sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Intermediários suspeitos e médicos gananciosos: por dentro do negócio do turismo médico na Alemanha

[O artigo traduzido parcialmente abaixo foi publicado no site Spiegel Online em 20/11. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Hospitais alemães estão ganhando um bilhão de euros [cerca de R$ 3,18 bi] por ano com pacientes estrangeiros. O russo Sarkis Sargsyan é um deles e, como muitos outros, esse paciente de câncer caiu nas garras de um intermediário suspeito e de médicos gananciosos.

Sarkis Sargsyan, o paciente russo de câncer, uma das vítimas de um sistema inescrupuloso de atendimento médico na Alemanha. - (Foto: Dmitrij Leitschuck/Der Spiegel).


As metástases estão espalhadas por seu corpo como fragmentos de estilhaços. Os médicos alemães mostraram-lhe imagens de computador em que aparecem formações em seu fígado, pulmões e cérebro. É uma sexta-feira, em julho de 2013. Sarkis Sargsyan, um cidadão russo de 46 anos, está deitado em um leito de tratamento em uma clínica universitária de Munique. Começa sua radioterapia, agora dirigida ao inimigo dentro de seu cérebro.

A história de Sarkis Sargsyan é um relato de adversidade, desespero e esperança. É também um conto de promessas supostamente falsas, lucros fartos e uma brutal falta de escrúpulos. Tudo começou em setembro de 2012, quando Sargsyan descobriu sangue em sua cadeira. Foi a um hospital em Moscou, onde fez uma colonoscopia. Foi diagnosticado com um tumor no intestino, cuja aparência não era boa, e foi aconselhado por seu médico: "se você tem dinheiro, você deve ir para a Alemanha, lá eles o ajudarão". As palavras de seu médico afastaram seus receios, porque lhe soaram como uma apólice de seguro. Dono de um pequeno hotel e de um restaurante em Moscou, Sargsyan convenceu-se de que poderia bancar o tratamento.

"Tratamento na Alemanha"

Ele pesquisou clínicas e médicos alemães na internet. Se você digitar "tratamento na Alemanha" em um site de buscas na internet em russo, você encontrará uns 3 milhões de sugestões, incluindo os websites de quem identificou um mercado potencial em pessoas como Sargsyan. Um exército de "facilitadores de pacientes" aparece na tela, oferecendo a pacientes serviços que incluem superação da barreira do idioma, obtenção de vistos, planejamento de voos e, o mais importante, marcação de consultas em hospitais e clínicas de ponta. "Você tem que ter cuidados com eles", alertou Sargsyan o médico em Moscou.

Um conhecido sugeriu a Sargsyan que tentasse a IMZ GmbH, uma agência sediada em Munique. IMZ é a sigla de Innovation Medizin Zentrum (Centro de Medicina Inovador), que soa impressionante o bastante. Quando Derenik, irmão de Sargsyan, ligou para o IMZ, ele descreveu o diagnóstico de suspeita de câncer do irmão para um médico chamado Arsen B., que cursou medicina na Armênia, onde os Sargsyans nasceram. "Venha para Munique", esse médico teria dito, "depois a doença de seu irmão não será mais que uma simples lembrança". 

Poucos dias epois, Sargsyan, sua mulher Nelly e Derenik embarcaram em um voo para Munique.  Mas, não tinham ideia de quão longa seria a viagem -- e que estavam em vias de começar o pior período de suas vidas.

Um mercado global que vale bilhões

Até a medicina sucumbiu agora à globalização. Assim como os Sargsyans, centenas de milhares de pessoas recebem anualmente tratamento em um país estrangeiro. Esse turismo médico garante a médicos e hospitais alemães cerca de 1 bilhão de euros [cerca de R$ 3,18 bi] de receitas por ano. Em 2012, 82.854 pacientes estrangeiros foram tratados na Alemanha em regime de internação e cerca de 123.000 em atendimento ambulatorial. Os russos formam o maior grupo de pacientes não oriundos da União Europeia na Alemanha, com cerca de 6.000 deles recebendo tratamento com internação por ano. Sua participação entre os pacientes estrangeiros sextuplicou desde 2003. "E o interesse continua crescendo cada vez mais", diz Vladimir Pyatin, vice-cônsul geral da Rússia em Bonn, a ex-capital alemã.


A figura acima mostra o crescimento do número de pacientes russos internados em hospitais alemães, de 2004 a 2011 [Grádico: Der Spiegel/Fonte: Spiegel Online]

Receber tratamento médico na Alemanha sempre foi visto na Rússia como um privilégio. O famoso escritor Fyodor Dostoyevsky foi para um spa em Baden-Baden, o também escritor Nikolai Gogol buscou cura para sua melancolia em um resort em Travemünde na costa do Báltico, o ex-presidente Boris Yeltsin -- que fez seis cirurgias cardíacas de baipasse -- fazia check-ups regularmente no Instituto Alemão do Coração em Berlin, e a ex-primeira dama Raisa Gorbachev foi tratada de leucemia no Hospital Universitário de Münster.

As razões para a atual explosão de números têm uma razão simples: o sistema estatal de saúde da Rússia praticamente faliu. O número de hospitais caiu para quase a metade desde 2000. Muitos médicos mal remunerados deixaram o país. Há uma deficiência de equipamentos, e a higiene nos hospitais é desastrosa. Apenas 35% dos russos estão satisfeitos com o atendimento médico no país. A Alemanha, ao contrário, parece um paraíso, com médicos bem treinados trabalhando com equipamentos tecnológicos de ponta em enfermarias e instalações impecáveis. Hospitais alemães tentam também satisfazer as necessidades e demandas dos pacientes russos que, como pagantes de suas despesas, são uma fonte de receita lucrativa. 

Isso, aparentemente, representa uma situação de ganha-ganha para ambas as partes.  E é isso que deveria ser, não fossem diversos fatores: os corretores que descaradamente exploram seus clientes, inchando suas faturas, estimulando-os a fazer exames desnecessários e, o que é pior, mandando-os de volta para casa depois de terem recebido um tratamento de segunda categoria; os hospitais que simplesmente fecham os olhos para isso tudo, simplesmente em busca de lucro; e os políticos, que estão cientes da área cinzenta onde se situa o turismo médico e, mesmo assim, agem como se fossem cegos, surdos e mudos.

Um salvador

Sargsyan, sua mulher e seu irmão aterrisaram em Munique em 16/9/2012. Disseram que já pagaram € 3.500 (cerca de R$ 11.200,00) à agência IMZ, como adiantamento para o tratamento e os vistos. De acordo com seu relato, logo após sua chegada foram levados ao escritório do corretor da IMZ no Sheraton Arabellapark Hotel de Munique.

Lá, dizem terem sido recebidos por um homem de terno, Arsen B., cujo cartão de visita apresentava uma lista exótica de títulos -- "Prof. Dr. médico, médico cirurgião, neurocirurgião, ortopedista, Diretor - cirurgião Sênior". Ele teria prometido a Sargsyan fazer os arranjos necessários para que fosse atendido por uma rede de clínicas e consultórios médicos privados. A família se sentiu como se tivesse encontrado seu protetor. A IMZ, entretanto, contesta essa versão, dizendo que Arsen B. estava no exterior nessa data, e que não tem consultório ou escritório nesse local.

(...) Sargsyan conta como a primeira consulta o levou à Clínica Arabella, onde se submeteu a uma nova colonoscopia. O diagnóstico descreveu um "tumor volumoso e complicado". Uma biópsia revelou que o tumor era maligno. Os médicos detetaram metástases no fígado e nos pulmões de Sargsyan. Um intérprete da agência traduziu os diagnósticos para o russo. "As notícias eram ruins", disse Sargsyan, "mas eu confiava nos médicos". Ele também confiava em Arsen B., que parecia ter um plano para tudo.

Para evitar uma obstrução intestinal, Sargsyan sofreu uma colostomia. Os médicos locais fizeram o primeiro ciclo de quimioterapia, seguido de radioterapia. O irmão do paciente cuidava dos assuntos financeiros, pagando € 10.000 [cerca de R$ 31.900,00] à IMZ para o tratamento inicial. Como pagou com um cartão de crédito, foi sobretaxado em 5%. "Obrigado por sua confiança", dizia o recibo.

De acordo com a estimativa inicial, os € 10.000 deveriam pagar os tratamentos de quimio e radioterapia. Mas, o irmão do paciente foi logo solicitado a pagar outros € 20.000 porque os médicos supostamente haviam esquecido de incluir medicamentos na primeira fatura. Sem pagamento não há tratamento, teria dito Arsen B. ao irmão de Sargsyan. Esse é o relato de Derenik Sargsyan, mas Arsen B. o contesta, dizendo que o pagamento adicional tornou-se necessário porque o tratamento mostrou-se muito mais complexo e caro do que originalmente previsto. "Logo no início de seu tratamento os pacientes são informados de que, de modo geral, os custos médicos reais são mais elevados do que em sua previsão inicial", diz Arsen B. 

Durante uma pausa no início do ano, a família retornou a Moscou. Depois de duas semanas, Sargsyan passou por uma crise em casa. Fazia ruídos estranhos e embaralhava as palavras. "Gasolina, eu preciso de gasolina", dizia, apontando para um copo d'água. Os médicos de Moscou suspeitaram de que estivesse com metástase no cérebro. Contatada por Derenik, a agência IMZ lhe disse que "voltassem imediatamente" à Alemanha.

A agência IMZ tem uma página no Facebook desde dezembro de 2011. O nome IMZ é uma escolha esperta, porque quando se entra com ele num site de buscas um dos primeiros resultados a surgir na tela é o do Isar Medizin Zentrum (Centro Médico Isar), uma clínica privada de reputação em Munique.  Além das iniciais, as logomarcas das duas instituições são também visível e impressionantemente semelhantes. Mas, a agência e a clínica não têm qualquer relação entre si e um processo está em curso na justiça. A clínica sente que sua marca registrada tem sido "ostensiva e fortemente violada".

No seu website em russo, a agência até recentemente anunciava seus serviços com slogans cheios de fantasias como "A vida continua, e lhe asseguramos que a doença não o impedirá de gozá-la plenamente" e "Você terá ainda condições de desfrutar do mundo em todas suas cores". 

[Fico imaginando o que escreveria o autor do texto, diante do que ocorre com os sistemas de saúde público e privado no Brasil ...].




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