[Quando viajei para a Europa no dia 29 de maio, já encontrei no avião uma edição do International Herald Tribune (a edição internacional do The New York Times), datada da véspera, com notícia de primeira página sobre uma polêmica séria nos EUA e na Europa envolvendo um renomado médico americano e um medicamento de ponta para diabéticos produzido pelo laboratório Merck. Regressando duas semanas depois, procurei nos nossos principais jornais brasileiros alguma referência a esse imbróglio e não encontrei nada, apesar da seriedade do assunto. Alguma sumidade do nosso setor de saúde, desde o Ministério da Saúde à Anvisa e à ANS (Agência Nacional de Saúde), deve achar que nossos diabéticos não merecem essa consideração. Traduzo a seguir a íntegra da reportagem.]
De início, o Dr. Peter C. Butler declinou do pedido da laboratório Merck para testar se seu novo medicamento para diabetes, o Januvia, poderia ajudar a evitar a doença em ratos. "Eu lhes disse, não estou interessado em seu dinheiro, vão embora", lembra o Dr. Butler.
Hoje, sem dúvida, a Merck pensa que devia ter seguido o conselho do médico. Quando o Dr. Butler finalmente concordou em fazer o estudo, encontrou mudanças preocupantes nos pâncreas dos ratos que poderiam levar ao câncer pancreático. A descoberta, no início de 2008, transformou o Dr. Butler em um cruzado cujos estudos posteriores, de acompanhamento do processo, ameaçam agora o futuro não apenas do Januvia mas de todos os medicamento de sua categoria, que têm vendas globais anuais de mais de US$ 8 bilhões e são usados por centenas de milhares de pessoas ao redor do mundo, portadoras da diabetes tipo 2.
"Sabia que parte do que pensava era preocupante e me senti obrigado a investigá-lo", disse o Dr. Butler, chefe de endocrinologia na Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA). Com base no estudo mais recente do Dr. Butler, tanto a FDA (a Administração de Medicamentos e Alimentos dos EUA) quanto a Agência Europeia de Medicamentos iniciaram investigações que podem levar a novos alertas sobre os medicamentos, ou mesmo à sua retirada do mercado. Ou podem levar a nenhuma atitude, de qualquer espécie.
O Dr. Butler enfrenta oponentes poderosos nos fabricantes de medicamentos e em muitos especialistas em diabetes, que dizem que seus estudos são contestados por outras evidências. "Os dados são inconclusivos", disse o Dr. Robert Ratner, cientista-chefe e autoridade médica da Associação Americana de Diabetes. Ele disse que mesmo que houvesse algum excesso de risco, ele seria "excepcionalmente baixo".
Nancy Thornberry, que chefia o desenvolvimento de medicamentos para diabetes no Merck, disse que os testes clínicos, o padrão de referência para evidência médica, não encontraram aumento de risco de doenças pancreáticas proveniente do Januvia, mesmo quando os resultados dos testes foram combinados para conseguir números maiores de resultados. "Na realidade, minha mãe toma sitagliptina", disse ela, referindo-se ao Januvia por seu nome genérico.
Questionamentos sobre se os medicamentos [para diabetes] aumentam o risco de pancreatite, uma inflamação dolorosa e possivelmente letal do pâncreas, surgiram cedo, logo depois que o primeiro deles, o Byetta, vendido pelos laboratórios Bristol-Myers Squibb e AstraZeneca, foi aprovado em 2005. Os rótulos dos medicamentos já contêm alertas sobre isso. O que é novidade e potencialmente mais sério é um possível risco de câncer pancreático, que é virtualmente intratável e mata a maioria das vítimas dentro de um ano.
Muitas pessoas nesse campo comparam o Dr. Butler ao Dr. Steven Nissen, o bem conhecido cardiologista da Clínica Cleveland cujos alertas sobre o Avandia, um tipo diferente de medicação para diabetes, levaram ao banimento desse remédio na Europa e à imposição de fortes restrições ao seu uso nos EUA. Mas, há divergência nas opiniões sobre se o Dr. Nissen, e agora o Dr. Butler, são heróis ou fanáticos. Alguns críticos dizem que o Dr. Butler exagera nas suas conclusões, e que suas descobertas não foram reproduzidas por outros. "Basicamente, ninguém no mundo inteiro nos últimos 10 anos, com milhares de animais," encontrou o que o Dr. Butler encontrou, disse Daniel J. Drucker, um professor de medicina na Universidade de Toronto e um consultor para muitos fabricantes de medicamentos.
Ainda assim, não é fácil descartar o Dr. Butler. Ele é um ex-editor de Diabetes, a publicação da Associação Americana de Diabetes. E ele tem alguns defensores. "Ele deveria ser um herói americano, uma pessoa dura e determinada que não se deixará atemorizar", disse o Dr. Edwin Gale, professor emérito na Universidade de Bristol (Reino Unido), que recentemente escreveu junto com o Dr. Butler um comentário sobre os medicamentos.
(...) No mês passado, advogados de defesa dos fabricantes de medicamentos contra uma ação penal que acusa o Byetta de ter causado pancreatite em um paciente citaram/intimaram praticamente todas as volumosas pilhas de registros e correspondências do Dr. Butler. "Acho que a mensagem aqui é que o querem fora do ramo", disse Brian Depew, um advogado do autor da ação, Ross Hubert, de New Hampshire, que alega que o Byetta lhe provocou uma pancreatite. O Dr.Butler disse que a UCLA o aconselhou a não comentar a intimação.
Mais de 100 ações judiciais em nome de 575 pessoas em todo os EUA estão alegando danos oriundos do Byetta, em sua maioria pancreatite, de acordo com o mais recente arquivo regulatório trimestral do laboratório Bristol-Myers. De acordo com o laboratório Merck, 43 ações alegam que o Januvia provocou câncer do pâncreas.
Outros medicamentos nessa classe, chamados de incretinomiméticos, são: o Bydureon e o Onglyza, que são vendidos também pelo Bristol-Myers Squibb e pelo AstraZeneca; o Victoza, do Novo Nordiska; o Tradjenta, do Eli Lilly e Boehringer Ingelheim; e o Nesina, do Takeda. De longe os maiores e mais importantes são o Januvia e seu relacionado Janumet, ambos do laboratório Merck, que geraram no ano ano passado vendas de US$ 5,7 bilhões.
O Dr. Butler disse que depois que seu grupo apresentou suas descobertas com ratos ao Merck, "nunca mais soube deles novamente", exceto por meio dos advogados da empresa perguntando quando o estudo seria publicado. Ele disse que os estudos feitos pelos fabricantes de medicamentos que levaram à aprovação destes pela FDA tenderam a usar animais jovens sadios, para os quais não havia a expectativa de ocorrer câncer do pâncreas. O problema, disse ele, é que esses medicamentos atuam essencialmente pelo aumento dos níveis de um hormônio chamado peptídeo semelhante ao glucagon 1. Este hormônio pode acelerar condições pré-cancerígenas já presentes em pacientes de meia-idade, do mesmo modo como o hormônio estrogênio pode levar a tumores de mama.
Três outros exemplos de evidência levantam possíveis problemas. Um deles são os efeitos colaterais informados à FDA, tipicamente por médicos ou empresas, depois que um medicamento está no mercado. Dr. Butler e seus colegas encontraram muito mais casos de pancreatite e de câncer pancreático informados em relação aos remédios com base nas incretinas do que com relação ao Avandia.
Public Citizen e o Instituto para Práticas Seguras de Medicação, duas instituições de vigilância civil, chegaram separadamente à mesma conclusão. Public Citizen já solicitou à FDA que retire o Victoza do mercado. Esses relatórios, porém, são voluntários e podem não ser confiáveis. Do mesmo modo, quando há publicidade em torno de um risco de segurança pode haver um pico de relatórios sobre esse efeito colateral.
Vários grupos têm examinado registros médicos de milhares de pacientes mantidos por companhias de seguros. Pelo menos três desses estudos não encontraram aumento de incidência de pancreatite ou de câncer pancreático. Mas, um estudo recente encontrou cerca do dobro de risco de pancreatite aguda entre usuários dos medicamentos.
O que gerou porém mais atenção recentemente foi o estudo do Dr. Butler de pâncreas humanos obtidos de 34 doadores de órgãos, que morreram de causas não relacionadas com doença pancreática. Sete desses doadores haviam tomado Januvia e um havia tomado Byetta. Os pâncreas dessas 8 pessoas mostraram uma tendência de apresentar mais lesões pré-cancerosas do que os órgãos de diabéticos que não haviam tomado aqueles medicamentos, ou os daqueles não diabéticos. Houve também um caso de um tumor neuroendócrino, um tipo de câncer de pâncreas. Do mesmo modo, os pâncreas dos usuários de medicamentos de incretinas eram mais pesados, com crescimento mais rápido de certas células. "Havia crescimentos estranhos", que "você nunca veria em um pâncreas humano normal", disse a Dra. Alexandra Butler [patologista, mulher do Dr. Butler].
Críticos assinalaram que os usuários de incretina eram muito mais velhos do que os outros diabéticos, e tinham tido a doença por muito mais tempo. Isso, e não os medicamentos, pode ter sido responsável pelo que foi encontrado, dizem eles. "Há problemas enormes com esse estudo", disse o Dr. Ratner, da associação de diabetes.
O Dr. Fred Gorelick, professor de medicina e de biologia da célula em Yale, disse que as lesões pré-cancerosas encontradas estavam em estágio inicial. Muitas pessoas de meia-idade as têm, e elas geralmente não levam a câncer. Ainda assim, disse ele, o estudo "levantou várias bandeiras vermelhas".
Mais informação pode surgir em junho, quando os Institutos Nacionais de Saúde realizarão uma reunião de dois dias sobre os possíveis vínculos entre diabetes, medicamentos para diabetes e câncer pancreático. O Dr. Butler será um dos conferencistas. E, a começar neste verão [americano], estarão chegando resultados de grandes testes clínicos randômicos realizados com o objetivo de verificar se os remédios aumentam o risco de ataques cardíacos. Esses testes devem ser capazes também de detetar um aumento no risco de câncer pancreático que possa não ter sido localizado nos testes clínicos de menor porte, utilizados para receber a aprovação da FDA para os medicamentos.
Até agora, os temores não reduziram substancialmente o uso dos medicamentos, embora recentemente haja sinais de um "possível abrandamento", disse Mark Schoenebaum, um analista farmacêutico no Grupo ISI. Ele disse que a evidência de um risco era fraca, e que a FDA não tomaria atitude alguma.
O Dr. Butler disse que não estava solicitando que os medicamentos sejam retirados do mercado, embora não os receite para seus próprios pacientes. Em vez disso, disse ele, devem ser feitos estudos utilizando varreduras M.R.I. [sigla inglesa para Imagem por Ressonância Magnética] para verificar se o uso dos medicamentos está aumentando os pâncreas dos pacientes. "Temos essa gente toda tomando esses medicamentos", disse o Dr. Butler, "e a questão é, o que está acontecendo com os seus pâncreas?".
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