segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

A incontrolável decadência de Pompeia

[Em outubro de 2011, fiz uma longa postagem sobre Pompeia, sua fantástica história e sua arte. Dois dias antes fizera outra postagem, abordando o lamentável problema da precariedade da conservação das relíquias da cidade e dos constantes desmoronamentos que ali ocorriam. Em agosto deste ano, fiz uma longa postagem sobre a arte romana, em que apresento exemplos da arte que restou em Pompeia. A seguir, reproduzo a reportagem de ontem (01/12) da edição em português do jornal espanhol El País, sobre a situação precária das ruínas de Pompeia.]


Ruínas de Pompeia. - (Foto: Eric Vandeville/Fonte: El País).

Pompeia está desmoronando, disso não há dúvida nenhuma. A questão é: por que desmorona logo agora, e sem remédio, a cidade romana sepultada pela erupção do Vesúvio no ano 79 da era cristã, redescoberta em 1748 e declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 1997? Se poderia dizer que a culpa é do tempo e da ausência. “Sua antiguidade e a ação dos efeitos meteorológicos têm sua parcela de responsabilidade”, admite a doutora Giuseppina Cerulli Irelli, mas a maior parte corresponde à ausência nos últimos anos de um poder político comprometido com a defesa de Pompeia. Culpa também da corrupção, da burocracia paralisante, do saque praticado pela Camorra e das hordas de turistas que, ao ritmo de mais de 2 milhões por ano, pisoteiam à vontade, e quase sem vigilância, os mosaicos e montes de escombros. Quanto aos mosaicos, são um presente que cabe agradecer ao amor pela beleza dos romanos de então. Já os desabamentos – os últimos afetaram a Casa do Torello de Bronze e as Termas Centrais – são um favor prestado pela inaptidão dos atuais.

Porque é a Roma de hoje – incapaz de se desfazer do desprezo berlusconiano pela cultura, enredada numa burocracia assassina, amarrada as interesses distorcidos da casta política e sindical – que deixa Pompeia abandonada. As notícias sobre os desmoronamentos deixaram de ser notícia. Há cinco dias, um vigia notou a queda de um pedaço de estuque da Casa do Torello de Bronze, uma das maiores da zona arqueológica, e a aparição de uma rachadura de dois metros de comprimento por um de largura nas Termas Centrais. A reação à notícia foi idêntica a quando, há apenas três semanas, veio abaixo a Schola Armatorum. Silêncio da administração, ou anúncio de projetos urgentes que jamais são concluídos, e protesto metódico dos sindicatos. “Estamos fartos de repetir”, dizia o último comunicado firmado pelas centrais CSIL e UIL, “que isso poderia ser evitado com uma manutenção regular. Mas infelizmente ninguém aqui escuta, e o resultado é que cada vez mais áreas estão fechadas para os turistas”.

É verdade. Mas não é a única. Um percurso pela zona arqueológica, há alguns dias, veio a demonstrar que são muitas as casas de Pompeia que, mais do que Patrimônio da Humanidade, parecem a cena recente de um crime. Fitas plásticas vermelhas e brancas impedem a passagem aos desabamentos mais recentes. Cercas de arame, aos de alguns meses atrás. Um vigia – o único com o qual cruzamos em algumas horas de passeio compartilhado com grupos de estudantes adolescentes, excursionistas japoneses, famílias inteiras, com cachorros soltos incluídos – concorda em apontar num mapa todas as zonas fechadas ao público por causa dos desabamentos. São um bom punhado. As razões citadas pelo vigia parecem decalcadas das que oferece, por telefone, um membro da associação Amigos de Pompeia: “Todos esses desmoronamentos estão acontecendo porque, de uns anos para cá, desapareceram os artesão – os marmoristas, os especialistas em mosaicos – que faziam parte da equipe e que diariamente cuidavam da escavação. Eles conheciam os pontos fracos da cidade, como a drenagem, e quando chegavam as chuvas estavam atentos. Agora, 90% a 95% dos trabalhos são contratados no exterior. Pessoas que nem conhecem nem amam Pompeia, e cujos interesses, o senhor me entende, às vezes não são de todo claros...”.

O vigia e o integrante da Amigos de Pompeia compartilham não só do diagnóstico como também do “o senhor me entende” – a referência ao poder da Camorra, a máfia napolitana – e, consequentemente, da obsessão pelo anonimato. O vigia, após apontar um grande número de desabamentos no mapa – “Vocês, da imprensa, só ficam sabendo dos que não podem ser escondidos” –, dobra o papel e o leva embora; o especialista rejeita de pronto a possibilidade de um encontro para continuar falando do assunto: “Não leve a mal, mas café eu tomo na minha casa”.

Não se trata só de uma suspeita. E vai muito além da picaresca descoberta daquele túnel de 30 metros, em 2009, que ia da escavação até uma residência próxima. Essa velha gambiarra da Camorra virou agora um sistema para se apropriar dos contratos da obra. A Guarda de Finanças e os Carabinieri tentam, até agora inutilmente, desemaranhar a rede de interesses. Não se pode esquecer que o bolo a dividir é muito grande, apesar da inoperância dos políticos. De 2007 a 2012, a Itália – não só Pompeia – desperdiçou boa parte dos 6,35 bilhões de reais vindos de Bruxelas para o investimento em turismo e bens culturais. Durante esses cinco anos, e apesar das graves carências de conservação do monumento mais visitado da Itália, os responsáveis pela escavação não foram capazes de conseguir nem um euro. Sobre a negligência dos sucessivos governos de Silvio Berlusconi em relação ao patrimônio cultural, servem de testemunho as quedas de pedaços do Coliseu, da Fontana di Trevi e sobretudo de Pompeia.

A doutora Cerulli Irelli, ex-diretora das escavações e especialista nas pinturas de Pompeia e Herculano – a outra grande cidade romana enterrada pelo Vesúvio no golfo de Nápoles –, acrescenta à má utilização do dinheiro e ao poder corruptor da Camorra outro fator difícil de combater: “As enxurradas de turistas. A cada dia entram em Pompeia mais pessoas [mais de 6.000] do que as que habitavam a cidade. É um museu ao ar livre, mas sem as regras dos museus, quase sem vigilância. Essa avalanche de turistas também assassina Pompeia. Muitos deles – embora seja triste dizê-lo – não respeitam as escavações, só vêm atrás de uma foto. Voltam com ela para o seu país, mas sem saber muito mais do que quando chegaram. É triste dizer: mas Pompeia já existe só nos livros”.

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