domingo, 27 de janeiro de 2013

A tragédia de Santa Maria e a ameaça de novas impunidades

É muito difícil escrever qualquer coisa sobre a terrível tragédia do incêndio na boate de Santa Maria ainda sob o impacto da notícia, e ainda sem se saber o número final de vítimas e os detalhes escabrosos, mas indispensáveis, que levaram a mais uma catástrofe no país. Desde o fatídico 17 de dezembro de 1961, data do terrível incêndio do circo em Niterói (*), há pouco mais de 51 anos portanto,  temos sido traumatizados por ocorrências desse gênero, todas elas com um apavorante, angustiante e revoltante traço em comum: a negligência, a incúria, o desleixo e a irresponsabilidade de pessoas e instituições, e a inaceitável, inexplicável e repulsiva incapacidade e/ou omissão da Justiça em punir os culpados.

Do terror do circo de Niterói até a tragédia de Santa Maria observa-se a mesma criminosa omissão, a mesma absurda irresponsabilidade e a recorrentemente idêntica e chocante insensibilidade de pessoas e instituições legalmente constituídas e responsáveis pela concessão do alvará de funcionamento de locais destinados a abrigar dezenas ou milhares de pessoas. As mesmíssimas imputações se aplicam àqueles que projetam, constroem e operam tais locais em condições sabida e visivelmente inseguras. E não se pode deixar de registrar também, infelizmente, a impressionante e inexplicável letargia da sociedade organizada, que não pressiona ninguém sistemática e permanentemente para que não só os responsáveis sejam exemplarmente punidos mas também para que providências efetivas sejam tomadas para que essas tragédias não se repitam de maneira alguma.  É muito estranha, para dizer o mínimo, a omissão de todos nós quanto à segurança dos lugares frequentados por nós mesmos ou por nossos familiares! 

No caso do circo, quem inspecionou (se é que o fez) suas instalações e liberou seu funcionamento não deu a mínima importância ao material altamente inflamável de sua "lona", às suas instalações pouco ou nada corretas, e à inexistência de rota de fuga em caso de necessidade. No caso da boate de Santa Maria, autoridades municipais e os bombeiros liberaram um ambiente fechado para 2.000 pessoas com farta utilização de material altamente inflamável, sem saída(s) de emergência, sem sinalização para rotas de escapes e com pessoal de segurança técnica e psicologicamente despreparado para qualquer ocorrência de tumulto e muito menos para um incêndio. Os proprietários da boate colocaram em atividade um local sabidamente inseguro e, mesmo assim, não se preocuparam em fiscalizar o tipo de espetáculo que poderia ser feito ali com segurança. E, para acréscimo à lista de insanidades, ainda houve um músico imbecil e irresponsável que resolveu fazer pirotecnia num local como aquele. E, agora, surge a informação de que a boate estava com sua licença de funcionamento vencida!!

No caso do circo, escolheram um doente mental para bode expiatório sem provas conclusivas e ninguém mais foi punido -- os responsáveis pelo Gran Circus Norte-Americano (que de americano não tinha nada) já no ano seguinte seguiram montando seus espetáculos Brasil afora. E até hoje não se sabe exatamente o número exato de vítimas, mas há consenso de que foram mais de 500.

No intervalo de 51 anos entre o dezembro de 1961 de Niterói e o 27 de janeiro de Santa Maria  houve incríveis e impressionantes mudanças tecnológicas, inclusive e especialmente no campo do entretenimento. Mas, lamentável e impressionantemente, praticamente nada mudou na  irrresponsabilidade, na falta de responsabilização e na inexistência de punição de culpados diretos e indiretos, sejam eles autoridades, instituições, pessoas físicas e empresas públicas e/ou privadas. O caso de Santa Maria é profundamente lamentável pela desgraça com que abateu centenas de pessoas e famílias, e dói infinitamente mais porque poderia ter sido evitado.

Em respeito aos que morreram e para evitar que outros venham a morrer em circunstâncias semelhante e pelas mesmas abomináveis razões, clama-se por uma punição exemplar de todos os culpados e por uma revisão e atualização completas de todas as normas, regulamentos, leis e procedimentos relativos ao projeto, construção, operação e fiscalização (prévia e periódica) de qualquer ambiente fechado destinado a acolher qualquer número de pessoas. Não é admissível que venhamos a chorar novamente, não importa em que futuro, por tragédias como essa de Santa Maria e inúmeras outras a ela semelhantes.

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(*) "O Espetáculo Mais Triste da Terra (O Incêndio do Gran Circo Norte-Americano) - Mauro Ventura - Companhia das Letras, 2011.

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