[O texto abaixo é da autoria do biólogo Fernando Reinach e foi publicado hoje no jornal O Estado de S. Paulo.]
O tratamento do câncer está prestes a sofrer uma reviravolta. Para
melhor. Matemáticos especializados em teoria da evolução e biologistas
moleculares demonstraram que o tratamento simultâneo com duas ou mais
drogas pode levar ao desaparecimento de tumores antes incuráveis. A
lógica que permitiu o controle do HIV talvez funcione para eliminar
tumores.
Há décadas sabemos que o câncer é causado pelo aparecimento de células
com mutações em genes que controlam sua divisão. Essas mutações foram
descobertas na década de 1980, mas demorou 30 anos para surgirem drogas
capazes de matar de maneira específica células que carregam essas
mutações.
Nos últimos anos a quimioterapia foi revolucionada pelo uso dessas
drogas. Quando usadas em tumores que possuem a mutação para a qual foram
desenvolvidas, matam rapidamente as células e o tumor diminui
rapidamente. Mas, com o sucesso, veio a frustração.
Em praticamente 100% dos casos o tumor volta, pois surgem células com
novas mutações, resistentes à droga já usada. Um segundo "round" de
tratamento é iniciado, com outra droga, e ele inicialmente funciona. Mas
o tumor volta, agora com uma terceira mutação, resistente às duas
primeiras drogas. Se existir uma droga para a terceira mutação, um novo
ciclo de químio é iniciado. A guerra continua até o médico não dispor de
mais armas. Aí o câncer vence. O resultado é que a sobrevida do
paciente aumenta, mas a taxa de cura não se altera.
Nos últimos anos, para desespero dos médicos, foi descoberto que já no
tumor original pode estar presente um número pequeno de células
resistentes à primeira droga. Em outros casos, as células resistentes
surgem durante o tratamento. Essas descobertas levaram muitos
oncologistas a considerar a possibilidade de utilizar mais de uma droga
já no inicio do tratamento. Mas essa ideia gerou muita discussão: o
custo do tratamento aumenta e o médico deixa de ter uma segunda "arma" a
sua disposição caso perca a primeira batalha.
A novidade é que matemáticos especializados em modelagem de processos
evolutivos se associaram a biologistas moleculares que estudam as
mutações que causam o câncer e sua resposta aos novos quimioterápicos. O
objetivo foi construir um modelo matemático capaz de descrever o
surgimento de novas mutações nas células presentes em um tumor e prever
como as diversas populações (cada uma com um grupo diferente de
mutações) se comporta quando submetida a diversas combinações de
quimioterápicos.
Os modelos foram construídos e calibrados usando dados obtidos durante o
tratamento de 20 pacientes com tumores sólidos como melanomas, câncer
de cólon e de pâncreas. A velocidade com que as células se dividem, o
número de células presentes, a frequência de cada tipo de célula, a taxa
de surgimento de mutações novas e a velocidade com que as células
morrem durante cada tratamento foram determinadas experimentalmente e
colocadas no modelo. Em seguida, o modelo foi usado para prever o que acontecia com os
pacientes ao longo do tempo quando submetidos a diferentes tratamentos.
Os resultados demonstraram que o modelo explica e prediz o
desenvolvimento da doença.
Validado o modelo, ele foi usado para entender qual a melhor combinação
de drogas, em que ordem devem ser administradas e como tumores de
diversos tamanhos e composição respondem aos diferentes tipos de
combinação. Os resultados são impressionantes. Aqui vai um exemplo. Se o
paciente tiver no seu corpo um melanoma com 9,8 x 1010 células (cem
bilhões de células cancerosas), espalhadas por oito metástases, a chance
de curar esse paciente com tratamentos sequencias, usando uma droga de
cada vez, é zero. Mas, se forem usadas duas drogas simultaneamente, a
chance de cura sobe para 88%. E esse resultado se repete com diversos
tipos de tumores e drogas. O uso combinado de mais de uma droga, já na
primeira batalha, parece aumentar muito as chances de cura.
Esse modelo torna possível prever o que deve ocorrer se diferentes
estratégias de tratamento forem utilizadas. Isso facilita o planejamento
de novos estudos e permite adequar a estratégia para cada paciente.
Nos próximos anos é provável que esse modelo seja testado e
aperfeiçoado, o que seguramente permitirá planejar e acompanhar de
maneira científica o tratamento de cada tumor, aumentando a taxa de
sucesso. No curto prazo, os resultados preliminares provavelmente vão
convencer muitos médicos a testar protocolos que utilizam duas ou mais
drogas simultaneamente logo no início do tratamento.
O uso de um coquetel de drogas foi o que permitiu o controle do HIV, o
vírus que causa a aids. E a lógica por trás de seu uso é exatamente a
mesma.
Esses modelos só puderam ser desenvolvidos porque matemáticos foram
financiados durante décadas para construir modelos capazes de estudar
processos tão diferentes como o altruísmo em populações, o problema do
dilema dos prisioneiros e o surgimento de processos cooperativos nas
sociedades. É um exemplo da importância de se financiar projetos que
aparentemente têm pouco uso prático. Quando menos se espera, esses
conhecimentos podem revolucionar algo tão prático e importante como a
cura do câncer.
Ver mais detalhes em "Evolutionary Dynamics of Cancer in Response to Targeted combination Therapy" - Ivana Bozic et al -- eLife 2013;2:E00747.
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