irreversíveis?
MS: O problema com o uso da mídia digital por crianças e adolescentes é
que o desenvolvimento cerebral fica desequilibrado, o que leva a um
desenvolvimento social e intelectual que poderia ser muito melhor. Na
terceira idade, quando as células cerebrais morrem, por diversos
motivos, os problemas que se desenvolvem dependem da “reserva cognitiva”
que se construiu quando jovem. O estudo de Cingapura mostra que quando
as crianças chinesas são ensinadas a usar computador, há o risco de que
metade delas não seja mais capaz de ler. Se isso não mostra como pode
ser perigoso, então não sei quando alguém terá ideia do que é.
[Os interessados podem ler também "Does the internet make you dumb? Top German neuroscientist says yes -- and forever" ("A internet o torna estúpido? Neurocientista de ponta alemão diz que sim -- e para sempre", em tradução direta.]
Apaixonante assunto e estonteante abordagem do blog em divulgar o assunto em alto nível. Permitam-me botar a colher!Em séria reportagem apresentada recentemente no canal francês (TV5-Monde), foi feita alusão ao “autismo” e essa revolução digital. Explico: algumas formas de autismo se devem ao fato de eles (autistas) não serem capazes de processar as muitas informações que recebem, já que são muito sensíveis ao muito externo. Mas como ninguém é capaz de ensiná-los a processar as tais volumosas informações, acabam caindo no, digamos, “autismo”. É isso! Essa circulação idiota de informações idiotas (olhe as redes sociais, salvando as nobres causas) vai criar uma geração incapaz de processar informações e vai, no seu lugar, criar “moleques de recado”. Bem... claro é que estou ficando demente, e isso desde o ano 2000, confesso.
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