[Reproduzo a seguira coluna do João Ubaldo Ribeiro
pubicada hoje no O Globo.]
Atribuem ao presidente Kennedy a observação de que a vitória tem muitos
pais, mas a derrota é órfã. Melancólica verdade, sobretudo na política,
que sempre a confirma sem perdão, bastando ver como as mãos políticas
que hoje afagam são as mesmas que ontem apedrejavam e vice-versa. Em
nosso caso, temos ainda uma tradição de adesismo por que zelar, bem como
a prevalência do Sonho Brasileiro, que é descolar uma mamata vitalícia
em algum lugar do governo ou do estado, porque aqui governo e estado são
a mesma coisa. Entra um governo novo e declara “o estado é nosso e só
faz o que nós queremos”. Isso torna impossível a realização do sonho sem
que o sonhador abandone o inditoso derrotado e passe para o lado do
futuroso vencedor. Suponho que devemos encarar essas coisas com
compreensão e até caridade, pois o pessoal está apenas querendo
sobreviver e subir na vida, é natural.
Vários outros princípios e paradigmas de conduta estão também envolvidos
na questão, entre os quais sobressai o “farinha pouca, meu pirão
primeiro”, farol ético que parece nortear nossa formação coletiva, tal o
vigor com que se evidencia no comportamento de nossos governantes. Às
vezes penso que a frase devia constar de algum emblema nacional, é muito
injusto que não receba o reconhecimento merecido. No momento, a farinha
ainda não está propriamente pouca, mas há sempre os previdentes, que
não querem deixar seu pirão aos cuidados do acaso. Melhor tratar de
farejar os ares e descortinar por onde anda a temível assombração da
derrota, para ir-se afastando dela quanto antes. Não sei se já começou a
debandada, mas acho que pelo menos há alguns sinais dela, difusos nos
noticiários e comentários políticos.
O moral do governo não parece andar muito alto. O saco de gatos dos
ministérios é um espetáculo triste, desanimado, desarvorado e sem
aparentar saber muito para onde ir, ou o que fazer. Ninguém — arrisco-me
a dizer que nem mesmo a presidente — é capaz de lembrar todos os
ministérios e muito menos todos os ministros. Sabe-se que muitos destes
se esgueiram obscuramente pelos corredores e salas dos fundos do poder,
sem sequer terem a chance de dar um bom-dia à presidente, quanto mais de
despachar alguma coisa. Fica aquela pasmaceira, interrompida por
momentos de falatório vago e repetitivo, que não prenunciam nada de
importante. E há, seguramente, ministros que, se perguntados de
surpresa, não saberão bem o que fazem suas pastas, acrescido o pormenor
de que vários ministérios, ou grande parte deles, não fazem nada mesmo, a
não ser dar despesa.
A reação às manifestações de rua mostrou um esforço atarantado para
manter a aparência de calma, equilíbrio e controle da situação, quando
era visível que não havia nada disso e estava todo mundo de olho
arregalado e sem saber o que dizer ou, pior ainda, fazer. Comentou-se em
toda parte que, como já teria acontecido antes com frequência, a
presidente peregrinou ao ex-presidente, para saber dele como agir,
porque ela mesma não fazia ideia, o que vem sublinhando a imagem de
despreparo e insegurança mal articulada que ela cada vez mais projeta.
Ouvidos também os vizires do momento, saiu do Planalto uma voz chocha e
pouco inspiradora, naquele tom de professora repetindo uma aula decorada
a contragosto e sem nenhum entusiasmo ou até confiança, propondo
absurdos, tentando espertezas quase amadorísticas e, em última análise,
mostrando a incompetência do esquema que a rodeia.
A tal governabilidade, que tanto mal tem produzido, tão pouco bem tem
causado e nunca funcionou direito, servindo basicamente para o intricado
jogo das nomeações, colocações, favores e outros objetivos dos nossos
homens públicos, está cada vez mais caindo pelas tabelas. Todo dia um
cai fora, outro proclama dissidência e independência, formam-se alas e
subalas, o rebuliço surdinado é grande. A turma da base aliada, que
sempre deu trabalho e aporrinhação e nunca agiu pelos belos olhos da
nação, começa a enxergar um governo fraco e a querer distância dele,
ainda mais com as ruas pressionando. A corte continua lá, o
ex-presidente continua lá, mas é de se acreditar que, de agora em
diante, a solidão da presidente vai agravar-se.
A inflação está voltando e as negativas e bravatas das autoridades não
convencem, diante da realidade dos preços. As declarações otimistas do
ministro da Fazenda são recebidas quase com deboche. O crescimento é
minguado, e a economia cambaleia cada vez mais e o governo caracteriza
seu comportamento por ações meramente conjunturais e pontuais,
respondendo de forma superficial e casuística aos problemas que
aparecem. Os índices de popularidade da presidente desabaram e mesmo um
antes improvável segundo turno nas eleições já está sendo previsto. Até
uma surpreendente vaia de prefeitos ela tomou em Brasília. Tudo isso com
certeza provoca inquietude na alma e comichões nos pés de quem quer
ficar longe da órfã derrota.
Para completar o quadro, o governo não dispõe de um Big Bang para
apresentar, no encerramento destes seus quatro anos. Nenhuma grande
obra, nenhum grande passo, nenhum grande marco. Inflação subindo, PIB
baixando, educação alarmante, saúde escangalhada, infraestrutura
desmantelada, transporte urbano infernal, segurança pública impotente,
estrutura fiscal pervertida, ferrovia Norte-Sul em descalabro,
transposição do São Francisco roubada e sucateada — nada a apresentar,
nada a trombetear, nada a comemorar. A propalada truculência da
presidente está virando folclore e em lugar de força, mais parece
denunciar exasperação impotente. Cara de derrota para o governo e
ninguém vai querer ser o pai dela. Mas receio que não terão dificuldade
em apontar a mãe.
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